Por Bruno Ribeiro e Fabio Toledo
Transexual. Crossdresser. Drag Queen. Travesti. O que pode parecer terminologias confusas ou indevidas para muitas pessoas, acaba sendo a mais íntima identidade para outras tantas que não se reconhecem com o sexo que lhes foi atribuído no momento em que nasceram. São os chamados transgêneros.
A ciência ainda tenta desvendar o porquê isso acontece – e há quem defenda que a causa pode ser genética, hormonal ou social. O que se sabe, com certeza, é que tal diversidade de identificações constitui um dos assuntos mais delicados e espinhosos de toda a sociedade. Porém, antes de chegar a qualquer tipo de conclusão, é preciso responder a algumas questões primárias.
De acordo com a psicanalista Júlia Bárány, a compreensão começa a partir de conceitos biológicos. “Gênero é o princípio ativador na natureza que se expressa em dois – o masculino e o feminino – que se unem para gerar vida. A própria palavra vem do indo-europeu e significa ‘gerar’, ‘engendrar’, ‘fazer nascer’. Mas esses dois princípios não necessariamente estão em corpos separados na natureza. Em alguns reinos, a geração acontece num corpo só, andrógino. Em outros, cada princípio é preponderante em si próprio e esses corpos se unem para gerar um terceiro”, afirma a profissional.
Ao estudarmos a embriologia humana, verificamos que, de início, o corpo não apresenta nenhuma identificação de gênero, embora já tenha sido determinado na concepção pelo cromossoma sexual do espermatozoide – X para menino e Y para menina. Contudo, o cérebro só se desenvolve depois. Neste processo, uma alteração hormonal pode diferenciar o sexo determinado pelos genitais do que diz o cérebro. Tal linha de raciocínio converge com o ponto de vista psicológico, conforme explica Júlia.
“Temos os dois princípios em cada um de nós, que são ativados conforme a tendência de cada um, e o estímulo ou a repressão exercida pelo ambiente social e cultural. Portanto, a alma é de natureza andrógina. Em crianças pequenas, não existe distinção natural entre meninos e meninas. Essa distinção vai acontecendo conforme suas tendências inatas as fazem se sintonizar com um gênero ou outro, e se espelham nos adultos ao seu redor, adquirindo assim comportamentos condizentes com um ou outro gênero”, afirma a psicanalista.
Ou seja: tal vertente defende que uma alma masculina pode estar dentro de um corpo com genitália feminina, e uma alma feminina pode estar num corpo com genitália masculina.
O que acaba confundindo tanto quem vê a situação de fora como quem vive isso na pele é o fato de que a expressão sexual não segue padrões rígidos de gênero – por isso a coexistência das diferentes orientações (heterossexualidade, bissexualidade, homossexualidade) com a transsexualidade. Em síntese, o cérebro e os genitais têm funcionamentos distintos na construção da identidade: o sexo é biológico, enquanto o gênero é social, argumentam os estudos da área.
Porém, para Luiz Fernando Uchoa, 33 anos, a sociabilidade proporcionada aos transgêneros ainda é muito deficitária. “A informação disponível em redes sociais e na internet me ajudou a entender que não sou único no mundo a ter esse sentimento de inconformidade com o gênero de nascimento e também a explorar caminhos para a minha transição. Se a sociedade fosse mais aberta para o debate com relação à diversidade de identidades de gênero e orientações sexuais existentes, travestis e transexuais poderiam frequentar a escola, universidade, acessar o mercado de trabalho formal, a saúde e todas as instituições sociais sem sofrerem com a falta de respeito ao seu nome social, identidade de gênero, violências físicas e psicológicas”, afirma o homem trans, que é jornalista e escritor.
Estima-se que a primeira cirurgia de redesignação sexual realizada no Brasil data de 1971. O procedimento tem o objetivo de alterar o genital do indivíduo. Apesar de tantas décadas, somente a partir de 2008 o Sistema Único de Saúde passou a oferecer assistência e procedimentos para modificações corporais aos transgêneros, incluindo o tratamento hormonal. Contudo, até 2013, não incluía a redesignação de mulheres para homens. Ou seja, os avanços vêm aos poucos, e carregados de muita burocracia.
Para ter uma ideia, o Ministério da Saúde estabelece idade mínima para o acompanhamento multiprofissional e a hormonoterapia. Já os procedimentos cirúrgicos requerem que o indivíduo alcance a maioridade. Além disso, por poucos hospitais disponibilizarem médicos especialistas, estima-se que o tempo de espera dure 20 anos ou mais. Assim, muitos procuram médicos particulares ou viajam ao exterior – para países como a Tailândia – onde o procedimento é menos burocrático.
“No caso de se tratar de uma pessoa que ainda não entrou na puberdade, o procedimento é peculiar. Uma vez feito o diagnóstico, o psicólogo e o psiquiatra não emitem um laudo visando encaminhar a criança para o endocrinologista com o objetivo de aplicar-lhe os hormônios do sexo oposto ao de nascença. Os laudos visam a encaminhar a criança com o objetivo de que este ministre hormônios que visam impedir que o seu desenvolvimento atinja a puberdade. E isso se mantém até que a pessoa tenha a certeza de que quer fazer a transição completa com a cirurgia”, explica o psicólogo Luiz Marcello de Aguiar.
Enquanto os androgênios causam efeitos como voz grossa, aumento de massa muscular, redução de gordura, agressividade, crescimento de barba, cessação da menstruação, aumento da oleosidade da pele, queda de cabelos e acne, os derivados estrogênicos permitem o crescimento das mamas, redução da massa muscular, disfunção erétil, pele menos oleosa e rarefação dos pelos. “As mudanças iniciais ocorrem já nos três primeiros meses e a mudança corporal completa ocorre num período em torno de três a cinco anos. Esse período de mudanças é semelhante tanto em FTM quanto em MTF”, explica o profissional.
“Desde a infância, eu gostava de coisas de menino: roupas masculinas, brinquedos como carrinho, pião e skate”, conta Rafael Rodrigues de Oliveira, 23 anos, homens trans, que percebeu estar errado ao se assumir como lésbica aos 18 anos de idade. “Só com 23 me assumi como homem trans hétero. Realizo a terapia hormonal há um ano. Quando a voz mudou e a barba começou a crescer, não cheguei e contei isso pra minha mãe ou para meus amigos para, então, notarem. Foi a mudança física que fez isso por mim”.
As escolhas feitas por Rafael fizeram com que sua jornada rumo ao descobrimento e aceitação de sua identidade se tornasse arriscada. E ele mesmo reconhece: “comecei a fazer terapia hormonal por conta – mas não indico ninguém a fazer isso. Comprava os anabolizantes sem receita e aplicava. Fiquei cinco meses fazendo isso porque tinha receio do endócrino não me receber bem, recusar a terapia ou solicitar que fizesse acompanhamento psicológico antes. Mas, então, resolvi passar no médico para comprar o hormônio com receitas. Ele não é especializado na área de transexuais/transgêneros, porém, na consulta, não tive problemas com o profissional. Ele me recebeu super bem, disse que eu era o primeiro caso dele, pediu alguns exames e, vendo que estava tudo bem, receitou a testosterona”, revela.
A cirurgia de redesignação sexual, por sua vez, não parece estar em pauta. Pelo menos por enquanto. “Minha genitália não é algo que me incomoda. Digo, não ao ponto de me frustrar, mas se tiver a oportunidade de fazer a cirurgia, faço com certeza. Vou me empenhar ao máximo para conseguir”.
Porque toca a expressão de liberdade de cada um. Muitos ainda classificam a questão de gênero como uma opção ou uma questão de “se sentir” mulher ou “se sentir” homem. Mas o gênero não é uma opção. A pessoa não escolhe ser de um jeito ou de outro – é uma tendência do próprio ser. O problema é que, muitas vezes, essa tendência acaba sendo deturpada ou impedida de se expressar genuinamente. Isso ocasiona todo tipo de neuroses, psicoses e infelicidades.
“Um pai abusivo ou uma mãe abusiva podem provocar tanta aversão na criança que ela nunca vai querer ser igual, e se força a escolher o sexo oposto. Também pode acontecer de a criança abusada por um pedófilo, por exemplo, aprender a expressar sua sexualidade daquele jeito, mesmo não sendo essa a sua essência”, explica Júlia.
No entanto, não restam dúvidas de que as transformações cirúrgicas e hormonais sejam os fatores mais incômodos diante do debate público. Ainda na década de 60, o professor de psiquiatria na Universidade da Califórnia, Robert Stoller, inovou ao desenvolver pesquisas que mesclavam aspectos fisiológicos com culturais, sociais e históricos. E, ao término de seus estudos, cunhou uma das máximas do universo transexual: é mais fácil mudar a genitália de alguém do que sua mente.
Por investirem no processo de transformação dos corpos, os transgêneros acabam sendo discriminados de forma desproporcional até mesmo em comparação ao restante da comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transsexuais e Transgêneros). Essa adequação da identidade e do corpo não é fácil. No Brasil, não há nenhuma lei específica para a mudança de nome e gênero. Os interessados devem entrar na Justiça para pedir a retificação, e o processo requer testemunhas e avaliação médica.
Segundo uma nota publicada pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Fernando Arêas Rifan (foto), Bispo da Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney (Rio de Janeiro), acredita que “as expressões gênero ou orientação sexual referem-se a uma ideologia que procura encobrir o fato de que os seres humanos se dividem em dois sexos. Segundo essa corrente ideológica, as diferenças entre homem e mulher, além das evidentes implicações anatômicas, não correspondem a uma natureza fixa, mas são resultado de uma construção social”.
E ele vai além, justificando as possíveis motivações. “Os que adotam o termo gênero não estão querendo combater a discriminação, mas sim desconstruir a família (…) e, deste modo, fomentam um estilo de vida que incentiva todas as formas de experimentação sexual desde a mais tenra idade”, concluiu o Bispo. Para Júlia, a questão é totalmente diferente.
“Vejo que temos muito que aprender, pois alguém que se sente mal no corpo em que está, então precisa de uma solução. Se uma abordagem psicológica amorosa e compreensiva não resolveu, e a pessoa chega à convicção que uma cirurgia resolve, por que tornar isso quase um crime? Se alguém tem orelhas de abano e sofre com isso, faz plástica e resolve, não é? Ou vamos tornar isso um quase crime também?”, indaga a especialista.
Contudo, independentemente da crença ou ideologia, o importante é que todos da sociedade – sobretudo os pais – estejam conscientizados de que a tolerância com as diferentes naturezas gera menos sofrimento. E com isso, todos saem ganhando.
“É preciso ensinar respeito, responsabilidade, disciplina, moral e integridade. Com essa base, as crianças construirão um mundo melhor para si e para os outros”, explica a psicanalista. “Juntar-se já deu resultado em outras questões espinhosas. Penso que, com os trans, é bom criar comunidades em que essas pessoas possam trocar experiências, apoiar-se mutuamente e eventualmente conseguir ter seus direitos respeitados como qualquer outro cidadão”, finaliza.
A Organização Mundial da Saúde mantém o “transexualismo” como um distúrbio mental. A alteração somente deve ser feita em 2018, quando a 11ª versão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11) será discutida. Um dos aspectos a serem apresentados vem de uma pesquisa liderada por cientistas desenvolvida no México, a qual demonstra que os transtornos psicológicos entre os transexuais é fruto da violência e discriminação sofrida, não por conta da transexualidade.
A nova designação será chamada “incongruência de gênero”, voltada para a área de saúde sexual. Embora manter a questão de gênero apenas nesta categoria e não como algo social ainda promova conflitos, é visto como um avanço para a causa trans. “Assim podermos ter o poder de realizarmos o que desejarmos em nossos corpos sem a permissão de outras pessoas ditas especialistas. Pois, uma pessoa cis pode realizar qualquer procedimento cirúrgico sem passar por esse tipo de violação e a retificação de nome e gênero nos documentos se tornaria um procedimento administrativo meramente pertencente ao campo jurídico”, conta Luiz Fernando.
Enquanto a OMS busca avançar uma casa no reconhecimento dos transgêneros, o embate político entre defensores e opositores dos direitos das pessoas trans segue de maneira intensa. Assim, ao mesmo tempo em que avanços nas políticas públicas acontecem, retrocessos são provocados.
Em abril de 2016, a então presidente do Brasil Dilma Rousseff assinou o decreto que autoriza o uso do nome social de travestis e trans no serviço público. Minas Gerais também aderiu à prática em janeiro deste ano. A alteração do registro civil é permitida para transgêneros, mesmo que não tenha feito cirurgia de redesignação sexual. No entanto, ela ainda está restrita àqueles que comprovem, por meio de laudos psicológico e psiquiátrico, o “transexualismo”, ainda baseado no CID-10.
Vem de 2013 um projeto de lei que procura dar direito à identidade de gênero aos trans, alterando o registro de sexo, bem como do nome e da imagem. “Entende-se por identidade de gênero a vivência interna e individual do gênero tal como cada pessoa o sente, a qual pode corresponder ou não com o sexo atribuído após o nascimento, incluindo a vivência pessoal do corpo”, refere o artigo 2º da PL 5.002/2013, conhecida como Lei João W. Nery ou Lei de Identidade de Gênero, criada pelos deputados Jean Wyllys e Erika Kokay.
Embora esteja desde 2013 no Congresso, a PL encontra muita objeção pela ala conservadora do Poder Legislativo, atualmente em número considerável. A principal discussão está no artigo 5º, que daria o direito a identidade de gênero aos menores de idade. “Entre outras coisas, foi dito que meu projeto pretendia ‘obrigar as crianças a mudar de sexo’, que os pais poderiam obrigar seus filhos a mudar de sexo. Os fundamentalistas não apenas pensam que gays e lésbicas somos zumbis à procura de vítimas para converter, como também não entendem a diferença entre orientação sexual e identidade de gênero”, observa o deputado federal Jean Wyllys em um artigo publicado em seu site.
Apesar de todas as adversidades Luiz Fernando acredita que o debate – sobretudo nas escolas – é a chave principal para que os transgêneros, enfim, sejam aceitos em sua essência. “Temos de lutar por uma educação em todas as instâncias (infantil, fundamental, médio e superior) em que se discuta abertamente machismo, misoginia, transfobia, homofobia, racismo e outros temas que são, infelizmente, causadores de mortes e agressões por aquelas pessoas dissidentes do modelo cis heteronormativo. Quando o modelo educacional for algo pensado por educadores sem a regulamentação de políticos enviesados com dogmas religiosos, será possível um modelo social em que as famílias, amigos, colegas de trabalho e outros vejam a transexualidade como mais uma possibilidade de gênero, e não como algo aversivo”.
Tomboy (2011)
http://www.youtube.com/watch?v=hqe-PdHy_Pk
Transamérica (2005)
Beautiful Boxer (2003)