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“Como é que se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra?”

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Carta do Cacique Seattle ao presidente dos EUA Franklin Pierce escrita há mais de 150 anos cabe perfeitamente ao Brasil do século XXI

Em 1854, o então Presidente dos Estados Unidos, Franklin Pierce, iniciou uma polêmica negociação com os povos indígenas da região de Puget Sound, em Washington. A proposta do governo era retirá-los de suas terras e transferi-los para uma reserva indígena, oferecendo como contrapartida algumas garantias em dinheiro. O Cacique Seattle, liderança das tribos Suquamish e Duwamish, leu uma carta que se tornou um dos maiores registros da geração sobre a importância da terra para a continuidade da existência e da ancestralidade indígena.

“Como é que se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra? Essa idéia parece estranha. Se não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como é possível comprá-los? […] Cada pedaço desta terra é sagrado para meu povo. Cada ramo brilhante de um pinheiro, cada punhado de areia das praias, a penumbra na floresta densa, clareira e inseto a zumbir são sagrados na memória e experiência de meu povo. A seiva que percorre o corpo das árvores carrega consigo as lembranças do homem vermelho”, escreveu.
“Os mortos do homem branco esquecem sua terra de origem quando vão caminhar entre as estrelas. Nossos mortos jamais esquecem esta bela terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela faz parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs: o cervo, o cavalo, a grande águia, são nossos irmãos. Os picos rochosos sulcos úmidos nas campinas, o calor do corpo do potro, e o homem – todos pertencem à mesma família”, continua ele.
O discurso do Cacique Seattle se mantém até hoje como um dos alicerces que representam a importância da natureza para a continuação de muitos povos nativos. A relação dos indígenas com a natureza leva em consideração o fato de que ela não se apresenta de uma forma homogênea, e sim por uma variedade de ecossistemas, como o conjunto de minerais, gases, elementos do clima, plantas, fungos, animais, e por fim humanos.
Cada terra indígena – 560 existentes, de acordo com o Museu do Índio -, está localizada em espaços com ecossistemas bem diferentes. Cada um deles faz com que os indígenas tenham que se adaptar a suas formas, para obter os recursos necessários para sua sobrevivência e continuidade de sua cultura e costumes.
Mas isso, por sua vez não significa que o desenvolvimento cultural dos indígenas seja determinado pelo ambiente em que eles se encontram. “Mas sim que cada ecossistema apresenta possibilidades e limitações, exigindo dos índios diferentes respostas adaptativas”, de acordo com Emilio Moran, escritor do livro “Ecologia Humana das Populações da Amazônia”.
Diferente do que se tornou a sociedade ocidental, muitos povos indígenas valorizam o saber comunitário e a natureza, provedora de tudo que eles necessitam para existir. No trabalho do cultivo, está implícito o aprendizado ancestral, com todos os saberes necessários para dar continuidade ao ciclo. Esse trabalho, por sua vez, é importante porque eles se dão conta de que respeitar e preservar a natureza é o mesmo que garantir a manutenção de sua sobrevivência.

Mas as compreensões dos índios sobre o que é a natureza variam muito de acordo com cada povo, que tem suas particularidades e características próprias para compreender as relações que estabelecem com a natureza.
“Os povos indígenas, em sua maioria, possuem um rico acervo de concepções cosmológicas, principalmente de origem da vida, que estão relacionadas com os elementos da natureza como plantas, animais, rios, lagos, pedreiras, entre outros, que fazem com que eles se sintam parte integrante da natureza. Por exemplo, os Ribkbaksa tem como mito de origem serem filhos do peixe cará, por isso eles não comem esse peixe, nem destroem o ambiente onde ele vive, que passa a ser sagrado para eles”, conta o antropólogo Elias Januário, coordenador da Faculdade Indígena Intercultural, em entrevista para a Gazeta Digital.
Essa relação de afeto e amor faz com que a conexão com a terra seja mais sagrada, uma verdadeira dádiva. O homem ocidental tem outra relação com ela, que é de dominação e exploração. É na natureza que indígenas guardam suas lembranças, vivências, mitos e rituais. Enquanto o homem branco aprende desde cedo a controlá-la; seja guardando em gaiolas, seja desprezando seus poderes ancestrais.  
De acordo com Leonardo Boff, em seus estudos sobre a Floresta Amazônica, “ser humano e floresta evoluíram juntos numa profunda reciprocidade”. Mas a realidade própria do indígena passa bem longe do pensamento megalomaníaco do homem ocidental capitalista. O grande elemento desestabilizador dessa harmonia foi o homem branco. Com a colonização e o avanço capitalista, somado ao fato do homem branco ter sido criado sob a égide do catolicismo, os elementos da natureza foram sendo corrompidos, maltratados e transformados em produto – no sentido comercial da palavra -.

Nesse caso, quando uma característica tão importante para a ancestralidade de um povo é transformada em produto, ao mesmo tempo ela perde seu significado, sua relação com a história e sofre um esvaziamento de sentido. Mais ou menos o que acontece hoje nos debates sobre a apropriação cultural, quando um grupo situado no topo da pirâmide social se utiliza de elementos com importância cultural de outro grupo, por sua vez, oprimido, e ao comercializá-lo, não leva em consideração o valor simbólico que este possui. Porque, no fim, o objetivo final é o lucro, e não a preservação de culturas, etnias e valores sociais históricos.
Em novembro de 2016, um protesto ocorrido na casa da Frente Parlamentar da Agropecuária, em Brasília, demonstrou como os dois lados tratam a questão. O protesto tinha como objetivo criticar e impedir o Plano de Desenvolvimento Agropecuário Matopiba, um decreto presidencial que prevê investimentos dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, além de empresas japonesas na expansão do agronegócio brasileiro.
“A expansão do agronegócio na região vai ser muito grande. Eles estão visando o capital, sendo que nós visamos a vida. Não adianta ter o capital no bolso e não ter o oxigênio para respirar”, contou Ivonete Krahô-Kanela, liderança do Tocantins, em entrevista para a Carta Capital.
Para os povos historicamente colonizados, explorados e submetidos a opressão, os componentes simbólicos de suas culturas, crenças e religiões são partes importantes – quando não indispensáveis -, da construção desses povos como resistentes e portanto, do progresso de suas histórias. É como o valor imaterial do turbante para os povos negros, das músicas e cânticos dentro dos terreiros.

Desde o período da colonização, os indígenas foram povos oprimidos, escravizados e viram e seus conhecimentos sobre a natureza serem extraídos para aplição comercial. Numa comparação superficial entre os dois grupos – que também sofreram e sofrem um processo de genocídio por parte do Estado -, a maior parte de seus recursos imateriais, materiais, religiosos e culturais foi sendo sistematicamente apropriado e destruído pelo homem branco.  
Mesmo sabendo que a natureza é uma das principais fontes de recursos dos povos indígenas, uma das principais problemáticas é a omissão do Estado brasileiro com relação a isso. A bancada ruralista no congresso nacional está mais fortalecida do que nunca e lança uma ofensiva sobre as terras indígenas, gerando cada vez mais conflitos e sofrimento para os nativos.

Um episódio emblemático ocorreu em 2013, quando cerca de 1000 produtores rurais protestaram contra a demarcação das terras indígenas proposta pela Fundação Nacional do Índio (Funai), interrompendo um discurso da presidente Dilma sob gritos de “não à demarcação, sim à produção”. Uma semana antes, cerca de 700 indígenas haviam ocupado o plenário da Câmara dos Deputados para tentar impedir a aprovação da PEC 215, que propunha transferir para o legislativo o poder sobre a homologação das terras indígenas.

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Indígenas ocupam plenário da Câmara contra PEC 215 em 2013. Foto: Gustavo Lima/Agência Câmara



Na ocasião, a deputada Janete Capiberibe (PSB-AP), integrante da atravancada Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas afirmou que “há uma forte ofensiva legislativa patrocinada pelo agronegócio” e acusou os deputados de não ouvirem os indígenas ao propor, discutir e aprovar projetos relacionados à questão.


“Nos últimos 50 anos, o agronegócio avançou sobre as suas terras de forma muito agressiva, e hoje eles estão confinados em oito reservas com áreas entre 2,4 mil e 3,5 mil hectares. Estima-se que 40 mil guaranis-kaiowá vivam em acampamentos espalhados pelo País. Sem terra, os integrantes dessa etnia ameaçam cometer suicídio coletivo, porque é inconcebível para eles não viver na terra de seus antepassados, de seus ancestrais”, avalia a deputada.
Episódios como esse mostram que a tensão que permeia a relação com a terra e o território, indígenas e ruralistas, iniciada há mais de 500 anos no Brasil, parece estar longe de ter um ponto final. Enquanto o impasse não é resolvido, se torna cada vez mais difícil reverter a enorme perda das vidas indígenas brasileiras para o capital. O que parece ser regra no Brasil desde seu início é a guerra, o genocídio e o epistemicídio de qualquer grupo que busque de alguma forma resistir ao avanço dos donos do poder e do dinheiro. Nada de novo.

Redação

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