Escreva para pesquisar

O macrismo e a guinada pró-business na Argentina

Compartilhe
Governo de Maurício Macri, o primeiro após doze anos de kirchnerismo, consolida política econômica de ajustes e aumentos nas tarifas de serviços públicos
Por Vinicius Passarelli

“Quero a contribuição de todos, os que se sentem de direita, os de esquerda, os peronistas, os antiperonistas. Essa diversidade nos enriquece e nos faz melhores”. O tom é de conciliação, mas a frase, que fez parte do discurso de posse de Maurício Macri na Casa Rosada, no fim da ano passado, traz os elementos de uma política marcada historicamente pela polarização e o desafio que começaria a enfrentar o primeiro presidente da história argentina eleito democraticamente com um discurso pró-mercado. A vitória de Macri marcou o fim de 12 anos de kirchnerismo e assinala o fim de uma política que representou a face do peronismo no século 21.

Filho de um imigrante italiano que fez fortuna na indústria automotiva e no setor da construção civil, Macri se formou em engenharia e iniciou a carreira como executivo do conglomerado industrial do pai. A carreira de empresário parecia certa, com direito a uma vida pessoal luxuosa e regada a regalias restritas às famílias mais abastadas do país. O primeiro aceno à vida política ocorreu em 1995, quando Maurício entrou na disputa pela presidência do Boca Juniors, principal e mais popular time de futebol argentino, e venceu.

associated-press

Maurício Macri venceu Daniel Scioli, candidato apoiado pelo kirchenrismo, nas eleições de 2015 (Crédito: Associated Press).

Segundo o próprio relata, foi uma experiência traumática vivida no início da década de 90 que fez com que repensasse por completo sua vida e os rumos tomados por ele até ali. Em 1991, Macri foi sequestrado por um grupo de policiais criminosos e só foi libertado após doze dias de cativeiro, sob o alto pagamento de resgate.

A década de noventa na Argentina foi marcada pela política neoliberal adotada pelo presidente Carlos Meném, que governou entre os anos de 1989 e 1999, além de escândalos de corrupção e da anistia dada pelo governo a agentes de Estado da ditadura militar – o que provocou uma forte reação por parte da sociedade civil e de entidades defensoras dos direitos humanos. Apesar de seu primeiro mandato ter vivenciado um sucesso no combate à inflação e no aumento dos investimentos, Meném deixou a presidência num cenário de intensa crise econômica e aumento da desigualdade social. Seu sucessor foi Fernando de la Rúa, candidato pela União Cívica Radical – até então principal grupo de oposição ao peronismo -, que se deparou com uma economia devastada e com a pior crise vivida pela Argentina em sua história recente. Os anos de um neoliberalismo financiado por empréstimos externos e pela venda de empresas estatais obrigaram o governo a congelar as contas bancárias, desvalorizar forçadamente o peso e dar um calote na dívida, levando metade da população a viver abaixo da linha da pobreza. Em 2001, de la Rúa renunciou ao cargo, deixando a Casa Rosada de helicóptero, enquanto a polícia reprimia com violência uma multidão que tomava as ruas e exigia uma renovação total da classe política sob o lema do que se vayan a todos!.

Foi justamente após a crise de 2001 e nesse cenário de deterioração dos principais atores políticos que Maurício Macri criou o Propuesta Republicana, ou PROS, um aglomerado de jovens empresários, membros de ONGs, pessoas ligadas às universidades de elite e ao setor privado. Foi a resposta à direita frente ao cenário caótico em que vivia a política argentina.

Apesar do grande desgaste vivido pelo establishment político, o Partido Justicialista – nome oficial da legenda peronista – conseguiu se sobrepor e, com o enfraquecimento da União Cívica Radical, que saíra fragilizada do último governo, conseguiu eleger como presidente Néstor Kirchner, o governador da remota província de Santa Cruz, na Patagônia, pouco conhecido no restante do país. A partir daí, deu-se início a uma era dos Kirchner ocupando o mais alto cargo do Executivo na Argentina.

O kirchnerismo reinou por doze anos, com Cristina Kirchner governando entre 2007 e 2015, após o mandato do marido. Aproveitando a prosperidade possibilitada pelo forte aumento dos preços das commodities no mercado internacional, Néstor e, depois, Cristina implantaram uma gestão de forte presença Estatal na economia, romperam com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e subsidiaram serviços públicos como água, gás e energia elétrica – estima-se que nos dois mandatos de Cristina Kirchner, o governo tenha gastado em torno de 139 bilhões de dólares em subsídios sobre transportes e energia. Também priorizaram as relações com os países latino-americanos, em detrimento aos ditames das grandes potências e mercados internacionais. Ao lado de nomes como Lula, no Brasil, Hugo Chávez, na Venezuela, Rafael Correa, no Equador, Evo Morales, na Bolívia, e Pepe Mujica, no Uruguai, o kirchnerismo se colocou com uma das mais representativas forças da nova esquerda latino-americana, que vigorou por aproximadamente uma década no continente.

Já incorporado de vez ao mundo político, em 2005, dois anos após fundar o PROS, Maurício Macri foi eleito deputado federal por Buenos Aires. Em 2007 elegeu-se prefeito de Buenos Aires, o que o projetou em âmbito nacional.

O projeto de poder do kirchnerismo, objeto de grande avalização das urnas nas eleições de 2007, que deu a primeira vitória de Cristina Kirchner, e de 2010, com sua reeleição, criou no país um forte clima de polarização, radicalizado pela classe média não identificada com o peronismo. A certeza de que o grupo ligado à então presidente não sairia tão fácil do poder dividiu a sociedade argentina entre kirchneristas e não-kirchneristas. Algo parecido com o que ocorrera entres as décadas de 40 e 60, onde o movimento popular do peronismo também foi responsável por um intenso debate, permeado pela polarização e pela hostilidade.

Em 2010, com a iminente vitória de Cristina Kirchner, Macri não alçou sua candidatura à presidência e se reelegeu prefeito de Buenos Aires. Sua gestão frente à capital portenha foi, por um lado, marcada por uma política fiscal de austeridade nos investimentos em áreas como educação e saúde e, por outro, por uma forte injeção de verbas em obras públicas de infraestrutura. Além disso, não comprou briga com os sindicatos – preferiu sentar para negociar – e se colocou contra a privatização do banco da cidade. Suas medidas ao longo de oito anos na prefeitura de Buenos Aires acabou por triplicar o déficit municipal.

Com o fim de seu segundo mandato, Cristina Kirchner estava impedida de tentar uma reeleição e o kirchneirsmo rachou. Não houve um consenso em torno de um candidato e Cristina, a contragosto, acabou apoiando a candidatura Daniel Scioli, ex-vice de Néstor Kirchner e governador da província de Buenos Aires. Enquanto isso, no campo da oposição anti-peronista, Macri passou a articular alianças e apoios em torno de sua candidatura, o que se concretizou com uma coalizão conservadora denominada Cambiemos .

Em sua campanha, o ex-prefeito adotou o discurso empresarial de gestão e responsabilidade em relação aos gastos públicos, além de se colocar como o representante da mudança e da modernização, prometendo romper com os tradicionais modelos políticos e exaltando seu caráter técnico frente aos vícios dos políticos de carreira.

Mesmo com o racha dentro do peronismo, a eleição se mostrou bastante acirrada. Foi necessário um segundo turno para que a vitória de Maurício Macri, com uma margem estreita de 2,68%, se concretizasse.

reuters-andres-stapff

Maurício Macri e sua vice Gabriella Michett na cerimônia de posse no Congresse (Crédito: Reuters/Andres Staff).

Sua eleição trouxe uma série de fatos inéditos na história da Argentina. Foi a primeira vez que um candidato autodeclarado pro-businness e voltado aos interesses do mercado se elegeu democraticamente no país. Até então somente os governos militares se colocavam favoráveis a essa agenda e aqueles eleitos que acabaram por adotar tais medidas o fizeram após refutar essa plataforma em campanha – a exemplo de Carlos Meném na década de noventa. Também foi a primeira vez na história que se elegeu um candidato fora do grupo dos peronistas e dos radicalistas.

Outro fato inédito foi a montagem de sua equipe de governo. O ministério montado por Macri é completamente desprovido de “figurões” e de políticos tradicionais. Novamente, o caráter técnico de seu modus operandi fez com que nomeasse grandes executivos, CEOs de grandes empresas privadas e multinacionais, para os cargos de primeiro e segundo escalões do governo.

Para o cientista político e professor de Relações Internacionais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Maurício Santoro, o desafio de Macri em governar um país onde há um histórico desfavorável de governos não peronistas é grande. “Desde a criação do peronismo na década de 1940, nenhum presidente não peronista democraticamente eleito conseguiu completar o mandato”, lembra. Santoro ainda acredita que a vitória de Macri só foi possível devido à fragmentação do peronismo e que, segundo ele, este pode se reorganizar para fazer a oposição. “[Macri] vive à sombra do risco de uma frente unida do peronismo que poderia dificultar muito sua vida no Congresso”, avalia.

Porém, ao contrário do que analistas previam, a principal resistência enfrentado pelo governo nestes primeiros nove meses vem de organizações da sociedade civil e de movimentos sociais; e não do Congresso, onde a coalizão governista é minoria. Além disso, o bloco peronista continua dividido e uma atuação mais marcante deste como oposição no Legislativo passa por uma reorganização dos adversários políticos. Cristina Kirchner voltou às aparições públicas no mês passado quando, num ato em comemoração ao centenário da posse do primeiro presidente eleito democraticamente na Argentina, praticamente se colocou na frente da organização de uma frente de oposição a Macri e deixou mais clara sua intenção em pleitear uma cadeira no Senado, pela província de Buenos Aires, nas eleições legislativas de 2017. “Quero que os 42 milhões de argentinos tenham claro que o papel que esta mulher desempenha vai estar orientado única e exclusivamente a conseguir a formação e construção de uma nova maioria que permita aos argentinos voltar a ter um governo que os represente em seus interesses, esperanças, sonhos, em suas ideias”, exclamou, sob aplausos, a ex-mandatária para uma multidão de 10 mil pessoas, segunda a organização do ato, no microestádio de Atlanta.

prensa-instituto-patria

Cristina Kirchner discursa para multidão no clube Atlanta em cerimônia de comemoração ao centenário da posse do primeiro presidente eleito democraticamente da Argentina (Crédito: Prensa Instituto Pátria).

“É difícil dizer nesse momento”, diz o mestre em Relações Internacionais e professor da Unesp, Matheus Oliveira, sobre a possibilidade de Cristina Kirchner liderar uma frente de oposição a Macri. ”Há uma disputa pelo controle do peronismo, Cristina e seus principais assessores enfrentam processos judiciais, então ainda me parece cedo para dizer quem liderará a oposição”, explica. Para ele, será necessário esperar para ver em torno de qual grupo se reorganizará o peronismo. “Se formos olhar retrospectivamente, vamos ver que a tendência é que o kirchnerismo perca força se não for o bloco em torno do qual se reorganizar o peronismo”, pontua o professor.

Além da reorganização da oposição, ainda indefinida, o macrismo também terá que lidar com divergências internas em sua coalizão,  que é heterogênea e formada por diferentes grupos que nem sempre falam a mesma língua. Manter a coesão dessa base também se coloca como um desafio. “Não se trata apenas de ter o peronismo como oposição, mas da própria habilidade em garantir a sustentabilidade da coalizão que se formou mais em um posicionamento anti-kirchnerista do que em torno de convergências programáticas”, completa Oliveira.

Para além das disputas partidárias e dos esforços em garantir uma boa governabilidade, o que marca o governo de Macri até agora é o empenho em reduzir os gastos públicos e em aumentar a arrecadação. Para isso, o governo tem tomado uma série de medidas de ajustes, a despeito da imediata impopularidade que acarretam. E o principal alvo desses ajustes foi justamente aquilo que marcou a era Kirchner: os subsídios do Estado para serviços públicos essenciais como gás, energia elétrica e transportes. Macri vem anunciando uma série de aumentos nas tarifas. Já no primeiro mês a frente do país, anunciou um aumento de pelo menos 300% na conta de energia elétrica, além da série de apagões classificados como “cortes programados”. Em março, o governo determinou um aumento de 100% nas tarifas do transporte público – ônibus, trens e metrô. A gasolina subiu perto de 6%. No mesmo mês, o ministério Energia e Mineração aumentou em até 300% a tarifa do gás. Cinco meses depois, no entanto, a Suprema Corte de Justiça anulou o aumento para usuários residenciais, determinando também que futuros aumentos devem primeiro passar por audiências públicas e respeitar critérios de gradualidade.

A política de ajustes vem agitando diversas entidades, como os sindicatos – historicamente divididos -, organizações de professores, movimentos sociais e grupos de esquerda, que têm organizado manifestações contra o chamado “tarifaço” e, no caso dos professores, por também melhorias nas condições de trabalho e pela reabertura das negociações para o aumento dos salários. A CGT, Confederação Geral do Trabalho, convocou uma greve geral, ainda sem data definida. Sindicatos docentes secundaristas e universitários foram às ruas no fim de setembro para pressionar o governo e reivindicar aumento nos salários, a fim de combater a inflação. Em abril, os professores já haviam organizado uma paralisação nacional do ensino público. Na ocasião, uma passeata de 30 mil pessoas foi até a sede da ministério da educação para pressionar.

manifestacao-contra-o-tarifazo-agencia-efe

Protesto de movimentos sindicais contra os “tarifazos” em Buenos Aires (Crédito: Agência Efe).

Ao lado do cunho impopular dessas medidas, as respostas dos índices da economia também geram insatisfação. A recuperação econômica vem demorando mais do que o governo imaginava. Em setembro, o desemprego atingia a casa dos 9%, com uma inflação anual de 42%. Outro dado preocupante foi reconhecido pelo governo no mês passado: após quase cinco anos de inatividade no governo de Cristina – acusada de ocultar e manipular as estatísticas oficiais – o Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec) apontou que, no segundo semestre de 2016, 32,2% da população argentina é pobre e que 6,3% desse índice estão abaixo da linha de indigência. Em números absolutos, 8,78 milhões de argentinos são pobres e 1,7 milhão, indigente. Este é o maior índice de pobreza desde a crise de 2001, quando 50% da população estava abaixo da linha de pobreza. Macri acusa a herança deixada pela sua antecessora e também critica a falta de transparência do governo anterior, que não divulgava os dados oficiais desde 2012, quando a pobreza no país foi apontada em 5,4%.

Macri classificou a pesquisa como “honesta” e disse que o Indec “colocou a verdade sobre a mesa”. “Vocês sabem que acabamos de obter o dado que estávamos esperando por parte do Indec, o da pobreza. Depois de anos de negociação, hoje sabemos qual é a realidade. (…) Hoje o Indec colocou a verdade sobre a mesa e disse o que é que está acontecendo na Argentina”, disse o presidente.

Apesar dos elogios em relação à reestruturação do Indec, o número alarmou o país e colocou em cheque as promessas de Macri durante a campanha, quando dizia que iria erradicar a pobreza, diminuir a inflação e combater o desemprego. A equipe econômica do governo alega que as medidas de ajustes são necessárias e que surtirão efeito a médio e longo prazo. Para o governo, os números em 2017 tendem a melhorar. “A motivação principal [dos protestos] é econômica, o peso nas contas cotidianas. Transporte e energia foram altamente subsidiados durante o Kirchnerismo e a decisão de Macri de cortar esses apoios, embora faça sentido em termos do ajuste fiscal, é um impacto grande no dia a dia dos argentinos”, explica Maurício Santoro.

Enquanto isso, o macrismo enfrenta as reações da sociedade e busca passar uma boa imagem para o mercado internacional e para os investidores estrangeiros. Um exemplo disso foi a realização, há um mês, de um grande fórum de investidores que reuniu 1900 empresários e executivos de 67 países, que teve Macri como o grande mestre de cerimônias.

forum-argentina-negocios-e-investimento-marcos-brindicci-reuters

Fórum Argentina Negócios e Investimentos promovido por Macri para atrair investidores internacionais (Crédito: Marcos Brindicci/Reuters).

Um fato marcante e que ilustra bem a guinada ortodoxa na política econômica da Argentina é a reaproximação com o Fundo Monetário Internacional (FMI), após uma década de total rompimento promovido pelo kirchnerismo. O diretor do fundo para o Hemisfério Ocidental, Alejandro Werner, fez elogios ao governo. “Temos uma visão positiva do que está ocorrendo”, disse em Buenos Aires.

Santoro pondera que o custo social dessas medidas podem dificultar as intenções do governo. Segundo ele, “a visão do governo é que o ajuste é necessário para sanear as finanças públicas e retomar a confiança dos empresários e dos investidores estrangeiros, o que levaria à retomada do crescimento”. A piora da situação social, contudo, “pode levar a uma crise política no curto prazo e inviabilizar as reformas propostas por Macri”.

Já para Oliveira, é difícil precisar os limites dessa estratégia econômica, e os resultados dependem de uma série de variantes. “Como vão se comportar os atores sociais (sindicatos, sobretudo)? E o congresso? A economia brasileira melhora? E a política de juros dos EUA? Os investimentos que o governo espera virão? E várias outras coisas”, completa.

Redação

Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit. Nam quis venenatis ligula, a venenatis ex. In ut ante vel eros rhoncus sollicitudin. Quisque tristique odio ipsum, id accumsan nisi faucibus at. Suspendisse fermentum, felis sed suscipit aliquet, quam massa aliquam nibh, vitae cursus magna metus a odio. Vestibulum convallis cursus leo, non dictum ipsum condimentum et. Duis rutrum felis nec faucibus feugiat. Nam dapibus quam magna, vel blandit purus dapibus in. Donec consequat eleifend porta. Etiam suscipit dolor non leo ullamcorper elementum. Orci varius natoque penatibus et magnis dis parturient montes, nascetur ridiculus mus. Mauris imperdiet arcu lacus, sit amet congue enim finibus eu. Morbi pharetra sodales maximus. Integer vitae risus vitae arcu mattis varius. Pellentesque massa nisl, blandit non leo eu, molestie auctor sapien.

    1

Deixe um comentário

Your email address will not be published. Required fields are marked *