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Gael Gramaccio quer os diamantes da sujeira

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Completando dez anos de carreira artística em 2022, o ator e colagista discorre sobre sua trajetória, suas referências e sua busca pessoal pelo sentido do seu trabalho

No quintal de sua casa, Gael reafirma seu percurso pela vida artística (Foto: Joyce Rodrigues)

São duas e meia da tarde de um domingo ensolarado e Gael Gramaccio tira um cigarro do bolso. Gael aguarda na calçada da quadra 11 da avenida Nossa Senhora de Fátima, nos altos da cidade de Bauru, o resto da equipe de gravação chegar até o local combinado dias antes. “Não sei por que fazem isso”, ele diz em voz baixa enquanto acende o cigarro, levemente irritado com o atraso. O início estava marcado para 13h30. O primeiro carro pára em frente ao casarão amarelo onde será montado o set para a gravação do clipe da nova música de Bebé Pacheco & Ubandu – banda bauruense formada por Bebé Pacheco, Júlio Calleja, Ed Florindo e Helton Camersan, e que tem Gael como o ator principal selecionado para contracenar com a vocalista.

O ator, performer e colagista de 28 anos está aproveitando o seu domingo de folga para trabalhar. Além de seu trabalho artístico, Gael atualmente é barman de um restaurante recém inaugurado na zona sul da cidade, onde é chefe de uma equipe com quatro pessoas. Essa não é a primeira vez que Gael trabalha preparando drinks: em 2019, entre gravações, projetos artísticos e ensaios de espetáculos, o ator também foi responsável pelos drinks de um dos bares mais tradicionais da avenida Getúlio Vargas, o Dona Maria. “Acho que [fazer drinks] tem algo de lúdico envolvido, assim como a arte… Eu gosto de deixar as pessoas ‘felizes”‘, me contaria Gael, aos risos, mais tarde naquele domingo. Este ano, entre conciliações de empregos formais com períodos de criação, Gael completa dez anos de trajetória artística na cidade de Bauru. Nascido em São Paulo, deixou a capital aos dez anos de idade para se mudar com a mãe e a avó para o interior do estado. O jazz foi o primeiro caminho que encontrou para se expressar através de seu corpo, aos 17 anos de idade, mas foi no teatro, que conheceu aos 18, que as coisas ganharam sentido. “Acho que foi uma sensação de pertencimento… Pela primeira vez na minha vida eu me senti útil. Por isso eu não largo o osso. Eu deveria estar me dedicando mais. Toda vez acho que tô gastando minha energia a toa”, ele me conta ao relembrar a sensação de estar em um palco pela primeira vez.

No set de gravação, por volta das 16h, quando o sol começa a dar trégua, Gael experimenta figurinos antes de começar. Camiseta de linho colorida, calça jeans preta e tênis preto compõem o seu look, ornando com o seu cabelo recentemente trançado. Este é o quarto clipe do ator. O primeiro, gravado em 2018, foi da música “O Cair da Babilônia”, do extinto grupo bauruense de rap Dilema, onde Gael é o protagonista. Suas outras aparições foram nos clipes “Bloodshot”, do artista IIIRUM e “Batuque Escravizado” do DJ e produtor K4HU3 – este último, nunca disponibilizado ao público. Entre pausa de cigarro, de cervejas e de cachorro-quente preparados pela mãe da vocalista, Gael dança com Bebé Pacheco em frente à uma câmera estática fixada em um tripé. Ambos contracenam soltos e em sincronia, ritmados com a música que toca no celular de um dos produtores. Dois ou três takes depois, uma mensagem recebida no Whatsapp preocupa o ator: um de seus funcionários do restaurante avisa que não poderá ir trabalhar. As próximas horas são de tensão para Gael, que por ser o chefe de bar responsável pela equipe, precisa encontrar alguém de última hora para substituir o funcionário faltante. “Se não encontrar ninguém, vou ter que voltar pra lá”, ele diz preocupado, enquanto faz ligações para conhecidos e tenta se comunicar com os funcionários que estão trabalhando no bar. Sem sucesso nas ligações, ele é chamado para continuar as gravações. A dança de Gael já não parece tão vigorosa quanto no início. 

No intervalo das gravações, Gael busca um substituto para a sua função de barman (Foto: Joyce Rodrigues)

Os empregos formais sempre estiveram na trajetória artística de Gael. Em seu currículo, constam funções de padeiro (seu primeiro emprego, ocasionado por uma formação no SENAI), atendente de telemarketing, garçom, barman e auxiliar de almoxarifado.” O currículo é quase tão extenso quanto sua carreira: na formação artística, Gael trabalhou (e ainda trabalha) com atuação, produção, performance, colagens manuais, roteiros e sonoplastia. Habituado com o horário matinal, ele sempre optou por empregos que encerrassem seu expediente antes do sol se pôr. Segundo ele, o fim da tarde é o melhor período para seu processo criativo. Mas nem sempre foi possível escolher: para Gael, muitas vezes seus empregos foram um empecilho para suas criações. “Vivia faltando no trabalho e ficava naquela coisa… Fico feliz de ter relaxado um pouco, porque também era meio exagerado, mas eu acho que dá pra fazer os dois, ter um emprego formal que você goste e um que você pode querer inclusive aprender mais sobre, e ter trabalhos artísticos.” Uma mistura de culpa e frustração parece abater as escolhas do artista que, segundo ele, sempre se questiona se deveria se dedicar unicamente a uma coisa ao invés de se desdobrar em várias funções. 

No fim da tarde, por volta das 18h e muitos takes depois, a boa notícia chega: uma funcionária poderá cobrir o expediente e Gael não precisará retornar ao restaurante. As gravações chegam aos seus momentos finais: uma câmera acompanha Gael, que agora veste uma camiseta florida e uma faixa amarela na cabeça, andando em linha reta em frente a um muro grafitado. Uma luz colorida incide sobre sua caminhada, dando a impressão de estar andando dentro de uma casa noturna. O mesmo movimento é gravado com a vocalista do clipe, que caminha no sentido oposto. A cena final aproveita o breu que se forma no céu antes do sol abaixar completamente. Ambos dançam felizes, com os corpos colados, enquanto são gravados em contraplano pelo cinegrafista. As gravações terminam. Satisfeitos com o dia de trabalho, todos aplaudem a conclusão. 

Dores da arte

Estamos sentados no Bar da Rosa, e Gael espera a coxinha de frango que pediu minutos antes da cozinha do bar encerrar as atividades. Na espera, o artista revela que não esperava passar pela tensão que passou durante a gravação do clipe, e ressalta sua paixão por sets de gravação. Pergunto em quantos sets ele já esteve e ele me diz que não se lembra. Eu o ajudo a recapitular: entre curtas-metragens, clipes e vídeo-performances, foram 15 trabalhos gravados em seus dez anos de carreira. Por que a paixão pelas câmeras? “Porque sou egocêntrico”, ele me responde, aos risos. “Eu gosto de me ver depois e pensar ‘nossa, eu não me via com esses olhos’ ” . Entre os trabalhos gravados, dois trabalhos são espetáculos: “Madame Satã” e “Sacerdócio”, gravados na íntegra como resultado de sua aprovação nos editais “Viva a Cultura”, promovidos pela Secretaria de Cultura de Bauru. Os editais foram abertos em 2020, durante o primeiro ano da pandemia da Covid-19, e como um recurso de emergência para artistas que perderam seus empregos por conta do isolamento social e da paralisação de eventos. As duas edições do fomento somaram cerca de R$200 mil reais, e forneceram cachês na faixa de R$650,00 para mais de 200 apresentações artísticas. Para Gael, os trabalhos ficaram abaixo de suas expectativas. O espetáculo “Madame Satã”, gravado em julho de 2020, foi a reconstrução de um trabalho apresentado em 2017, no Espaço Protótipo – sede do grupo Protótipo Tópico do Teatro de Bauru. Na primeira apresentação, a frustração tomou conta do ator. “Me preparei muito pra esse trabalho. Apresentei uma vez e saí péssimo. Eu saí do palco, fui pro camarim, peguei minhas coisas e queria sumir dali. Aí me pararam e elogiaram. Quase falei “Você tá doido? Foi horrível!”, ele lembra, entre um gole de negroni e um trago no cigarro. Mas uma lição passada por seu primeiro professor de teatro, Fábio Valério, veio à tona no momento conflituoso pós-espetáculo. “Foi um dia de demonstração pra aprender a respeitar a visão do público. Claro que quero fazer do jeito que eu acho que seja correto, mas às vezes as pessoas acham que outras coisas são o correto, elas veem outras coisas. Nesse dia saí devastado e recebi elogios. Pensei, “vocês viram errado”. Mas respeito as pessoas que viram, inclusive quando elas não gostam.” A situação o fez lembrar do que seu professor havia dito sobre respeitar o público enquanto um ser pensante e crítico. “Eu confio no público. Não preciso fazer uma coisa extremamente mastigada. Não preciso subestimar o público”. 

O trabalho, que é baseado na biografia artística de João Francisco dos Santos – transformista carioca conhecido pela alcunha que dá título ao espetáculo, e uma das figuras mais emblemáticas da vida noturna na Lapa do século XX – homenageia não só a Madame Satã, mas serve como um ode às mulheres da vida de Gael. Mãe, irmã, primas, referências pessoais. Pergunto por que escolher um trabalho que lhe deu tanta frustração para ser refeito em frente às câmeras, e Gael é categórico na resposta: “Eu precisava do dinheiro. Pensei ‘tenho que apresentar alguma coisa, o que eu tenho em casa de figurino e coisas que posso usar?’. Me dediquei, mas não gostei do resultado final. Eu nem assisti, na verdade, mas sei que não gosto”. E mais uma vez, as frustrações de Gael foram correspondidas da maneira oposta: a partir desse trabalho, o espetáculo foi convidado para integrar a edição online da Virada Cultural Paulista, promovida pela Secretaria de Economia Criativa e Cultura do estado de São Paulo. Dessa vez, o cachê quadruplicou o valor da gravação anterior, e Gael pôde contar com a remuneração de uma equipe para auxiliar na produção e na gravação do trabalho. O processo foi uma tentativa de lidar com o que considera um problema pessoal, de não se sentir capaz de pedir ajuda. “Tenho receio de estar atrapalhando a rotina alheia, tipo ‘lá vem ele com as graças dele’. Muita gente já me ajudou de graça, agora acho que só vou chamar mais gente se eu puder pagar”, ele reflete, seguido de um silêncio. 

Embora esteja trabalhando cenicamente há quase sete anos de maneira solo, seu início no teatro foi marcado pelo trabalho coletivo do grupo Maquinaria – um grupo de teatro criado com mais três colegas da sua turma de estudos. De 2013 a 2015, o grupo apresentou mais de 12 trabalhos, criados de maneira coletiva entre seus membros. Entre composições de cenas curtas apresentadas em saraus, festivais e pequenos eventos culturais, espetáculos também estão no currículo do grupo. “Loucurar-Se”, criado especialmente para o XIV Congresso de Psicologia da UNESP Bauru e apresentado no bosque do câmpus, mostrava três atores representando três distúrbios patológicos diferentes: transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), bulimia e “idolatria”, como Gael define seu distúrbio do espetáculo. Guiados por uma mestre de cerimônia, o público era convidado a adentrar as proposições frenéticas de cada ator em relação à seu distúrbio. Para Gael, o trabalho foi uma extensão de um trabalho anterior apresentado na inauguração da Oficina Cultural Glauco Pinto de Moraes, no início de 2014. Intitulado “Corpórea – Humano Delírio Qual Todos os Deuses”, o primeiro experimento surgiu em um momento de descobertas pessoais do artista em relação à sua própria ‘corporalidade’ – foi quando Gael abandonou o balé e passou a se dedicar exclusivamente ao teatro. “É um trabalho que surgiu a partir de inúmeras leituras de Nietzsche. E ao mesmo tempo comecei a conhecer o meu corpo e a gostar dele. Não tinha uma vida sexual ativa, não era bonito, não era nada, mas eu tinha meu corpo artístico. Era sobre usar o meu corpo de uma maneira que eu considerava válida”. Embora a lembrança seja de uma descoberta excitante, o período também era permeado por processos dolorosos. “Olhando hoje, acho que a dor tinha a ver com uma incompreensão da minha mãe. Ela não compreendia o que eu fazia. Até hoje ela não compreende”.  Criado por uma mãe inicialmente umbandista e, posteriormente convertida ao cristianismo, as convicções religiosas de sua matriarca foram uma barreira para que sua expressão artística fosse aceita e apoiada por ela, e motivo de embate entre mãe e filho – apesar de não seguir uma religião de maneira ortodoxa, Gael foi batizado em terreiro umbandista e tem fé nos orixás do panteão africano. Hoje, o apoio familiar é mais presente para Gael. 

A dor era essa: tô me sentindo tão bem, tão feliz com meu corpo, ideias que eu achava incríveis, e a pessoa que é uma das mais importantes da minha vida não via. A dor era essa, esse afastamento familiar que eu tinha. No momento não doía, eu só consegui observar isso depois. 

“Dor” é uma temática que permeia as descrições de Gael em relação ao seu trabalho. Segundo ele, seu objetivo é tocar nas feridas que aparecem no cotidiano. Esse compilado de feridas pessoais e externas são a matéria prima de suas criações. Pergunto se toda a sua arte é pautada em feridas. Rindo, ele me diz que é uma boa pergunta e tenta se explicar: “Acho que sim, não tenho certeza. Acredito que sim porque meus trabalhos artísticos nunca são legais e felizes. Não sinto inspiração pra fazer uma coisa feliz. Sempre penso em destruição e tristeza (risos). Isso é muito importante pra mim. Não sei o porquê, mas é”.  Mas Gael ressalta a sua tentativa de ser responsável pelas mensagens que quer passar. Na produção do espetáculo “Loucurar-se”, o ator conta que passou a acreditar que estava realmente sendo levado à loucura. “Tava entendendo pela primeira vez na minha vida sobre sair de si. Sobre sair de si, usar drogas, não ver as coisas ou ver as coisas de outro ângulo, enlouquecer… Não acho que eu tenha feito um trabalho que fosse irresponsável, faltava base, ainda falta, mas não acho que tenha sido irresponsável em relação à saúde mental. Eu nem conhecia esse termo”. Hoje, Gael conhece o termo e reflete constantemente sobre o tema. E como anda a saúde mental de Gael? Ao ser perguntado, o artista fica em silêncio por alguns segundos e decreta: acha que está melhor do que já esteve. “Já esteve tão pior. Eu abria o olho de manhã e pensava merda, coisa que não acontece hoje”. 

Negroni, drink feito à base de gin, vermute e Campari, é o preferido de Gael. “O segundo é piña colada, por causa da Beyoncé”. (Foto: Joyce Rodrigues).

Enquanto toca Cartola no bar Goró da Rosa, o relógio já se aproxima da meia-noite, e pergunto se Gael se considera egocêntrico – uma característica comumente atribuída aos pertencentes do meio artístico. Ele diz que já foi mais do que se considera hoje em dia. Mas a necessidade de ser ouvido parece ser mais forte do que a necessidade de ser adorado ou visto pelo público. “Ás vezes a gente quer se expressar, é sobre expressão antes de ser amado ou visto. Percebe a diferença? Não é sobre ser adorado, mas sobre ser ouvido e compreendido.” E se a compreensão não chegar? “Eu faço arte pro público se virar!”, ele declara, rindo da própria resposta. Confessa que pensar no público frequentemente limita sua criação. “Sempre penso “será que vão me entender?”, porque por mim, meu trabalho seria muito mais caótico”. Sua linha de raciocínio é interrompida pela euforia ao ouvir a música Veneno, do músico Kiko Dinucci, que sai das caixas de som do bar. “Eu amo essa música! Coloca isso na matéria?”. 

Eu me critico muito, até demais. E eu sei que não tá perfeito, sei que poderia mais. Mas as pessoas não sabem. Fico esperando que alguém perceba isso e me fale, e elas não falam. Queria que alguém falasse “mano, cê sabe né?” e eu ia falar “eu sei! ufa, alguém falou”. Detesto que encham a minha bola.

Caldeirão de Referências

Gael acorda às 8:30 da manhã de segunda-feira, e prepara um café antes de ir começar o expediente no restaurante. Já são quase 9 da manhã quando ele coloca o café na mesa do quintal de sua casa, na zona leste de Bauru. Me pede desculpas pela quantidade de café. “Estou acostumado a fazer uma quantidade pequena”, ele diz enquanto enche nossos copos. Gael mora com a mãe, a irmã e o irmão de 18 e 15 anos, respectivamente. A casa, comprada pela avó do artista quando sua família veio para Bauru, foi onde Gael cresceu e compilou a maior parte de suas referências. Entre nomes como Marina Abramovic, Antonin Artaud, Friedrich Nietzsche, Zózimo Bubu, Ismael Ivo, Pina Bausch, Rudolph Laban, e inúmeras figuras do teatro, da literatura e da dança, Gael revela algumas das artistas “inesperadas” que o ajudaram a construir suas referências. “Beyoncé, Madonna, Lady Gaga e Rihanna. Estas artistas, em algum momento, me mexeram muito por dentro”. Seja por estética ou pela narrativa construída em suas obras, as cantoras pop sempre estiveram no mundo de referências de Gael. Como uma criança que mal saía de casa, assistir aos clipes e performances das cantoras serviram de inspiração em muitos momentos de sua infância. O fato de ser um artista LGBTQIA+ – Gael se entende como bissexual – também contribuiu para que o mundo pop fizesse parte de sua vida. “Já me falaram nos ‘rolês’ coisas do tipo “ai, essas cantoras pop…” e eu falava “mas eu amo pop!”, ele diz, reproduzindo a indignação que lhe causa quando alguém ousa falar mal do gênero pra ele. Segundo ele, as pessoas não imaginam que um artista como ele, que faz o que ele faz, goste tanto de cultura pop.

“Achei que foi contra minha construção de imagem por um tempo, mas já tô com um personagem tão bem delimitado que acho que eu não penso mais nisso. Mas nada a ver, a Bjork também é uma Beyoncé. Por que é uma coisa difícil de imaginar? E eu gosto tanto… Será que eu devia falar mais sobre isso publicamente? (risos)”

Confesso que a associação realmente não parece ser muito clara. Nos trabalhos artísticos de Gael, a morte é um tema recorrente – algo que não se vê com muita frequência nas obras das “divas” que Gael cultua. Apesar da morte ser um dos principais motes de sua criação, ele confessa que não sabe explicar o motivo. Desconfia que o interesse tenha a ver com sua espiritualidade, ou com os orixás que o acompanham, mas se sente incapaz de definir o que o leva a essas temáticas. “Quando paro pra pensar sobre isso, nessas coisas que dão medo, nessas coisas que são meio grotescas, isso me dá vontade de fazer. Eu imagino que tenha a ver com medo, com meus medos. E normalmente eu gosto de encarar meus medos”. E Gael confessa sentir medo da morte, de não saber o que vem depois. Talvez seja a sua arte uma maneira de enfrentar a morte? “Acho que enfrentar é muito forte, mas eu meio que cultuo ela como uma forma de celebrar o fato de estar vivo e tentar aproveitar o máximo disso.” Ele recita o último trecho que decorou do poema “O Poeta do Hediondo”, de Augusto dos Anjos: “eu sou aquele que ficou sozinho/catando os ossos do caminho/ a poesia de tudo quanto é morto”. É assim que ele se sente: recolhendo os ossos do caminho para servir de material criativo. “É como procurar diamantes na sujeira”, ele pontua, para clarear sua perspectiva de aproveitar os pontos de força e inspiração que surgem no cotidiano caótico. Gael já se sentiu inúmeras vezes próximo da morte, embora não goste de falar muito sobre o assunto. Perguntado sobre vícios, ele se limita a responder: “tenho minhas questões”. Ele já pensou em abordar o tema em suas criações artísticas, mas considera ser mais importante refletir melhor, ou se distanciar historicamente dos fatos, para elaborá-los e colocá-los para fora. Ou então, falar sobre o tema na terapia antes de resolver falar nas redes sociais, ou em uma entrevista como essa. Ele não quer falar sobre isso, então me sirvo de café e mudamos de tema. 

As pessoas olhavam pra mim e não viam só um artista, mas viam um cara preto e artista, e fazendo o tipo de trabalho que eu faço. Chegou um momento em que eu entendi que eu sou uma pessoa preta antes de qualquer coisa. Minha cor vem antes da minha arte.

Em seu acervo pessoal, versões originais das colagens que produz (Foto: Joyce Rodrigues)

O psiquiatra e filósofo martiniquense Frantz Fanon é um dos ingredientes mais recentes do caldeirão de referências de Gael. Envolvido pela leitura do livro “Os Condenados da Terra”, o artista desenvolveu a performance “Coisificação” para a abertura da live “Saberes do Sul Global”, projeto de extensão realizado pela UNESP em parceria com a Universidade Federal da Integração Latino Americana (UNILA), em agosto de 2021. O desconforto causado pela abordagem de Fanon em relação à questões da negritude sob a luz da psicanálise fez com que Gael interrompesse a leitura por um período. “ Tava mexendo com a minha cabeça, achei melhor deixar de lado”, ele declara. Mas a pausa no estudo não o fez parar de pensar nessas questões, que se apresentam tanto em seus trabalhos cênicos quanto nos seus trabalhos manuais. Gael também é colagista, e usa de recortes de revistas antigas, jornais, panfletos e materiais gráficos para expressar através da colagem aquilo que nem sempre consegue levar aos palcos. A prática surgiu ainda na infância, quando decorava os cadernos da escola e recortava imagens que considerava inspiradoras. E o fato de ser um artista negro no Brasil não escapa de suas criações e se reflete nesses recortes – mesmo não tendo sido um tema trabalhado de forma conscientemente desde o início. “Não é uma coisa que decidi falar de um dia pro outro raça. Mas me sinto meio que na obrigação. Ao mesmo tempo tenho a sensação de que isso tava vinculado ao meu trabalho desde sempre”. Em março de 2020, semanas antes do mundo parar com a pandemia da Covid-19, Gael estreava a exposição “Subconsciente Negro” no Centro Cultural da Universidade de São Paulo (USP), em Bauru. As obras retratam como o artista enxerga um subconsciente “coletivo” que atravessa as vivências, coletivas e individuais, de pessoas negras no Brasil. Recortes de palavras, corpos e rostos pretos, referências à orixás, a estampas e a retratos do cotidiano compõem a série que conta com 10 obras autorais e manuais. A predominância de pessoas brancas – em especial, artistas brancos – nos meios que Gael frequenta o levou a refletir sobre sua própria identidade. É uma questão que sempre vai estar dentro do meu trabalho. O simples fato de ser um homem preto e artista já faz com que essa temática esteja presente. Mas quando paro pra falar sobre isso eu acho que não basta. Preciso falar alguma coisa que seja útil pra essa causa”. Mas Gael também deixa claro não querer ser “refém” do tema. “Tem muita gente falando sobre raça muito melhor e com muito embasamento. Vai ler Angela Davis. Vai ler Fanon. Vai ver outra coisa”, ele diz enquanto ri e termina seu café. 

O início do expediente no restaurante já começou, mas ainda estamos sentados no quintal de Gael. São quase 10 horas da manhã, mas o artista já havia avisado sua equipe de trabalho que entraria por volta das 11 horas. Ele aproveita para me mostrar seu pequeno acervo pessoal: fotos antigas, recortes, fanzines criadas por ele, colagens originais, livros, CDs, DVDs, cartões, revistas… Uma foto em especial chama minha atenção: uma polaroid mostra um homem negro sorridente olha pelos ombros para a câmera, sentado no que parece ser um quintal de uma casa, aparentando ter entre 20 e 30 anos – difícil mensurar pela qualidade da imagem. “É meu pai”, ele me revela mais tarde, no Uber que pegamos para ir ao restaurante. O pai de Gael faleceu em agosto de 2018, e a notícia foi dada por sua mãe, em meio ao choque e a lágrimas. A primeira coisa que Gael falou quando recebeu a notícia foi: que susto, mãe, achei que era alguma coisa séria. Ele conta a história sem qualquer surpresa. A reação é justificada pela ausência da figura paterna em sua vida: para Gael, o pai nunca foi exatamente um membro da família. Na infância, sem se recordar exatamente em qual período, morou com o pai e com a mãe, mas o progenitor foi embora após uma separação, e Gael foi criado por uma mãe solteira. 

“Uma vez fui no terreiro e me falaram que uma pessoa da minha família que tinha falecido tava atrás de mim, me acompanhando. E eu não conseguia lembrar quem tinha morrido porque pra mim ninguém da minha família tinha morrido. Falavam ‘é um homem do seu sangue. Eu ficava tipo ‘mas gente, você tá doida, ninguém da minha família morreu!’. Aí lembrei que era meu pai.” 

O artista acredita que investigar suas raízes paternas seja importante, mas também revela ter preguiça de se estender nesse assunto. Ele pensa que, ao investigar o falecido pai, pode entender coisas sobre si mesmo, já que a semelhança entre os dois sempre foi apontada pela sua mãe e por familiares mais velhos. “É uma investigação que preciso fazer, só que ele não me importa tanto.” 

Em relação à sua mãe, o cenário é oposto. Criado pela mãe, por tias e avós, as figuras maternas e femininas constituem grande parte do trabalho cênico de Gael. No espetáculo “O Inferno São As Outras”, realizado em 2015 como sendo o último trabalho do grupo Maquinaria, a personagem de Gael, intitulada Gaia, era uma referência direta à todas as figuras femininas que compuseram sua trajetória. “O feminino é uma questão muito forte pra mim enquanto pessoa. Enquanto homem que já reproduziu muito machismo, é importante eu estar atento a isso. Por mim e por todas as mulheres ao meu redor”. Ele pergunta se foi raso na resposta e me diz que já investigou por muito tempo essa questão na sua vida. Já a masculinidade, outro tema que permeia seus questionamentos pessoais, são menos aparentes em suas criações. Embora seja um tópico que tem interesse em explorar, acredita nunca ter aprofundado muito. Ele alega que as colagens, talvez, reflitam mais essa pesquisa. Antes de chegarmos no restaurante, digo à ele que suas colagens refletem mais a masculinidade, enquanto suas atuações trazem o feminino como um dos elementos principais. “Não tinha parado pra pensar nisso, mas faz sentido”, ele diz, pensativo. Pergunto se  há algum motivo pra isso, e em reflexão, ele diz não saber responder porque só havia se dado conta disso depois da minha fala. Assim, ele entra para começar o expediente. Quando ele puder parar para pensar nisso, retomamos nossa conversa.

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Joyce Rodrigues

Natural de Bauru-SP, Joyce Rodrigues é comunicadora e produtora cultural. Co-fundadora da residência artística Casa Alunte e repórter do Jornal Dois.

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