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Número de técnicos negros é mais uma face do racismo velado no futebol brasileiro

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Cargos como os de treinador ou dirigente de clube possuem poucos representantes negros no país. Estrutura institucional e discriminação racial ainda permanecem como obstáculos

Leonardo Del Sant e Lucas Mendes

“Não fui chamado porque sou preto”, bradou Gentil Cardoso após deixar o comando da seleção brasileira assim que acabou o efêmero sul americano de 1959. Cinco anos antes, o marinheiro, matemático, poeta, filósofo e quase aviador já havia demonstrado a mesma insatisfação com as injustiças. “O racismo é um fato que a hipocrisia encobre”, protestou ante a escolha de Zezé Moreira pela CDB para a copa da Suíça, em 1954.

Leitor de Sócrates e Cícero, Gentil Cardoso foi um dos primeiros e entender que o futebol também deveria ser jogado com organização e pensado técnica e taticamente. Isso antes de treinadores gringos virem pra cá com tal postura.

De megafone na mão e tido como um frasista pra época, Gentil foi treinador desde a década de 30 até 1967, três anos antes de sua morte. Nunca dirigiu a seleção brasileira, apesar de seu currículo forte e vitorioso. Explica-se: o sul americano de 1959 em que Gentil foi treinador teve o Brasil representado pela seleção pernambucana, além de ser uma edição extra da competição, já que naquele mesmo ano o torneio foi realizado duas vezes.

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“Eu estou com as massas, e as massas derrubam até governos”, disse Gentil Cardoso, comemorando o título do carioca de 52. Ele foi demitido no dia seguinte (Foto: Reprodução)

Gentil Cardoso viu seus espaços minguarem em razão de sua cor. “Só me chamam para enterro, ninguém me convida para comer bolo de noiva”, disse referindo-se ao fato de suas oportunidades se limitarem a clubes em crise ou desestruturados. Passados mais de 50 anos o futebol brasileiro pouco evoluiu na inclusão de negros em suas posições de comando, seja como técnicos ou dirigentes de clubes.

Casos recentes, como o de Cristóvão Borges no Vasco ou Jayme de Oliveira e Andrade no Flamengo, denotam um tratamento diferenciado dispensado aos profissionais negros em nosso futebol. O racismo, como uma prática presente na sociedade brasileira, também se reproduz na estrutura do esporte mais importante do país.

A democracia das raças

Singular. Assim se dá o racismo “à brasileira” perante o resto do mundo. O futebol, como parte da sociedade, fatalmente reproduzirá suas contradições, fazendo coexistirem inclusão e exclusão.

“A particularidade do caso brasileiro está no enfrentamento contra uma política ideológica que se diz não-racista e harmoniosa. Obviamente, estamos falando da ideologia da ‘democracia racial’ que foi hegemônica em nossa sociedade após a década de 1930”, analisa Denaldo Alchorne de Souza, pós-doutor em História pela Universidade de São Paulo e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS).

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Pelé, ícone negro do esporte mundial, se ocultou na luta contra o racismo (Foto: Robert Cianflone/Getty Images)


A tese da democracia racial foi proposta pelo escritor Gilberto Freyre, em sua obra mais conhecida: Casa Grande e Senzala, de 1933. O livro busca interpretar a sociedade brasileira a partir da harmonia advinda com a miscigenação entre portugueses, indígenas e africanos.

De acordo com Denaldo, a ideia da democracia racial atingiu o senso comum e se tornou um meio de entender nossa própria realidade, “incluindo aí negros e mulatos”. Para ele, essa visão de mundo e do Brasil, “somente começou a ser contestada de forma ampla recentemente, quando começou a discussão das cotas raciais para ingresso de cursos de nível superior”.

Racismo no futebol

Segundo o relatório anual de discriminação racial no futebol brasileiro, elaborado pelo Observatório da discriminação racial no futebol, em 2015 foram registrados 35 casos de racismo, 24 dentro de estádios e outros 11 em episódios na internet. Dez desses casos tiveram boletim de ocorrência registrados e oito foram levados à justiça desportiva. Dos 10 casos em que foi registrado o boletim, em apenas dois o agressor foi preso, identificado e liberado após pagamento de fiança.

O relatório ainda observa “um aumento significativo de vítimas que, de alguma forma, delataram que sofreram insultos raciais. Muitos expressaram suas indignações via redes sociais ou em algum veículo de comunicação, entretanto, esta ação não é suficiente ou efetiva. Cabe aqui a ressalva que o melhor caminho para combater o racismo é registrar o Boletim de Ocorrência (B.O.) e levar o caso adiante com a representação da vítima”.

“É importante destacar que nos casos os quais ocorrem o registro do B.O., as partes são ouvidas, mas o delito de injúria racial depende da representação de quem sofreu a agressão, pois somente o B.O. não significa que automaticamente o caso será levado adiante. Se a vítima não seguir com um processo contra o agressor, o B.O. valerá apenas como um documento oficial com o registro do fato”, explica o documento.

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Grafite, atacante recém-contratado pelo Atlético paranaense participou de ações com o Observatório da discriminação racial no futebol (Foto: facebook.com/observatorioracialfutebol) 

Em casos recentes, Aranha, então goleiro do Santos, foi vítima de racismo no jogo Grêmio x Santos, em agosto de 2014, jogo válido pela Copa do Brasil. Na ocasião, o goleiro foi chamado de macaco por torcedores gremistas. Na saída para o vestiário, Aranha desabafou sobre o episódio: “O pior é que fui falar com o juiz (Wilton Pereira Sampaio) sobre isso e ele falou que eu estava provocando a torcida adversária. Sou preto sim, e se isso é insultar, não sei mais nada. Claro que não são todos os torcedores que fazem isso na Arena Grêmio, mas sempre tem alguns racistas aqui no meio”.

O mesmo Aranha foi vítima de racismo meses depois, em janeiro de 2015, quando, prestes a rescindir contrato com o Santos por falta de pagamento de salário, o jogador foi atacado na internet. O caso não foi adiante, já que não houve queixa do fato. Arouca, Tinga, Daniel Alves e Roberto Carlos são brasileiros que sofreram com o racismo nos últimos anos.

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“A impunidade é tanta que quando a justiça é feita acha-se estranho e começa-se a criticar”, disse Aranha, sobre a repercussão do seu caso de racismo (Foto: Roberto Vinícius/Agência Eleven/Gazeta Press)

Denaldo Alchorne conta ainda sobre o casos de racismo nos primórdios do futebol tupiniquim, como o de Friedenreich, filho de pai alemão e mãe negra “considerado o maior jogador de futebol de sua época (décadas de 1910 e 1920), que entretanto precisava negar a sua “negritude”.

“Leônidas da Silva, o ‘Diamante Negro’, o grande craque brasileiro da Copa de 1938, elogiado por governantes durante o Estado Novo, e condenado à prisão de oito meses pelo mesmo regime político. Ou dos atletas que disputaram a Copa de 1950, aqui no Brasil. Antes da derrota para os uruguaios, a seleção brasileira era a prova definitiva do fim do racismo e da consolidação da ‘democracia racial’. Após o jogo, Barbosa e Bigode, dois jogadores negros, se tornaram os grandes responsáveis pela derrota da equipe. Ou de Pelé, ‘o maior craque de todos os tempos’, que realmente sempre teve orgulho de ser negro, mas que também fez inúmeras declarações afirmando que não havia racismo no Brasil. Ou mesmo de Neymar, que afirmou quando ainda era um garoto que não era preto”, conclui Denaldo.

Lula Pereira, ex-jogador e ex-treinador, em entrevista ao site do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, relata sua experiência na busca por um emprego no cargo de treinador. “Já ouvi de empresários: ‘O pessoal do clube gostou do seu perfil, mas, me desculpe, você é preto’”.

Andrade foi o primeiro treinador negro campeão brasileiro, ainda assim foi demitido do Flamengo em 2010 com 76% de aproveitamento,. Na sua passagem de oito meses pelo Mengão, além do título nacional, foi finalista do campeonato carioca e levou o clube às oitavas-de-final da Libertadores daquele ano. Contudo, foi demitido após três derrotas consecutivas. Após sua saída, o clube passou por demissões e reformulações na sua diretoria. Seu último trabalho foi o modesto Jacobina, da Bahia, por apenas cinco jogos.

Racismo institucional

Como toda prática social, o racismo não se resume apenas a algumas esferas da realidade. “A exclusão racial anda de mãos dadas com a exclusão econômica. Elas são independentes”, explica Denaldo. “Uma alimenta a outra. Os valores racistas precisam se respaldar na materialidade de algumas dinâmicas sociais como forma de se autojustificar”.

Em anuário de 2015 do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) sobre indicadores de trabalho decente, a população negra (pretos e pardos) com ensino superior completo ou incompleto teve aumento de 3,3% em sua participação na População Economicamente Ativa (PEA), entre 2009 e 2014. Já a população não-negra (brancos, amarelos e indígenas) teve, no mesmo período, um crescimento de 11%.

No ano de 2014, 12,1% dos negros incorporados na PEA tinham pelo menos iniciado um curso superior. No mesmo ano, a parcela de não negros na mesma situação era de 27,8%.

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As práticas sociais que existem fora do universo do esporte influenciam diretamente os pensamentos e ações que serão trabalhados dentro de campo. Assim, a identidade racial branca, chamada de branquitude, por ser uma posição de poder, passa da sociedade para o futebol.

“A branquitude é o princípio definidor da identidade coletiva”, diz Marcel Diego Tonini, doutor em História Social pela USP e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS-USP) e do Grupo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol (GIEF).

Para Tonini, “por mais que essa coletividade não seja composta apenas por brancos. Isso explicaria o fato de negros também adotarem às vezes práticas e discursos racistas”.

“Quase quatro séculos de escravidão não se apagam em pouco mais de um século de uma sociedade que se diz não-escrava. A escravidão deixou sequelas, causou feridas profundas”, lembra Denaldo.

“Assim, arrisco afirmar que quando um torcedor branco ou mulato xinga um jogador negro de um time adversário, ele está se sentindo mais poderoso, branco e aceito pelo grupo social a qual ele faz ou quer fazer parte”, completa ele.

Três de quarenta

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“Subindo a hierarquia, são raríssimos os negros em cargos de comando, em especial o de treinador, ainda que a base de recrutamento usual para este posto venha basicamente do universo de ex-atletas”, constata Tonini. Esse dado se comprova facilmente.

No campeonato brasileiro de 2016, nas séries A e B, apenas três treinadores negros terminaram o campeonato com contratos vigentes, configurando 37 treinadores brancos nos 40 clubes que disputam as duas melhores divisões nacionais. Na série A, apenas Jair Ventura, do Botafogo e Marcos Aurélio (Marcão), no Fluminense chegaram ao final do brasileirão. Ambos eram auxiliares técnicos nos clubes, ou seja, não foram contratados para o cargo de treinador desde o início.

Na série B, apenas Givanildo Oliveira, no Náutico, terminou a competição. Mas não continuará para a próxima temporada no time pernambucano, pois foi demitido logo após o fim do campeonato.

Vale mencionar também que Roger Machado e Cristóvão Borges, treinadores que foram demitidos de Grêmio e Corinthians, foram contratados para a próxima temporada, respectivamente, por Atlético Mineiro e Vasco. Além disso, Marcos Aurélio já voltou ao posto de auxiliar técnico do Fluminense, que anunciou a contratação de Abel Braga para o cargo.

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Contratado pelo Atlético Mineiro, Roger Machado é considerado um dos grandes técnicos brasileiros da nova geração (Foto: Rodrigo Rodrigues/Grêmio)


“Quais os motivos?”, questiona o pesquisador. “Eles não poderiam mandar em brancos nem teriam capacidade intelectual para estabelecer estratégias de jogo? Para o cargo de dirigente, que demanda também habilidades políticas, para além do cumprimento de pré-requisitos estatutários, pior ainda. A possibilidade aberta aos negros no futebol, portanto, é apenas como jogador, roupeiro, massagista, preparador físico ou técnico, no máximo técnico interino, nada além disso”, conclui.

Para Denaldo, uma das justificativas para o baixo número de negros como técnicos é o argumento de que parte dos ex-jogadores negros não possui nível superior. “Não se discute as razões históricas da baixa escolaridade da população negra no Brasil, apenas apresentam o dado”, protesta.

“Outro exemplo é você argumentar que existem poucos dirigentes esportivos negros porque eles não possuem habilidade para o comando. Tais detratores esquecem de dizer que a história do comando esportivo no Brasil é uma história coronelística. As mesmas personalidades e famílias se perpetuam no poder das federações e confederações, transformando-as em extensões de suas casas, privatizando uma prática que deveria ser pública”, pontua.

“Realmente os pretos do futebol procuraram, à medida que ascendiam, ser menos pretos. Esquecendo-se de não se lembrar, mesmo em alguns casos, que eram pretos”, escreveu Mário Filho, em 1964. Passados mais de 50 anos, a realidade parece ainda não ter mudado muito.

Redação

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