A gente é obrigado a fazer comida quando cresce. Geralmente todo dia, ou fazer um pouco a mais pra “requentar” no almoço ou na janta do dia seguinte. Não por muitos dias, porque na geladeira o arroz só dura três. Cê cresce e junto disso vem a preocupação. A responsabilidade. O cuidar do próprio eu. E isso inclui a alimentação. Estraga um pouco, eu diria. De tantas modas, a de hoje em dia é ser fitness. Não basta, então, tentar comer uma saladinha correta na hora do almoço, comer o almoço na hora certa ou mesmo selecionar o quanto de “carbo” é realmente necessário pra ter o corpinho do Felipe Tito. Precisa prestar atenção no que come, e não só no quanto. Não precisa se abster do brigadeiro, do pudim de leite condensado ou das maravilhosas camadas da lasanha da vovó. Precisa substituir, eles dizem. Sai o leite condensado, entram as tâmaras, bananas e cacau; o leite desnatado, a frutose e a goma de tapioca; sai a massa de trigo, entra abobrinha, berinjela e cenoura. Entra a quinoa. Entra a chia. Mais chia. Muita chia. Dá saciedade. Chia ajuda a manter o peso, sabia?
Mas é claro que você não pode estar só preocupado com o seu corpo, a saúde sempre em primeiro lugar. Pelo menos é o que eles dizem, embora o corpo escultural no Instagram curiosamente continue incentivando não apenas a saúde de muita gente. Bom, não é problema meu. Eu tô ocupado comendo chia e evitando a próxima refeição. Antes já não tivéssemos preocupações demais com a vida pra termos que pensar nos efeitos que cada simples componente pode, porventura, causar no nosso corpinho. Outro dia a saga fitness-modinha-Instagram-Pugliesi-se preocupe com a saúde em primeiro lugar me acometeu já no supermercado. Caminhando pelas gôndolas olhei para os bonitos e vermelhos tomates que brilhosos às luzes que pairavam sob o hortifruti me chamavam cuidadosamente. É que dos frutos, o tomate me parece um dos mais bem feitos pela indústria da Terra e aqueles estavam especialmente bonitos para meu paladar.
Me aproximei, certo da decisão de já comprar uns cinco pra aproveitar que a safra estava boa e o preço acessível. Ninguém merece tomates verdes e duros ou quase-pretos e moles na mesa da minha sala de jantar. Com a sacola plástica transparente me posicionei com os pés separados e firmes e relembrei os requisitos básicos para escolher tomate que via minha avó aplicar nas feiras de Quarta. Preste atenção, Matteus, nem muito duros nem muito molengas senão não servem para nada. Vermelhos sempre, firmes e grandes, tomates perfeitos. Não tinha como errar, eu havia aprendido direitinho a fazer uma boa salada.
De supetão um pensamento veio à minha cabeça. Eu não tinha azeite em casa e não havia dinheiro para comprar naquele momento. Temperar salada com óleo é quase um crime já que vai contra as regras antigas e novas da nutrologia. Franzi as têmporas e pensei que talvez não fosse de tamanha interferência, afinal mesmo se azeite houvesse, pouco deveria ser usado. Um fio. Sinta o gosto mas nem tanto. Aprecie só um pouco. Tudo bem, não faria tanta diferença assim e o pessoal do canal de culinária disse que era melhor desse jeito. Que assim fosse. Cheguei em casa, cortei tomates, hora de temperar.
Cortei as semi rodelas, meu modo especial de fazer os tomates maduros virarem prato. A voz da moça alegre e saltitante do Bem Estar relembrando do afinamento do sangue causado pelas malvadas sementes do fruto vermelho sussurrou no meu ouvido. Vamos tirar isso aqui, Matteus, tira isso daí. Peguei uma pitada de sal e logo hesitei em colocar tudo: pressão alta. Coloquei apenas um pouco mas confesso que ainda com medo: pedras nos rins. Vou superar, vai ficar tudo bem, posso compensar bebendo bastante água durante a semana. O pote de pimenta-do-reino olhou para mim, eu me fiz de desentendido, é claro. O amor é correspondido mas às vezes não estamos no momento certo, na vibe pra deixar acontecer: gastrite, úlcera, diverticulite. Melhor deixar pra um momento em que nós dois estejamos preparados para enfrentar esse relacionamento. Não agora.
A melhor parte do tempero é, na minha opinião o ácido que vem por cima, dando aquele toque todo especial. Limão, no meu caso, é sempre a melhor opção. Cortei ao meio o verdinho brilhoso já entusiasmado para fazer caldo com aquela estrutura verde-clara. Quando lembrei que ensopar os tomates não poderia trazer muitos benefícios, afinal de contas tudo em excesso dá problema. Mantive umas poucas gotas, talvez 4 ou 5, afinal sentir o sabor não é tão importante assim. Segue o jogo. Salada pronta. Agora era só mexer tudo e correr pro abraço.
Pego um tomate com a colher de metal e cabo de mesma cor do fruto e me rendo para saboreá-lo. Próximo da boca, me deparo com um detalhe: a pele. A pele do tomate estava ali. A mais pura concentração de agrotóxicos temperada com limão e sal, com um pouco de chia que coloquei depois pra ajudar na saciedade. Chia é ótimo, sabia? Chia a gente come com tudo. Tentei tirar as peles, consegui. Otimista que estava, convenci a mim mesmo de que os fiapos arenosos e vermelho-água que haviam sobrado constituíam alguma espécie de salada de tomate bem temperada, nutritiva e saborosa, pronta para ser ingerida. Comi tudo, todos os dez pedaços malfeitos que restaram da saga que se iniciou no supermercado.
Mas e a fome? Eu perguntei. E o sabor? E o prazer da comida de raiz cheia de temperos, aromas e sutilezas?
O sabor é idealização, eles disseram. O sabor a gente resolve com chia. Chia ajuda na saciedade, sabia?