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Do morro para a nação

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O samba como cultura de resistência negra, nas suas origens e na atualidade

Foto: autoria própria

Ser um ritmo que surgiu do povo preto, ainda nos dias de hoje é resistência”, afirma Ivo, presidente do Coletivo Samba de Bauru, sobre o samba. O gênero musical surgiu em um contexto de segregação racial, durante um período crucial da formação da sociedade brasileira, entre 1870 e 1930. Segregação, violência e brutalidade marcavam o cotidiano da população negra. Assim, as músicas do período abordam tais injustiças.

As raízes do gênero podem ser traçadas desde a imigração forçada dos povos escravizados vindos do continente africano, como destaca a Prof. Dra. Kelly Magalhães, da Unesp Bauru. Os costumes e tradições dessa cultura tão plural se miscigenaram com a cultura brasileira. O batuque – dança africana acompanhada de percussão –, ao se misturar com o nosso território, dá uma possível origem ao ritmo.

O canto e a dança das rodas de música serviam também para reforçar o costume religioso desse povo. Magalhães entende que a identidade do samba é criada através da relação desses sujeitos. “Por mais que seus corpos e sua força de trabalho fossem explorados, o espírito desses indivíduos eram livres e capazes de criar e ressignificar sua existência”, reflete a professora.

Para pintar o cenário do período posterior, a Casa da Tia Ciata é destacada por Ivo Presidente. Mulher negra e Mãe de Santo, Tia Ciata realizava cerimônias religiosas e, em seguida, festejava com violões, pandeiros, ganzás e muito samba, interligando esses elementos desde a sua origem.

Para seguir tocando o samba, Ivo afirma ser necessário respeitar a ancestralidade do gênero. Essas pessoas receberam muita discriminação e foram criminalizadas apenas por terem um pandeiro na mão. Magalhães aponta que a perseguição da população que vivia nos morros tinha frequente presença da polícia, com abordagens violentas. Assim, é criada a figura do “malandro” e a cultura negra é reprimida sob o pretexto da “vadiagem”.

O livro “O Mistério do Samba”, de Hermano Vianna, busca entender a passagem da criminalização do ritmo até o símbolo de identidade nacional visto hoje em dia. O samba foi reprimido nos morros cariocas e nas ‘camadas populares’ em um primeiro momento. Posteriormente, ganha espaço no carnaval e nas rádios, símbolo da cultura brasileira. Dessa forma, se torna uma imagem pintada pelo Estado “para estrangeiro (e brasileiro) ver”.

Foto: autoria própria

“As pessoas amam a cultura negra, querem estar próximos dela, mas não querem estar próximos do negro, do produtor dessa cultura”, associa o ativista antirracista e Prof. Dr. Juarez Tadeu de Paula Xavier, a um projeto estatal brasileiro. O antropólogo brasileiro Peter Fry também tem sua hipótese. Para ele, converter símbolos étnicos em símbolos nacionais trabalha para ocultar a situação de dominação racial vivida por essa população. Além disso, também torna mais difícil denunciar a opressão.

O Estado, então, se organizou para conter a cultura pulsante dos morros. Traços de eugenia e higienismo são impostos pelo governo, sendo essa uma corrente teórica de ‘limpeza’ das cidades e costumes, reforçando a segregação racial. Para Juarez, a origem disso seria o “medo do morro descer”, partindo das classes dominantes e influenciado pela Revolução do Haiti. Uma das muitas consequências desse medo é a criação da política militar do Batalhão da Regência, com uma característica presente ainda hoje, segundo o professor. A preservação da vida de uma minoria branca.

Você tem esse fenômeno muito interessante no Brasil: a tentativa de tornar nacional a cultura negra, mas sem o negro. Apagando as raízes africanas.” – Juarez Xavier

Graduada em Arquitetura e Urbanismo, Kelly Magalhães também vê os reflexos dessa política histórica na paisagem das cidades. O Rio de Janeiro tem as diferenças estampadas no cenário, com a tensão entre morro e cidade. Tal qual a composição de Wilson das Neves, “o tema do [samba] enredo vai ser a cidade partida”.

O dia em que o morro descer e não for carnaval, ninguém vai ficar pra assistir o desfile final; Na entrada rajada de fogos pra quem nunca viu; Vai ser de escopeta, metralha, granada e fuzil (é a guerra civil)” – O Dia Em Que O Morro Descer e Não For Carnaval, canção de Wilson das Neves.

O Carnaval

Elemento articulador da difusão do samba, o Estado utilizou o carnaval para apresentar o samba enredo para a elite. Com forte exaltação às belezas naturais e à ‘democracia racial’ brasileira, cria-se um mecanismo que aproxima a cultura negra da burguesia, porém excluindo o povo preto dos espaços públicos, conforme explica Juarez Xavier.

A fusão entre o gênero musical e a festa de origem europeia ocorre entre o final do século XIX e o início do século XX. Chiquinha Gonzaga – uma mulher negra, filha e neta de mulheres escravizadas – é associada à junção dessas duas manifestações culturais. Ao juntar o ritmo negro africano (maxixe) com o carnaval, surge a primeira marchinha específica para a festividade carnavalesca: “ô abre alas, que eu quero passar…”

Para Juarez, isso demonstra que toda manifestação popular brasileira é negra. Como maioria social no território brasileiro e presente nas áreas de segregação e brutalidade do Estado, o povo negro se identifica com essa cultura. Dessa maneira, a música popular é a plataforma sobre a qual denunciam o racismo e propõem possibilidades em relação a injustiça.

A arte, a partir da estética, é uma forma desses grupos sociais compreenderem a realidade na qual vivem. Citando a música “Identidade”, de Jorge Aragão, Ivo interpreta a frase “elevador é quase um templo” ao racismo cotidiano. Denuncia a ideia de que brancos e pretos não podem ter o mesmo ambiente, e que o povo negro deve ser deslocado a um ambiente onde seja rebaixado socialmente. O samba, então, desperta sentimentos que atrapalham o status-quo.

A Escola de Samba Grande Rio é citada pelo professor por trazer ao carnaval a figura de Exú, estigma da cultura religiosa popular. Para Juarez, é importante lidar com esses elementos fundamentais, por conta da tensão entre uma tentativa de ‘branqueamento’ oposta ao ‘enegrecimento’ dessas manifestações. Há, portanto, uma disputa narrativa, política e social em torno desses elementos.

Esse embate ideológico coloca o carnaval sob uma nova lente. Parte da economia criativa no Brasil, hoje o evento reproduz interesses e privilégios dos setores brancos e capitalistas, segregando a população negra. “Dos bilhões que o carnaval gera, a população negra tem uma quantidade muito pequena”, afirma o professor.

Foto: autoria própria

Mercantilização

Se o povo preto soubesse o tamanho da força que tem na mão, nenhum senhorzinho levantava o chicote pra gente mais”, impõe o sambista Ivo Presidente. “Ninguém ia dizer pra gente o que fazer, quando fazer, e sim nós iríamos dar as cartas e nos colocar como protagonistas desse evento que é o samba”, conclui ele. Coordenador do Coletivo Samba, Ivo vê o entretenimento buscar desassociar o samba do seu espaço de ancestralidade e resistência.

Xavier enxerga a existência de um samba próximo ao hegemônico, totalmente comercializado e que não tem compromisso com a realidade. Ademais, um estilo propagador de fabulações, romântico e que ignora a existência do racismo. Ambos esvaziam o gênero de sua importância social, negando a política de enfrentamento que originou o ritmo.

Foto: Sam Moghadam

Para o ativista antirracista, o mercado se apropria desse símbolo e não se preocupa com a condenação do genocídio da população negra. As culturas populares são importantes pois são a alma do povo que a constrói. Ao se apropriar dela e não se mobilizar de acordo com o que ela denuncia, Juarez Xavier entende que as manifestações se tornam legitimadoras da segregação e da violência por uma classe média branca. Ivo também destaca a apropriação cultural do samba como geradora de dinheiro para essa elite, o que acredita estar vinculado a uma herança escravagista.

O samba resiste às pressões capitalistas e raciais em produções contra hegemônicas, ao buscar resgatar as raízes de resistência do gênero. O Coletivo Samba de Bauru, coordenado por Ivo, é um projeto que busca justamente essa retomada. Segundo o Presidente da associação, são as raízes do samba que permeiam o consciente coletivo artístico das pessoas. O samba é poesia consciente.

Resistência

Para o presidente do Coletivo Samba, buscar a conquista do capital gerado pelo ritmo para o seu povo é uma forma de resistir ao sistema racista. Mais do que isso, busca reviver as canções ligadas à negritude e ao protagonismo negro, para não deixar a ‘mesmice’ do mercado contaminar sua cultura.

“Como sambista, eu realmente teria uma grande dificuldade de ser o que eu sou se não houvesse o samba”, conta Ivo. Para ele, a música denuncia os desafios do cotidiano e fala das relações de amor entre pessoas. Assim, acredita que isso permite uma maior compreensão da vivência em sociedade e como ser humano.

Se na passagem do século XIX para o século XX acreditava-se que a população negra seria extinta do Brasil junto de suas manifestações culturais, nós fizemos o contrário”, se orgulha Juarez. “Nós não apenas sobrevivemos, mas criamos cultura, organizações políticas, nos mobilizamos. Criamos aspectos conceituais teóricos de percepção da realidade político-social.” – Juarez Xavier

O professor Juarez vê esperança nas comunidades de samba. Ao sair da linha comercial e mergulhar nas tradições, é possível uma reorganização da maneira de viver o ritmo e reestruturar suas raízes. Enquanto a comprometer o samba com um projeto político social possibilita voltar-se para a questão racial e para a luta contra o genocídio negro.

O samba está mais próximo de Exú e da paixão pela rua do que de uma estética de subserviência, conclui o professor. Exú leva vantagem, então, sobre o estatuto branco racista da sociedade brasileira, conforme afirma Juarez com um riso.

Foto: autoria própria

Ivo realiza um importante trabalho de resistência no Coletivo Samba. Coloca seus artistas pretos como protagonistas do gênero musical, os efetivos detentores dessa cultura. As canções que reverberam também são formas de resistência. Abordam o povo preto, falam das religiões de matriz africana e seus orixás, além de discutir questões sociais com quem estiver disposto a ouvir. “Quando você canta um samba que faz a pessoa pensar, aquilo incomoda a sociedade, incomoda o sistema”, diz o presidente do Coletivo. “Faz com que desperte naquela pessoa uma revolta do que tá acontecendo.”

Na política, Kelly Magalhães também ressalta a importância da construção de editais, leis de fomento e de proteção ao samba e entendimento do ritmo musical como patrimônio imaterial. Assim, vê essas alternativas como formas de resistência no samba, com a denúncia das condições sociais do povo que o pratica.

“Colocar a resistência do samba, fazer com que as pessoas ouçam a nossa voz e se propõem a escutar toda essa carga cultural que o samba traz”, conclui Ivo Presidente sobre a sua missão, auto imposta ou designada, no mundo.

A reportagem “Do morro para a nação” e o site “Raízes do Samba” foram produzidos como trabalho final da disciplina de Jornalismo Especializado II, ministrada pela Prof. Dra. Ângela Maria Grossi. Com o formato hipermídia, busca fomentar a cultura e valorizar a memória do Samba, além de entender a maneira como se transforma e se manifesta nos cenários urbanos no interior dos Estados. Procura traçar também a conexão entre o carnaval brasileiro e o samba.

Isabela Batistella

Graduanda em Jornalismo pela Unesp Bauru, participei de diversos projetos de extensão como o Jornal Voz do Nicéia, Impacto Ambiental, RUV e LECOTEC. No mercado, atuei nas áreas de Marketing e Social Media para a Agência Desco e para a Elife. Apaixonada por fotografia, meus interesses também passam pela cultura (principalmente jogos e animações), até política e sociedade. Conto com nível avançado de inglês e estou sempre em busca de evoluir enquanto profissional.

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