Por Rafaela Thimoteo
A pandemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2) é até o momento responsável pela morte de mais de 500 mil pessoas no mundo. Para diminuir a transmissão do vírus, organizações de saúde recomendam a higienização das mãos, uso de máscaras e, principalmente, o isolamento social. No Brasil, a quarentena foi iniciada em março e com isso, muitos estabelecimentos foram temporariamente fechados, exceto aqueles considerados essenciais, como farmácias, mercados e afins.
Neste cenário de instabilidade na saúde pública, em setores sociais e econômicos, como está a situação cultural no país, especificamente a literária? Como os leitores, escritores e o mercado editorial brasileiro – que ainda se recuperava da crise das Livrarias Saraiva e Cultura – têm lidado com a pandemia?
TRANSFORMAÇÃO DA ROTINA
A escritora, jornalista e professora de língua portuguesa, Marina Carvalho, é autora de “O amor nos tempos do ouro”, publicado pela Editora Globo Alt, “Elena” pela editora “Galera Record”, entre outras obras, e é uma das pessoas que têm feito home office durante a quarentena. Além das mudanças que ela observa na rotina como professora, Marina relata que “fora o trabalho, eu acredito que o peso, o medo, a angústia e preocupação influenciaram muito a minha criatividade”.
“Me sobra um certo tempo, mas não me sobra inspiração, pois eu tenho sido muito negativamente afetada, não por estar em casa, mas por me preocupar com o que virá no futuro” (Marina Carvalho).
“Para mim, a principal dificuldade como escritora é conseguir despertar a vontade de escrever, conseguir me concentrar para desenvolver o enredo e ser inspirada”. A autora diz que com planejamento, organização e disciplina consegue escrever suas histórias, e que até tem o costume de montar roteiros para facilitar a escrita, no entanto isso tudo precisa vir recheado com a criatividade e inspiração. “É essa parte artística que anda muito afetada, para mim tem sido muito difícil me concentrar, me inspirar, ver as coisas bonitas, belas, boas para passar para escrita. Eu tenho sido profundamente afetada pela preocupação, pelo medo, por tudo isso que ronda o mundo e o Brasil em específico”.
Alguns leitores estão se sentindo de forma parecida, como é o caso de Lucas Fagundes Leite, assistente de estilo e criador do Claquete Literária, perfil onde compartilha suas leituras. “Estou trabalhando de home office desde março e tendo aulas EAD. Ficar todo esse tempo em casa traz um desânimo, por conta da diferente estrutura do trabalho, do curso online ao invés de presencial (eu estudo moda, que é bem prático). Esse desânimo, junto com a frustração, acaba tendo influência no meu controle sobre o tempo”. Já Bianca Araujo, auxiliar administrativa e dona do perfil Zumbi Literário, diz que a empresa onde atua manteve a mesma jornada de trabalho e que o ritmo de suas leituras diminuiu um pouco no começo da quarentena, mas que agora já voltou ao normal.
Lucas diz que procurou nos livros uma forma de se manter distraído para não ter crises por conta da realidade e do confinamento. “Criar conteúdo na Internet sobre literatura também contribuiu bastante para me reconfortar e me entreter”. Ele comenta que além disso, faz parte de um clube do livro, que segue com as leituras mensais e discussões por vídeo chamadas.
Bianca Araujo também comenta que tem sido difícil ver toda essa situação acontecendo. “Sinto falta do contato que eu tinha com vários amigos do Clube do Livro “Só Mais Um Capítulo”, pois nos reuníamos pessoalmente sempre para conversar sobre nossas leituras. Mas, sei que estão todos bem e temos conseguido nos manter unidos através de nossas leituras e de nossos encontros virtuais”.
AS PESSOAS ESTÃO LENDO MENOS OU MAIS DURANTE A QUARENTENA?
Na perspectiva da escritora Marina Carvalho, quem já tinha o costume de ler está lendo mais. “A leitura nos ajuda muito a esquecer os problemas, embarcar em outras ideias e até desenvolver nosso pensamento, então quem tinha o costume de ler muito provavelmente tem lido mais, tem buscado nas leituras um alívio, um momento de respirar, de dar uma afastada disso tudo”. Por outro lado, ela aponta que quem já não tinha esse hábito pode estar aproveitando o tempo para consumir outros objetos culturais, através da TV, dos streamings, das lives, ou ouvindo muita música.
Lucas Fagundes acredita que o número de leitores aumentou nessa quarentena, pois os livros viraram uma “válvula de escape da realidade”. Ele diz que o seu rendimento em leituras praticamente dobrou no isolamento social. “Acredito que os livros e a cultura têm o poder de retomar um pouco o tempo ‘pré quarentena’, porque nos entretém e nos distraem das notícias ruins que são bombardeadas todos os dias. Os livros e a cultura nos mantém sãos”.
Já a criadora de conteúdo da página Zumbi Literário acredita que “algumas pessoas passaram a ter mais tempo livre e oportunidades para ler, já outras passaram a ler menos por causa da nova rotina. Não sei dizer se no total o número de leitores diminuiu ou aumentou, mas minha sensação é de que mais pessoas tem falado sobre o mundo literário em redes sociais”, comenta Araujo.
Para Mariana de Souza Lima e Nana Vaz, respectivamente diretora de marketing e diretora de aquisições da Editora Sextante, “o único dado concreto que temos para nos basear é a venda total de livros, que caiu muito em virtude do fechamento das livrarias físicas”. Segundo Mariana, a percepção que se tem é que muitos leitores habituais estão tendo dificuldade de encontrar tempo para leitura, uma vez que precisam trabalhar remotamente e cuidar de todas as tarefas domésticas. “Ao contrário do que se pensava no início da quarentena, o tempo para leitura diminuiu. Além disso, a diminuição da renda, que atingiu vários segmentos socioeconômicos, levou a um consumo menor de livros”, relata.
Com relação à quantidade de livros produzidos, Mariana diz que nos tempos de isolamento social cortaram os lançamentos e colocaram no mercado apenas o que já estava sendo impresso. “Temos sorte aqui na Sextante em termos um catálogo que funciona por muito tempo. ‘Os segredos da mente milionária’, por exemplo, é nosso livro mais vendido e foi lançado há mais de 10 anos”, afirma. “Temos conseguido vender nossos livros através das livrarias online. Com isso, aqui na Sextante ninguém teve o salário e jornada reduzidos. Ver as livrarias físicas sofrerem com a pandemia é muito triste”.
“Muitas pessoas iam até as livrarias para conhecer novas obras, pesquisar, escolher, olhar e folhear os livros antes de comprá-los”, diz Araujo. Em relação ao mercado online, ela acredita que agora houve aumento na demanda, já que muitos consumidores passaram a desfrutar de e-books e outros serviços oferecidos pelas editoras e pelos comércios digitais.
A INFLUÊNCIA DO MEIO DIGITAL
Para Marisa Midori Deaecto, professora de História do Livro da ECA-USP, a principal dificuldade e limitação que o mercado editorial pode estar enfrentando atualmente é o fechamento das livrarias. “Apesar da possibilidade de aquisição de livros pela Internet, a livraria é um ponto essencial”. Segundo ela, as editoras melhor aparelhadas e situadas no campo editorial têm motivado os leitores através das redes sociais com promoções de e-books e, até mesmo a distribuição gratuita dos mesmos. “Há ainda, programas e lives com os autores e tudo isso certamente mantém a editora viva”.
Do ponto de vista da Editora Sextante, “para as livrarias físicas o maior trunfo é a entrega em domicílio, mas isso por si só não garante contas pagas. Restaram as lojas virtuais. A pandemia acelerou a compra online, mudou o comportamento de compra do consumidor que ainda não estava conectado. Investir em conteúdo, anúncios para público qualificado e promoções para o mercado digital nunca fez tanto sentido como agora”.
Mariana Lima considera o uso das redes sociais uma alternativa de grande sucesso. “Proporcionar encontros de leitores com seus autores prediletos é gratificante. Mas também tem o lado da conexão da editora com os donos dos sucessos que publicamos. Somos a editora do Dan Brown (autor de “O Código Da Vinci”), que até hoje não conseguimos trazer ao Brasil. Porém, na live que fizemos, soubemos, inclusive, que Robert Langdon (personagem principal dos livros do escritor) vai ter uma namorada em sua próxima aventura, e ficou a promessa de uma visita a nosso país”.
Lucas, do Claquete Literária, acredita que as redes sociais têm desempenhado um papel essencial na promoção e interação entre leitores, escritores e parceiros das editoras. “É por elas que você descobre novos lançamentos, promoções e eventos”, afirma. “Como criador de conteúdo sobre literatura, eu acabo sendo um mediador dessas promoções e interações, e assim acompanho o que está acontecendo no meio literário”.
Bianca Araujo relembra que no começo da quarentena vários e-books ficaram disponíveis para download gratuito, o que tornou acessível a leitura de várias obras. “Muitas editoras fizeram lives com seus principais escritores, além disso diversos criadores de conteúdo promoveram atividades de leituras coletivas, maratonas literárias e muito mais”, complementa ela.
ALTERNATIVAS PARA INCENTIVAR A LEITURA
A autora Marina Carvalho comenta que uma das alternativas é a ampliação do acesso ao livro digital, por um preço acessível ou até mesmo de forma gratuita pelas plataformas digitais, tanto em e-books quanto audiobooks, que é um formato que tem ganhado bastante espaço aos poucos no mundo e agora também no Brasil”. Esse também é um ponto levantado pela diretora de marketing da Sextante: “os audiolivros são uma excelente opção, porque possibilitam ouvir um livro enquanto, por exemplo, se realizam tarefas domésticas. Acho uma ótima solução para quem quer ler mas não consegue tempo. Inclusive crianças”, afirma Mariana Lima.
De acordo com a leitora Bianca Bretas, o que poderia tornar a leitura mais acessível seria a criação de mais bibliotecas públicas, programas de incentivo a leitura e acesso gratuito a eventos culturais e e-books. Ela cita o exemplo da Editora Arqueiro (parte da Sextante focada em obras de ficção) que disponibilizou alguns livros digitais para as pessoas lerem de graça durante a quarentena.
BIENAL DO LIVRO
Neste ano, a Bienal do Livro em São Paulo, um dos eventos culturais mais importantes para a literatura no país, foi cancelada devido a pandemia. Para Marina Carvalho, “isso vai gerar um baque generalizado nos leitores, nos escritores, no público que respira literatura e que gosta de se envolver com os processos e com as editoras”.
Segundo Lucas, a Bienal tem um papel enorme na formação do leitor, “é um evento com milhares de pessoas e com diversas editoras, o que garante um consumo muito grande. O mercado vai sofrer um impacto, principalmente as editoras e autores menores, que acabam ganhando uma visibilidade maior nesses eventos”, diz. “Apesar de triste, foi uma decisão sensata. O mercado editorial vai precisar de alternativas para driblar esse fato, mas acredito que seja algo bem possível, visto que as vendas pela internet aumentaram também”.
DEMOCRATIZAÇÃO DA LEITURA NO BRASIL
A questão do valor do livro físico é uma das principais problemáticas apontadas por leitores. Em relação a isso, a diretora de marketing da Sextante comenta que o livro tem essa pecha de ser caro no Brasil, mas que se corrigissem o preço de alguns dos títulos que publicam, apenas pela inflação, as obras poderiam custar cerca de R$ 100,00, porém a editora mantém o preço de capa por R$ 54,90, como é o caso de “O Código Da Vinci”.
Para Lucas, o que pode ajudar a promover a literatura no país é “buscar alternativas de baratear os preços de capas dos livros, diminuir as barreiras entre autor e leitor, tudo que ajude a tirar o aspecto elitista da literatura e mostrar que ela pode ser extremamente democrática e abranger qualquer tipo de público”. Ele também ressalta a importância da representatividade, “visto que aproxima e torna comum, como a publicação de autores negros, nacionais, periféricos e LGBTs”.
“A leitura, a meu ver, precisa ser incentivada e menos elitizada, portanto, quanto mais próxima da realidade da pessoa, mas acessível ela pode ser”, comenta Lucas. “Fiz Produção Editorial, sei o trabalho (e custos) para a produção de um livro, mas isso ainda não muda a realidade financeira do país em que vivemos. Como alternativa, a gente pode ter mais sebos e bibliotecas”.
Para Marina Carvalho, “é praticamente impossível encontrar alguém que não consuma cultura de alguma forma, seja em forma de música, em forma de filmes, de séries, de livros, HQs, por meio físico ou digital”. Segundo ela, “a cultura alivia, amplia a nossa visão sobre as coisas, é capaz de gerar certo conforto e nos manter minimamente equilibrados nesse momento tão horrível pelo qual passamos, e sem ela acredito que estaríamos vivendo de uma maneira muito mais oprimida dentro dos nossos próprios sentimentos”.
No entanto, ela ressalta que muitas pessoas não têm condições de voltar seu cotidiano e sua rotina para obras culturais por problemas de falta de privilégios. “Ou porque trabalham desesperadamente para levar comida para dentro de casa ou por outros fatores complicados e complexos que dizem respeito a essa imensa desigualdade que nós vivemos no nosso país”.
A leitora Bianca Araujo diz que gostaria que os escritores e suas obras fossem mais valorizados, que os livros fossem produzidos com mais qualidade e valor acessível. Além disso, salienta que mais parcerias e projetos de leitura precisam ser desenvolvidos junto com as escolas, visando principalmente a educação básica.
Marina Carvalho também reforça o incentivo a recursos para disponibilizar livros acessíveis ao público de uma maneira geral. “Se isso não for feito acredito que os índices de leitura no Brasil, vão ficar cada vez mais vergonhosos e distantes de uma realidade que a gente gostaria de ter”.
No site da Amazon é possível encontrar vários e-books para ler de graça no aplicativo do Kindle. Outra alternativa é o portal Domínio Público, a biblioteca digital do governo federal que disponibiliza gratuitamente um acervo diverso de livros para download, como clássicos da literatura, literatura de cordel, infantil, poesia, obras completas de autores como Machado de Assis, entre outras categorias.