Transfobia é responsável pelas altas taxas de evasão escolar, desemprego e violência. Brasil é o país que mais mata transgêneros no mundo.
A transexualidade é uma condição em que dado indivíduo apresenta características físicas de determinado gênero, mas se identifica com outro. Normalmente, a pessoa se sente desconfortável e manifesta uma sensação de impropriedade em relação ao próprio corpo, podendo realizar um processo cirúrgico de transição de sexo que começa com um tratamento hormonal. Isso é tudo que diferencia alguém transgênero de pessoas cisgênero.
A falta de abertura na sociedade para debater a questão da diversidade de gênero e sexualidade impede que travestis e transexuais frequentem escolas, universidades, tenham acesso ao mercado de trabalho formal, à saúde e demais espaços públicos. Isso reflete violação dos direitos humanos e tem relação direta com a taxa de violência referente à categoria.
O acesso de pessoas transgênero no ensino superior ainda é restrito. Deve-se levar em consideração que tais pessoas podem figurar em outras categorias socioeconômicas de vulnerabilidade, o que significa concorrência desnivelada entre aqueles que disputam vaga em uma universidade.
Vita Pereira é estudante de Pedagogia, na UNESP de Araraquara, e afroeducadora. Ela, travesti racializada e periférica, afirma que sua trajetória dentro de uma Universidade pública tem como sentido trazer para o debate temas e corpos invisibilizados pela sociedade: negros, pobres e LGBTQIA*. Apesar de existir uma portaria de 2014 no site da instituição dizendo assegurar o nome social para pessoas trans, precisou entregar 3 requerimentos para ter seu nome social aceito no espaço acadêmico: “acredito que o nome social é o primeiro passo para humanizar nossas vidas e, em alguma medida, diminuir a expulsão dessas identidades do ambiente educacional”. Comenta, entre outras coisas, que ter de pedir aos professores para ser chamada pelo pronome correto e de acordo com a sua identidade é desagradável. “Pense a vida de uma pessoa que entra às 14 horas na sala de aula da faculdade e sai às 18 horas todos os dias, de segunda a sexta, e ainda tem que rabiscar o nome de registro todo dia e colocar o nome social”.
No ano em que ingressou na universidade, 2016, o Ministério da Educação (MEC) comunicou que o número de requerimentos para uso de nome social no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) aumentou em 46,40%. Foram feitas 407 solicitações; em 2015, 278. O exame é a principal forma de ingresso ao ensino superior no país, sendo requisito para a matrícula em universidades federais.
Vita reflete que, em relação ao uso de nome social no ENEM, houve um avanço de 2014 para cá, ano em que apenas 102 pessoas trans usaram identificações diferentes do nome de registro. E levantou uma questão: esse grupo está conseguindo ocupar cadeiras na academia, mas e a sua permanência? “Acontece que, por conta desse projeto educacional neoliberal, submetido aos interesses do mercado, foram realizados grandes cortes e ataques na educação e em outros setores, assim, ocasionando desmonte e precarização das Universidades públicas. E isso tem um grande impacto quando falamos de permanência estudantil”, explica Vita, que segue estudando com ajuda de uma bolsa concedida pela instituição. E, falando em mercado, vale lembrar que apesar de obterem diploma, as pessoas trans dificilmente conseguem encontrar ou mesmo firmar um vínculo empregatício devido à transfobia presente no ambiente de trabalho.
Seu discurso revela a importância da universalização das universidades públicas, o que garante aos grupos marginalizados e usados como objetos de estudo o acesso livre e a oportunidade de construir conhecimento nesses espaços. Vita ressalta a falta de identificação com a história oficial, reproduzida no currículo acadêmico, e a inexistência de autores trans na bibliografia de pesquisas sobre educação sexual.
Formada em Design de Moda pela Universidade do Sagrado Coração de Bauru, Olga Barbosa acredita que a comunidade trans ainda tem muito o que avançar no espaço acadêmico: “quantas pessoas trans vocês vêem nesses espaços?”. Ela afirma que é um privilégio poder falar disso, visto que o número de transgêneros matriculados no ensino superior ainda é muito pequeno se comparado com o acesso de pessoas cisgênero, e sente que “ser trans é relevar muita coisa”, no que diz respeito ao tratamento recebido por servidores docentes e técnico-administrativos.
É possível dizer que a falta de preparo dos profissionais atuantes nas universidades, seja em sala de aula ou em posição de coordenaria, se deve à educação (ou pressão social) racista, machista e cisheteronormativa que recebemos desde novos. “Se não acontecer debates, formações contínuas e desconstrução com servidores e funcionários, haverá transfobia e reprodução de outras opressões dentro e fora da Universidade. E isso mostra a importância da ponte e diálogo dos funcionários com coletivos LGBTQIA+, feministas e da luta antirracista”, sugere Vita.
As duas participam de coletivos dentro e fora da universidade, que atuam em nome do debate sobre gênero e sexualidade. Vita conta que a Coletiva Be se organiza de forma autônoma e que realiza intervenções que promovem o diálogo tanto com a comunidade acadêmica quanto com o resto da população da cidade, como mesas redondas, festas e saraus. A ideia do grupo é produzir espaços culturais pensados por e feito para LGBTs. Já Olga, que iniciou sua transição no final da graduação, diz que os coletivos LGBTs, no início, eram mais voltados para homossexuais do sexo masculino: “a pauta trans começou a ser discutida a pouco tempo”.
Em 2014 as paredes dos banheiros da Universidade de Campinas (UNICAMP) foram alvo de pichações com ofensas transfóbicas e, infelizmente, isso ocorre em muitas universidades do país. Um ano mais tarde, a UNESP de Bauru também teve um caso em que mensagens racistas e misóginas foram rabiscadas nos banheiros. “O que está em jogo é a disputa da narrativa do que é ser mulher. E sobre isso estamos falando de poder. E essas pessoas que geralmente são de classe média e brancas precisam olhar para além o umbigo delas. Precisam entender que têm outras vivências em jogo”, desenvolve Vita.
Apesar de convergirem um ponto em comum, a luta contra a cisheteronormatividade, tanto Vita quanto Olga ressaltam a existência de diversas vertentes dentro do movimento feminista.
“Existe um grupo dentro do feminismo que vê a nós, mulheres trans, como privilegiadas. É um direito delas acharem isso, da mesmo forma que é um direito nosso lutar contra isso”, explica Olga. Vita complementa, dizendo compreender que o conceito de mulher não é universal, e que pensar na mulher de forma padronizada exclui e invisibiliza outras realidades: “sou feminista interseccional porque é preciso pensar além do gênero. Enquanto travesti, negra e periférica, há outros marcadores que me interpelam como raça e classe”.
As violências transfóbicas começam desde cedo, tanto em ambiente familiar quanto nos espaços públicos, como as escolas. As agressões ocorrem de diversas formas: comentários ofensivos, repressões e tentativas de controle comportamental, ataques físicos e homicídios.
Em pesquisa liberada em 2013, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que a expectativa de vida média nacional é de 74,9 anos, enquanto o Transrevolução afirma que no caso de pessoas transexuais o número não ultrapassa os 35 anos.
É possível observar no infográfico acima que a América do Sul e a América Central são os continentes onde há mais registros de homicídios de pessoas transexuais. Em verdade, dos 5 países principais da lista, 4 são latino-americanos. O Brasil está no topo, com 900 assassinatos nos últimos 9 anos. Tal número corresponde a 46,7% dos registros.
De acordo com a organização Rede Trans, que realiza monitoramentos de violências sofridas por transexuais no Brasil, o primeiro semestre de 2017 registrou 87 assassinatos, 36 a menos que o ano passado inteiro. Se os números se repetirem ao longo dos próximos seis meses, haverá um aumento de 41,46% nessa estatística.
E o Brasil está no topo de outro tipo de ranking: o site pornográfico Redtube divulgou um levantamento que revela alguns comportamentos do povo brasileiro com a pornografia. No texto da pesquisa, os autores foram categóricos: “brasileiros têm 89% mais chances de procurar por vídeos de transexuais, comparados com o resto do mundo”. Entre os 30 termos mais buscados nacionalmente, estão “travesti” e “travesti brasileira”.
No dia 15 de fevereiro deste ano, a travesti Dandara dos Santos, de 42 anos, foi espancada com chutes, golpes de madeira e assassinada a tiros em Fortaleza, Ceará. Uma quinzena depois, o vídeo do ato que mostra três homens a agredindo foi compartilhado inúmeras vezes nas redes sociais. As reações foram mistas: uns repudiaram a atitude dos agressores, enquanto outros aproveitaram a oportunidade para destilar transfobia através de comentários cruéis.
O governo do Estado se manifestou, reprovando o crime por meio de nota oficial, dizendo que “o pluralismo, a diversidade e a tolerância são valores fundamentais para a democracia”. Oito suspeitos da ocorrência foram apreendidos desde então.
Os direitos humanos são aqueles que a sociedade pauta como mínimos para se ter qualidade de vida: liberdade, igualdade e fraternidade. Poder se expressar, votar, reunir, estudar, trabalhar, ter cuidados de saúde, entre outros. A maioria deles são negados às chamadas minorias sociais, como a comunidade transexual, que se vê marginalizada em situação de vulnerabilidade.
“Quando pensamos no direito à liberdade de expressão, como conceito que abarca a expressão da identidade de gênero de grupos marginalizados, lembramos que as agressões e discriminações praticadas em razão de identidade de gênero não são criminalizadas no Brasil, deixando desprotegidas travestis e transexuais vítimas da intolerância”, explica Thales Coimbra, militante e advogado especialista em direitos LGBT. Ele reflete que essa negação de direitos humanos a travestis e transexuais ocorre devido à transfobia presente nos mais diversos espaços públicos, como escolas, hospitais e ambientes de trabalho. “A transfobia é o sistema de valores que, assim como o racismo e o machismo, contamina nossa cultura, fazendo com que pessoas transexuais não sejam lidas como humanas, como semelhantes, mas como o ‘outro’, alguém que pode ser violado e violentado”.
A falta de sensibilização social frente às violências cometidas contra pessoas trans pode ser compreendida pela ideia de que identidade de gênero é definida e padronizada por sexo. Thales atribui à isso a não aceitação de tais identidades, que perturbam a ordem cisheteronormatia e transgridem seu complexo de regras: “é importante entender que a transfobia está intrincada em todos os âmbitos de nossa sociedade e de nossas instituições, legitimando práticas injustas, a partir de justificativas enviesadas pela compreensão de que só são humanos e, portanto, sujeitos de direitos e de suas trajetórias quem obedece a regra que associa pênis à masculinidade e vagina à feminilidade”.
“A sociedade em geral não se sensibiliza com a violência praticada por identidade de gênero” (Thales Coimbra)
A precária ou inexistente qualificação profissional se mostra um grande desafio para a inclusão de transexuais e travestis no mercado de trabalho formal. Em estimativa feita pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), consta que 90% das travestis e transexuais brasileiras se voltam para a prostituição ao menos em algum momento de suas vidas. É a profissão que mais absorve essa população, passando a fazer parte de um processo de estigmatização social e sendo compreendida pelo senso comum como uma característica intrínseca e generalizada.
Essa barreira para a empregabilidade se relaciona diretamente com as opressões vivida em ambiente familiar e o despreparo da educação brasileira em reconhecer a diversidade e desenvolver coletivamente novas noções de gênero e sexualidade, que Vita Pereira afirma ser de extrema importância. Muitos se vêem obrigados a deixar suas casas ainda jovens pela falta de compreensão e afeto de seus parentes, e a taxa de evasão escolar se aproxima de 82%. Em verdade, de acordo com estudo realizado pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (ABGLT), 73% dos estudantes não declarados heterossexuais no Brasil já foram agredidos verbalmente na escola, enquanto agressões físicas ocorreram com 1 a cada 4 alunos.
Thales acredita que a saúde seja a área mais contemplada por avanços jurídicos, apesar de que isso não necessariamente significa valor prático: “há Portaria do SUS que determina o respeito ao nome social, mas a mesma nem sempre é cumprida pelos funcionários da saúde; há Portaria do Ministério da Saúde regulamentando o processo transexualizador no SUS, mas poucas cidades oferecem efetivamente esse acompanhamento”.
Em 2016 a então presidente Dilma Rousseff assinou um decreto que determina o respeito ao nome social pela Administração Pública em nível federal. “O reconhecimento de sua dignidade, ainda que transgredindo a cisnormatividade, implica no empoderamento dessa população como cidadã, como um sujeito de direitos que não pede favores ao Estado, mas exige aquilo que lhe é devido. Assim, o decreto contribui para a emancipação de travestis e transexuais como cidadãs efetivas e não de segunda categoria”, afirma Thales. Ele, no entanto, reforça que este é um avanço “circunscrito ao âmbito federal”, ou seja, os governos municipais e estaduais ainda podem interferir e suprimir a legislação.
Além de ser o país que mais mata travestis e transexuais no mundo, a negligência do poder público brasileiro de coletar, sistematizar e registrar dados a respeito dessa população contribui para a invisibilização social da mesma. Esse trabalho fica por conta de ONGs e coletivos como a Rede Trans e o Grupo Gay da Bahia, que selecionam casos de homicídio, suicídio e violação dos direitos humanos, através de notícias e depoimentos, e realizam um mapeamento da violência sofrida. Thales ressalta que a existência de dados é necessária para garantir o exercício de cidadania e para que o Estado elabore e implemente políticas públicas que combatam a exclusão social que a categoria enfrenta.
Como não existem leis que assegurem seus direitos e a criminalização da transfobia não é uma realidade, Thales esclarece que as pessoas trans vítimas das mais diversas violências podem recorrer na justiça com ações comuns referentes à danos morais, injúria e lesão corporal.