Amador significa aquele que ama, ou faz por amor. No caso do futebol amador, remete a alguém que pratica o esporte por prazer e não como profissão. Em Bauru, os times amadores sobrevivem e mantêm fortes relações identitárias com torcedores e comunidades
É janeiro de 2016. Há 105 anos, o esporte de Bauru ostenta um escudo vermelho e branco que conta um capítulo de sua história. Neste janeiro distante do mês de setembro de 1910, quando foi criado o Esporte Clube Noroeste, o time lança a campanha “Selfie no estádio”. Com essa ação, que incentiva os torcedores que frequentam os jogos do “Norusca” a fazer fotos nas partidas, a diretoria do clube tenta aumentar os laços com sua torcida e despertar o interesse dos jovens seguidores e daqueles conectados nas redes sociais.
Enquanto isso, sem campanha articulada, em outros gramados da cidade de Bauru, clique após clique formam um numeroso arquivo de “selfies” que ilustram as páginas das redes sociais de torcedores, jogadores e apaixonados pelo futebol amador. Em plenas férias dos campeonatos do município, a aproximação com os torcedores não é problema para os times do também chamado futebol de várzea.
Embora a cidade de Bauru tenha sido reconhecida por aqueles que foram seus grandes times, como o Noroeste e o Bauru Atlético Clube – mais conhecido como Baquinho, os tempos áureos para o futebol profissional do município se foram. Hoje, um século depois do surgimento do Noroeste e décadas depois do BAC apresentar para o mundo o menino que se tornaria o grande Pelé, a paixão que mais aquece o coração torcedor de muitos bauruenses é o futebol amador.
Os times amadores do município disputam dois campeonatos principais durante o ano: a Liga Bauruense e a Copa Semel. O mais antigo dos campeonatos é a Liga Bauruense de Futebol Amador. Em 1931, a LBFA fazia da cidade o palco para sua primeira disputa. Nem a Federação Paulista de Futebol, que organiza torneios como o Paulistão e a Copa São Paulo de Juniores, havia sido criada na ocasião. A Federação surgiu dez anos depois, em 1941.
O campeonato bauruense teve como primeiro campeão o Luzitania Futebol Clube. Os anos que se seguiram trouxeram outros vencedores para a Liga, até que em 1936, o campeonato foi suspenso, com o retorno sete anos depois. De lá para cá, muitas agremiações tiveram momentos de glória.
O Independência Futebol Clube é uma destas equipes. Com três vitórias e 52 anos de história, teve como primeiro presidente Antônio Oliveira Filho. O Indepa, como é conhecido pelos seus torcedores, é o time do coração de Bruno Silva. “A relação com o bairro aqui é muito forte, são 52 anos de vários títulos, a torcida é muito apaixonada pelo time. Aqui somos praticamente uma família”, explica Bruno.
A Copa Semel, promovida pela Secretaria Municipal de Esportes e Lazer (Semel) de Bauru, é mais recente, vai para a sua sexta edição em 2016. Com 20 equipes, o campeonato é realizado entre os meses de março e novembro. A atual campeã é a equipe Oriente, que possui dois títulos. O primeiro veio em 2005, na extinta Liga Regional de Futebol de Bauru (LRFB), que, cinco anos depois, foi substituída pela Copa Semel.
O campeonato organizado pela Semel é uma longa competição, que ocupa a maioria dos meses do ano. Em comparação, o Campeonato Brasileiro – o Brasileirão, principal competição a nível nacional no Brasil dura menos que a competição bauruense: concentra-se entre os meses de maio e dezembro.
Em Bauru, a extensão dos campeonatos e alguns requisitos básicos que exigem investimento financeiro por parte dos times exigem planejamento prévio. Passados quinze dias do final da Copa Semel, as equipes precisam manifestar interesse na disputa do ano seguinte. O Parquinho Futebol Clube, por exemplo, time da Vila Vista Alegre e um dos maiores vencedores dos campeonatos de futebol amador de Bauru, decidiu não participar da Copa Semel 2016 para “colocar ordem na casa”, como explicou o presidente Valdecir Novaes da Silva, em entrevista ao site Futebol Bauru. Ele se referiu à sede do clube, que passará por reformas e precisa quitar débitos.
A fim de se manter, os times realizam eventos e buscam patrocínios. Muitas vezes, as parcerias são firmadas com empresários e microempresários dos bairros que as equipes representam. Os gastos para manter uma equipe na primeira divisão vão de uniformes à infraestrutura de um jogo. Bruno, torcedor do Independência Futebol Clube, explica que, muitas vezes, os treinos são escassos ou inexistentes devido à falta de tempo. “Toda semana tem que pagar a taxa de arbitragem. Senão, nem joga e perde por W.O. Por isso, o time tem a iniciativa de organizar festas e eventos para arrecadar dinheiro”, comenta Bruno.
Os entraves financeiros não afetam apenas os clubes, mas também os jogadores. No futebol amador, os integrantes das equipes não costumam ter o futebol como única profissão. Quando existe alguma remuneração, o valor não é suficiente como renda única dos jogadores. Conciliar os jogos com o trabalho do dia a dia é uma tarefa árdua para eles. Bruno Silva explica que, muitas vezes, os treinos são escassos ou inexistentes devido à falta de tempo. “Alguns jogadores treinam por vontade própria mesmo”, comenta. A fim de manter um time forte o bastante para chegar às finais de um campeonato, o patrocínio é de fundamental importância.
Na composição dos times do futebol amador, existem jogadores que saem de times profissionais e migram para a outra categoria. São, na maioria dos casos, atletas considerados “velhos” para o futebol profissional, e que ainda sentem-se aptos para jogar. O professor José Carlos Marques é líder do Grupo de Estudos em Comunicação Esportiva e Futebol (GECEF) da Unesp de Bauru. Ele comenta que os jogadores profissionais veem o futebol amador como uma possibilidade de se manter no esporte. “Com a bagagem que eles trazem do futebol profissional, eles conseguem ter competitividade, eficiência e qualidade de jogo que, às vezes, não se comparam com a atuação de um jogador que joga bola apenas nos finais de semana”, comenta.
Em entrevista para o Diário de S. Paulo, Marcelo Aguiberto Novelli, presidente do Independência FC, fala sobre a principal diferença entre o futebol amador e o profissional. Segundo ele, a questão pode ser vista por duas vertentes: a comercial e a passional. “O cara não joga o amador por dinheiro igual o profissional faz. Aqui, se gasta mais do que ganha e o jogador tem essa consciência. Eles jogam por amor, assim como a torcida e a comunidade jogam juntos”, explica.
Ubiratan Silva é fundador da extinta Liga Regional e coordenador da Copa Semel. Jornalista e radialista de profissão, seu relacionamento com o futebol amador vem de longa data. Ubiratan ressalta a importância dos campeonatos de futebol amador para os bairros, que é mais social que esportiva. “É uma tradição. Todo domingo de manhã, o povo vai nos estádios ver o time jogar. Já faz parte do cotidiano do torcedor. A comunidade aguarda o campeonato. Chega janeiro e fevereiro, muita gente pergunta quando começa”, relata.
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A gratuidade é um dos fatores que serve de incentivo para levar as pessoas às arquibancadas. A relação próxima entre times e comunidades e a veia popular do futebol amador remetem à fase do estabelecimento da cultura do futebol no Brasil e no estado de São Paulo. Foi em espaços abertos, campinhos e nas áreas chamadas de “várzeas” que o esporte se popularizou. Os “times de várzea” foram o espaço para que negros e pobres se apropriassem do futebol, que era imposto como esporte de elite nas primeiras décadas do século XX e marginalizava as camadas populares da sociedade.
Em razão da força simbólica e cultural que carrega, os times do futebol amador costumam tornar-se patrimônio de suas comunidades. Para o professor José Carlos Marques, as partidas entre as equipes envolvem muito mais do que futebol. “O confronto entre o time A e o time B são a rivalidade entre os bairros representada em uma partida de futebol”, analisa.
O fenômeno de identificação entre time e região geográfica se repete em outras localidades. José Carlos Marques destaca o caso de Buenos Aires: “o futebol argentino mostra muita identificação do time com o bairro em que ele está sediado. Tem o San Lorenzo de Almagro; Boca Junior do Bairro da Boca; o Independiente e o Racing de Avellaneda e por aí vai”. No Brasil, destaca-se o caso do Rio de Janeiro. “Quando o futebol se instalou no país, muitos clubes do Rio ganharam os nomes dos bairros onde eles se originaram. Bom Sucesso, Olaria, Campo Grande, Bangu, Botafogo, Flamengo, entre outros”, enumera.
No futebol amador, a identificação da comunidade com sua equipe é essencial. Em meio a histórias de desafios e conquistas, é possível perceber que a paixão pelo futebol e o apoio popular contribuem para manter as equipes firmes. Em Bauru, há casos de jogos decisivos em que os estádios de futebol amador recebem mais torcedores do que partidas do time profissional da cidade. De acordo com José Carlos Marques, “a relação identitária que existe entre o futebol amador e seus bairros é maior hoje do que a relação identitária que existe entre o Noroeste e a cidade”.
A tradição do futebol amador em Bauru se estende por décadas e o amor pelo futebol passa de pai para filho. As relações entre o clube e a torcida são muito próximas, quase não se distinguem. O jogador que sai do trabalho e encontra forças para dar “uma esticadinha” no campinho e o torcedor que grita na arquibancada carregam a mesma paixão pela camisa que vestem e o mesmo peso de saber o nome, a aparência e o endereço dos moradores da comunidade pela qual jogam.
As palavras tendem a perder o impacto quando faladas com recorrência. No caso da palavra “amador”, até alguns dicionários se renderam ao sentido prático do verbete. O Aurélio diz: amador é aquele “que se dedica a uma arte ou ofício por mero prazer”. Nas entrelinhas nem sempre explícitas, fica a quase poética explicação para os tais amadores. Gente que ama e, por isso, se doa.
Em termos etimológicos, a palavra amador trata-se da adição do sufixo -dor ao verbo amar. Esta partícula cria adjetivos com o significado de agente. Gente que ama e, por isso, age. E age por amor. Por curiosidade da língua portuguesa, nas experiências vividas pelas equipes e por suas comunidades, faz-se presente o outro significado para “dor”. Por coincidência ou capricho da língua, há muita dor em ser amador.
O ano começa movimentado para os times. Enquanto os campeonatos principais não chegam, os amistosos são uma das formas encontradas como treino. Mais um janeiro acaba para o futebol bauruense. As férias, que, na teoria, estão em curso, não chegaram a ser realmente férias. Fevereiro está com os pés na área e os campeonatos de futebol amador estão no aquecimento. Foi dado o apito inicial. As inscrições para os principais torneios começaram e os times estão à espera do reencontro oficial com a bola.