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A acessibilidade dentro do espaço público

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No Brasil, políticas públicas sobre mobilidade urbana acessível ainda são insuficientes
Por André Magalhães, Camila Gallate e Laís Cordão
De acordo com um censo divulgado pelo IBGE em 2010, o Brasil possui aproximadamente 45,6 milhões de pessoas que apresentam algum tipo de deficiência. Isso equivale a – aproximadamente – 23,9% da população brasileira. Porém, a falta de discussão política sobre estas pessoas contribui para a invisibilidade das mesmas, representando, dessa maneira, um grande obstáculo para o planejamento e implementações de políticas de desenvolvimento que promovam a acessibilidade na esfera pública da sociedade. Segundo a convenção das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, é entendido como deficiente aqueles que tenham “impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”.
Visando a inclusão desta parcela da sociedade, a Lei de Inclusão Social foi aprovada em 2004, exigindo que empresas que possuem acima de cem funcionários reservem, pelo menos, de 2 a 5% das vagas para deficientes. Alexandre Carvalho, ex-presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade), afirmou em entrevista que uma das maiores complicações para o deficiente é a “aceitação dos colegas de trabalho, assim como a adaptação da própria empresa como acessos com rampas ou então para comunicar-se, tratando-se de cegos e surdos”. Por isso, a participação de pessoas que declaram algum tipo de deficiência ainda é baixa: 53,8% estão desocupados ou fora do mercado de trabalho. Dos que estão ativos, somente 40,2% possuem carteira assinada.
Dentro das universidades, a realidade apresenta números um pouco mais animadores: o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) divulgou que a matrícula de deficientes em universidades aumentou 518,66% entre 2004 e 2014. Porém o número de ingressantes corresponde a somente 0,42%.

Diferenças

Michele Simões no São Paulo Fashion Week (Foto: Reprodução/Guia do Viajante Cadeirante)


Michele Simões é cadeirante formada em design de moda. Em 2013, ela decidiu fazer um intercâmbio para Boston, porém não encontrou informações específicas para a longo prazo de viagens para deficientes. Ela conta que não havia nenhum direcionamento na internet, ou em agências, para esse tipo de viagem. Foi quando decidiu criar o blog Guia do Viajante Cadeirante. Realizando sua primeira viagem internacional sozinha desde o acidente em 2006, ela conta que houveram momentos de insegurança, mas ao chegar nos Estados Unidos encontrou uma realidade diferente da brasileira. “Foi lá que percebi o quanto o Brasil estava atrasado, porque eu conseguia pegar metrô, ônibus”, relata. “O que me surpreendeu muito foi o fato de conseguir fazer todas as atividades que todas as outras pessoas que estavam comigo conseguiam fazer”.  
Quando comparada ao Brasil, ela explica que a situação é muito diferente: “Aqui eu preciso me certificar de tudo para saber se vai ter pelo menos um banheiro acessível”. Segundo ela, as dificuldades muitas vezes começam no próprio prédio por falta de rampas de acesso e as calçadas nas ruas. O transporte público também não é preparado: “Quando eu fui pegar ônibus em São Paulo o motorista disse que não sabia lidar comigo e que não estava acostumado (a receber cadeirantes)”. O que, em sua opinião, é o que gera o preconceito. “Se as pessoas (deficientes) conseguissem ir para as ruas, o outros ficariam mais acostumados”.
Outra motivação que Michele encontrou no exterior foi conviver com pessoas com outros tipos de deficiência: “Eu vi um cara que só conseguia mexer o queixo e ele passava todo dia na frente da escola com um cachorro preso ao lado da cadeira de rodas”. Também conheceu uma amiga que lhe apresentou a zumba para deficientes, encontrando mais liberdade e menos preconceito do que dentro de casa: “Minha maior descoberta foi entender que a minha lesão não era tão grave assim. Porque quando você consegue levar uma vida normal, percebe que o problema é a acessibilidade e não a deficiência”.

No Brasil e no mundo

A nível internacional, a discussão sobre políticas públicas relacionadas a pessoas com deficiência é relativamente recente. Apenas em 2006 a Organização das Nações Unidas elaborou a Convenção sobre Direitos Para Pessoas com Deficiência. Com 50 artigos que discutem desde a situação de mulheres e crianças com deficiência até a inclusão na prática de esportes, possui os seguintes propósitos: “promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente”. O texto foi assinado por 160 países e ratificado em 89 desses, incluindo o Brasil que o decretou em 2008.
Na legislação nacional, a Lei de Inclusão Social é uma das primeiras que abordam direitos e cotas para pessoas com deficiência. No ano 2000 foi promulgada a lei de número 10098, conhecida como “Lei da Acessibilidade”. Em seu texto original, ela estabelece “normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, mediante a supressão de barreiras e de obstáculos nas vias e espaços públicos, no mobiliário urbano, na construção e reforma de edifícios e os meios de transporte e de comunicação”.
As barreiras em questão são divididas em quatro: arquitetônicas urbanísticas, arquitetônicas na edificação, arquitetônicas nos transportes e de comunicações. Essas são as regras de acessibilidade que necessitam ser seguidas em todas as construções urbanas, principalmente na área pública. Pela primeira vez, surgia uma legislação que previa a modificação do espaço urbano voltado para pessoas com deficiência.
Entretanto, as cidades brasileiras ainda não conseguem apresentar um espaço adaptado em todo o território. De acordo com dados do portal Mobilize sobre as capitais do país, a com maior porcentagem de frota de ônibus adaptada para pessoas com deficiência física é Curitiba, com 92%. Brasília, a capital federal, tem a menor porcentagem, com apenas 31,7% da frota. (Veja gráfico abaixo).

Reprodução: Mobilize.org


Com relação a rampas para cadeirantes, os números são muito menores. O mesmo estudo reuniu também quantos domicílios possuem rampas no entorno, e a capital com maior porcentagem é Campo Grande com apenas 24,7% do total. A cidade de Fortaleza é a última no ranking, com apenas 1,6% de todos os domicílios equipados para tornar o ambiente mais acessível. (Veja abaixo).

Reprodução: Mobilize.org


O diretor de jornalismo do Mobilize, Marcos de Sousa, entende que o cenário atrasado do país com relação a políticas públicas acessíveis é uma questão histórica. Em entrevista, ele contextualizou: “se você olhar essas cidades da Alemanha ou do Japão há cinquenta anos, provavelmente elas não tinham o nível de acessibilidade que tem hoje. Foi um processo que aconteceu ao longo do tempo, à medida que a sociedade foi entendendo que era necessário criar condições para pessoas que tenham alguma deficiência funcional”. Para Marcos, as mudanças na área urbana também são voltadas para as pessoas idosas, que possam apresentar problemas de locomoção.
No Brasil, por outro lado, isso demorou a ser estudado por causa da idade média da população. “Até pouco tempo atrás, éramos considerados um país jovem, a pirâmide demográfica mostrava isso, nós tínhamos pouca gente idosa e muita gente jovem”, explica Marcos. “Hoje, estamos passando por um processo diferente, estão começando a acontecer mudanças, tem mais gente idosa aparecendo, a população está envelhecendo, o que vai fazer com que nos próximos anos a gente enfrente um desafio grande em relação à questão da acessibilidade. Nós estamos num estágio anterior um pouco por conta de nossa história. Tem questões políticas e questões administrativas que fazem que os gestores públicos deem pouca atenção ao problema”, completa. O diretor defende que uma cidade acessível é boa não apenas para deficientes, mas também para crianças e idosos.
Nos últimos anos, a mobilização pela acessibilidade é forte tanto pela internet como através de instituições e organizações que trabalham com o assunto. O Mobilize, por exemplo, é um portal dedicado à mobilidade urbana no Brasil, e um de seus trabalhos é acompanhar os avanços das políticas públicas entre as capitais do país. O portal desenvolveu o relatório Calçadas do Brasil, que avalia a condição das calçadas nas principais cidades brasileiras. “Há um movimento muito forte nesse momento de organizações que trabalham com o deficiente físico, que trabalham para melhorar a mobilidade urbana e também aquilo que se chama de ‘caminhabilidade’  (termo do inglês walkability) em que as cidades precisam oferecer boas condições para que as pessoas possam fazer pequenos deslocamentos a pé, se quiserem”, acrescenta Marcos de Sousa.

Uma cidade para todos

Obra em calçada: muitas ruas do país ainda não possuem adaptação (Foto: Dênio Simões/Agência Brasília/Flickr)


Na sociedade, a inclusão de pessoas com deficiência está diretamente ligada à integração destas na vida social, econômica e política, no qual é assegurado o respeito aos seus direitos nos domínios da Sociedade, do Estado e do Poder Público. E as políticas públicas surgem como necessidade para garantir a efetivação desses direitos. Porém, uma acessibilidade de qualidade depende estritamente da participação popular e do comprometimento do poder público.
Sendo assim, surgiram medidas legislativas para a substituição e adaptação dos espaços públicos para portadores de necessidades especiais. Os sinais de trânsito, por exemplo, devem contar com sinais sonoros para garantir a segurança da travessia das pessoas com deficiência visual, acesos através de rampas ou elevadores para as pessoas que têm dificuldade de locomoção, assim como espaços para cadeiras de rodas e para pessoas obesas em teatros, estádios, cinemas, transportes públicos. Os pontos de ônibus também devem conter cobertura, assentos e espaços que permitam a manobra de uma pessoa em uma cadeira de rodas, bem como informações sobre linhas, itinerários e horários dos veículos em Braile. Cada deficiência precisa de protocolos diferentes e específicos.
Ainda é necessário garantir uma melhor adequação na legislação voltada para pessoas com necessidades especiais no âmbito da educação, uma vez que esses profissionais encontram-se despreparados para atender este tipo de público – além de direitos ainda mais amplos como saúde, trabalho e lazer. Para tal devem-se destacar o direito a uma educação inclusiva e de qualidade, a tratamentos médico, psicológico e reparador, direito à segurança social econômica, ao emprego ou de participar de alguma atividade útil e remunerada. Em suma, direito este que suas necessidades especiais sejam incluídas no planejamento econômico social, de viver com a sua família e de participar de atividades sociais. Direito de ter uma vida digna e normal como qualquer outro ser humano, de viver em um ambiente em que possa desenvolver suas habilidades sem depender de terceiros, desenvolvendo sua autonomia e independência.
A ideia de acessibilidade foi se ampliando ao longo do tempo e atualmente se fala em 6 tipos diferentes.

  • Arquitetônica: tudo o que refere-se ao cuidado com obstáculos físicos e do ambiente. São as rampas, elevadores, indicadores para portadores de deficiências visuais, banheiros adaptados a pessoas com deficiência física.
  • Comunicacional: esse tipo envolve várias medidas que diz respeito ao diálogo interpessoal, comunicação escrita e virtual, como a escrita em braille, a adaptação de computadores, a presença de intérpretes de libras e o uso de letras maiores em textos para pessoas com baixa visão, por exemplo.
  • Metodológica: os métodos e as técnicas de trabalho não devem promover diferenciações que excluam ou criem barreiras à participação de pessoas com deficiência. Isso vale para a ergonomia, treinamentos, plano de carreira e avaliação de desempenho.
  • Instrumental: também está ligada ao ambiente, mas possui relação com os instrumentos utilizados no trabalho. Aqui é preciso pensar em materiais de escritório e objetos usados nas tarefas do dia a dia – canetas, ferramentas, computadores adaptados, impressora.
  • Programática: relacionada à regras e políticas da organização. Essas normas devem ser construídas objetivando a inclusão e a aposta no potencial dos colaboradores. É preciso estar atento para não embutir ideias limitantes e impedimentos na construção dessas regras.
  • Atitudinal: ligada a atitudes da equipe frente às pessoas com deficiência. Envolve barrar estigmas, estereótipos e exclusões. Demanda, principalmente, políticas de conscientização dos profissionais e uma aprendizagem para lidar com a diferença.

O Brasil chegou a ser reconhecido como um dos países com a legislação mais inclusiva das Américas e essa avaliação positiva foi baseada principalmente na complexidade da nossa legislação, que compreende na proibição da discriminação, estabelece cotas para o mercado formal de trabalho e prevê garantias constitucionais de apoio financeiro. Contudo, o fato de possuir uma legislação inclusiva exemplar não tem refletido a realidade cotidiana das pessoas com deficiência no país. A inexistência de políticas públicas globais voltadas para o segmento e a irrisória assistência monetária e serviços disponibilizados não conseguem fazer frente às reais necessidades das famílias e dos indivíduos com deficiência, provocando a transferência de responsabilidade Estado – Organizações Não Governamentais (esta última que, inclusive, tem assumido importante papel na manutenção de serviços sociais e de apoio às famílias).
Esse fato da ausência de uma política global tem centrado as políticas em aspectos particulares da deficiência, sendo recente a inclusão de perspectivas mais abrangentes e integradas através do Programa Viver Sem Limites, do Governo Federal. O programa propõe ações características ao cuidado – quando o Estado adota uma política ofertante de serviços direcionados e subsídios de apoio. No entanto, dada à dimensão do país, além da negligência de estados e municípios, o projeto veio a fracassar. Dessa forma, políticas paralelas vão coexistindo, mas sem ligações entre si, admitindo falhas, duplicações e desgastes.
Independentemente de tudo isso, a vida e o cotidiano das pessoas com deficiência continuam limitados por um conjunto de problemas econômicos, sociais, físicos e atitudinais, impedindo-as de exercer seus direitos como cidadãos e de viver uma vida autônoma e independente. A evolução deste cenário só é possível na presença da singularidade das políticas voltadas para o segmento e, consequentemente, de seu comprometimento com a emancipação social do indivíduo – dando importância à realidade de seu cotidiano.
 

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Redação

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