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Armas pela vida?

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Com a aproximação das eleições presidenciais deste ano, o debate a respeito da posse e do porte de armas de fogo no Brasil ocorre com ainda mais frequência. Isso porque o assunto é pauta de alguns pré-candidatos à presidência e gera diferentes posicionamentos em suas campanhas eleitorais.

De acordo com o policial federal e especialista em segurança pública, Roberto Uchôa, a princípio, os assuntos relacionados às armas de fogo no país eram controlados pelas Forças Armadas. A primeira legislação específica sobre a aquisição e o registro de armas de fogo por civis foi instituída em 1997. “Para muitos, essa lei foi um avanço por tirar dos militares o protagonismo sobre o tema. Por outro lado, ela foi considerada muito branda no aspecto da criminalização de condutas e controle sobre a circulação de armas”, comenta o policial.

Um dos principais aspectos desta lei (nº 9437/97) foi a instituição do Sistema Nacional de Armas (SINARM), como uma tentativa de centralizar o registro de armas. Controlado pela Polícia Federal, esse órgão surgiu com uma edição posterior da legislação e é responsável por realizar e certificar os registros de armas de fogo de calibres permitidos e de porte de armas dos civis.

Em contrapartida, o Exército ficou com a responsabilidade do controle de armas de fogo dos colecionadores, atiradores e caçadores. E, assim, permitiu que armas de uso restrito (com poder de fogo e capacidade igual ou superior àquelas utilizadas pelas Forças Armadas e pelas forças policiais) fossem adquiridas por esses cidadãos. Para isso foi criado, em 2000, o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (SIGMA). Tanto o SINARM quanto o SIGMA estão em vigor até hoje.

Estatuto do Desarmamento

Até 2003 era possível comprar e registrar armas de fogo sem tanta burocracia no Brasil. Contudo, após um longo período de discussões sobre a possibilidade de atualizar e, com isso, restringir a legislação sobre o registro, o comércio, o porte e a posse de armas de fogo, foi sancionado o Estatuto do Desarmamento, em dezembro daquele ano. Atualmente, esse estatuto, lei nº 10.826/03, é o que está em vigor e rege sobre o controle de armas no país.

Um dos objetivos iniciais do estatuto era deixar mais rígido o comércio de armas e munições. A alteração no artigo 35 da lei impedia a comercialização de armas de fogos e munições em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no artigo 6 do estatuto. Como o novo texto causaria impacto sobre a indústria de armas do país e sobre a sociedade brasileira, foi realizado um referendo, em 2005. Diferente do plebiscito, no qual o cidadão se manifesta sobre um determinado assunto antes da constituição de um ato legislativo, no referendo há uma consulta popular sobre uma lei que já foi elaborada e aprovada pelo Congresso, competindo ao povo aprovar ou rejeitar a proposta. O resultado foi que 63% dos brasileiros votaram a favor do comércio de armas.

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O armeiro Emerson Pinheiro guarda em sua oficina um panfleto da época do referendo, no qual há a defesa do voto contrário à proibição da venda de armas de fogo para civis (Foto: Amanda Araujo).

Já um ponto de destaque da lei é a garantia de recompensa em dinheiro ao cidadão que entregar sua arma à Polícia Federal. Sendo assim, o Estatuto do Desarmamento atuou em duas frentes: “a primeira ao criar mecanismos mais rígidos para a comercialização de armas e o segundo ao criar campanhas nacionais para entrega voluntária de armas”, afirma o policial Uchôa.

Mesmo com essa lei, a responsabilidade pelo registro de armas de fogo da população civil continuou dividida em dois órgãos: o da Polícia Federal (SINARM), se a arma for de uso permitido, e do Comando do Exército, se for de uso restrito (SIGMA).

Para o armeiro licenciado pelo Exército e pela Polícia Federal, Emerson Pinheiro, a burocracia para a aquisição e posse de armas é grande tanto no SINARM quanto no SIGMA. “A lei do desarmamento te autoriza, te dá permissão, mas ela complica em todos os outros meios para você não ter uma arma”, comenta ele.

Mudanças no Estatuto

Desde a instauração do Estatuto do Desarmamento, vários decretos presidenciais e portarias ministeriais vêm alterando a sua regulamentação. “Todas as alterações feitas no Estatuto do Desarmamento foram no sentido de flexibilizar para tornar seu controle menos rígido. Ainda há uma pressão constante nesse sentido para que outras mudanças ocorram, principalmente diminuindo as exigências legais”, explica o policial federal Roberto Uchôa.

De acordo com ele, uma das medidas mais recentes, do início deste ano, e que gerou bastante impacto, foi a criação de um novo porte de armas por um ato normativo do Exército. Assim, o atirador esportivo passou a poder se deslocar ao clube de tiros para a prática do esporte com uma de suas armas carregada para defesa pessoal. Houve também uma extensão do prazo de validade do registro de arma de fogo: de três passou a ser renovado a cada cinco anos.

Para o Deputado Federal Rogério Peninha, autor de um projeto de lei que revoga o Estatuto do Desarmamento, “algumas mudanças ocorreram para corrigir falhas técnicas no texto, que abriam brecha para interpretações subjetivas. Mas a maior parte das alterações foi para ampliar o rol de classes autorizadas a portarem armas, seja em serviço, seja fora dele. Todas foram mudanças pequenas, simbólicas, de efeito paliativo”.

Propostas no Congresso

Para o deputado, mesmo com todas as mudanças no estatuto atual, a população continua sem seu direito básico à legítima defesa, com os meios adequados para isso. Sendo assim, há algumas propostas tramitando no Congresso Nacional, as quais têm como objetivo a flexibilização e/ou a revogação completa do Estatuto do Desarmamento.

Dentre elas há dois projetos de leis distintos e uma proposta de plebiscito. Um dos projetos de lei é o de número 6.717/2016, do deputado Afonso Hamm (PP), o qual propõe a inclusão de um parágrafo no Estatuto do Desarmamento que permite o porte de armas de fogo em áreas rurais. Ou seja, os trabalhadores rurais com mais de 21 anos teriam direito não só à posse de armas em sua residência e em seu local de trabalho, mas também em todo o seu deslocamento diário.

Outra proposta, do senador Wilder Morais (PP), defende a convocação de um plebiscito para a possível revogação ou alteração do Estatuto do Desarmamento. O Projeto de Decreto Legislativo 175/2017 propõe que a consulta à população seja feita com as eleições de 2018. No plebiscito, o legislativo buscaria compreender qual é a vontade do povo antes de agir.

Estatuto de Controle de Armas

Por fim, o principal projeto de lei, nº 3.722/12, em tramitação no Congresso é o do deputado federal Rogério Peninha (PMDB). Esse projeto prevê a revogação total e completa do Estatuto do Desarmamento e a criação de um novo arcabouço legal para o tema: o Estatuto de Controle de Armas de Fogo. Seu objetivo seria assegurar o porte em uma série de situações, muito mais abrangente e permissivo, e também ampliar as possibilidades de aquisição e de posse de arma de fogo. Caso seja aprovado, apenas investigados por crimes com dolo contra a vida não poderão adquirir armas.

Infográfico: Pedro Maziero (Ícones: Freepik, Flaticon e Senado Brasileiro)

Para o deputado autor do projeto, “hoje em dia o cidadão cumpre uma série de requisitos legais, apresenta certidão negativa de antecedentes em quatro esferas, paga as taxas, passa por avaliação psicológica, faz o curso de manuseio de armas e tiro, mas no final o processo emperra, porque o delegado da Polícia Federal tem poder para deferir ou não o pedido”. Sendo assim, a principal alteração que ele propôs é a desobrigação de comprovar efetiva necessidade para o registro da arma de fogo.

Além disso, o Estatuto de Controle de Armas de Fogo cria subdivisões de porte de armas, contendo as várias situações de uso. São previstas a licença funcional; a licença pessoal; a licença para o porte rural; e a licença de atirador e caçador. Essas licenças são válidas em todo o território nacional pelo prazo de 10 anos.

“A principal razão para eu apresentar o PL 3722 é o resultado do referendo feito em 2005, em que cerca de 64% dos brasileiros rejeitaram as políticas de desarmamento em vigor. De lá pra cá, no entanto, os governos simplesmente ignoraram o resultado das urnas e viraram as costas para a opinião popular”, ressalta o deputado.

O que dizem os números?

Na tentativa de melhor embasar uma opinião, seja em defesa de uma maior flexibilidade ou de uma maior rigidez na legislação sobre o controle de armas, podem pesar dois fatores: o primeiro é ideológico, e tem a ver com o papel que o Estado teria legitimidade para desempenhar em relação às liberdades individuais de cada cidadão – os defensores da ampliação do porte de armas são partidários, geralmente, do liberalismo, e consideram excessiva a interferência do governo nessa questão.

Grupos e ONGs como “Armas pela vida”, “Campanha do Armamento”, “Café com Pólvora” e “Movimento Viva Brasil” têm milhares de seguidores no Facebook, e, no geral, a argumentação pela defesa da flexibilização da Estatuto se baseia no respeito ao direito individual de o cidadão estar armado para poder se proteger em eventuais situações de risco.

Além do aspecto ideológico, alguns dados concretos também podem ser levados em consideração. É comum que sejam traçadas comparações entre diferentes países, com exemplos de onde um determinado tipo de política foi mais efetivo. Alguns posicionamentos amplamente difundidos e respaldados por dados, no entanto, mostram-se bastante frágeis quando analisados mais a fundo.

Levando em consideração a taxa de homicídio de diferentes países (dados do Escritório das Nações Unidas para Crime e Drogas) e a política de controle de armas desses mesmos países (informações da ONG australiana Gun Policy), pode-se tentar estabelecer alguma relação entre a política de controle de armas e a violência cotidiana.

A Áustria, segundo a Gun Policy, tem uma legislação permissiva, e apresenta uma taxa de homicídios de 0,5 para cada 100 mil pessoas. Já no Panamá, que também apresenta uma legislação permissiva, a taxa sobe para 11,3/100mil. Japão e El Salvador apresentam legislações mais restritivas; o primeiro tem um dos menores índices de homicídio do mundo, com 0,3/100mil. Já El Salvador tem um dos maiores, com 107,4/100mil.

Esses números evidenciam que é difícil estabelecer uma relação direta entre o controle de armas e a segurança pública sem uma análise mais profunda; há inúmeras outras variáveis que pesam nos indicadores de violência, e os exemplos de países com realidades muito distintas derrubam as máximas de que possibilitar que a população se arme representa, necessariamente, um incremento ou recrudescimento na violência.

Segundo Dijaci David de Oliveira, doutor em Sociologia pela UnB, “temos que compreender como funciona a distribuição da riqueza, do acesso aos benefícios sociais, acesso à justiça e como se deu historicamente o processo de sociabilidade em cada país”.

Um estudo frequentemente mencionado nessa discussão, utilizado para respaldar ambos os lados, é a edição de 2016 do Mapa da Violência, divulgado pela Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (Flacso). Levando em consideração a taxa de homicídios por arma de fogo (por 100 mil habitantes), de 1980 a 2014, verifica-se que, apesar do Estatuto do Desarmamento entrar em vigor em dezembro de 2003, essa taxa, após uma queda inicial, manteve-se crescente, ano após ano.

No entanto, também é possível observar que o ritmo de crescimento da taxa arrefeceu: de 1980 a 2003, a média era de 6,2% ao ano; de 2004 a 2014, foi de 0,3%.

Fonte: Mapa da Violência 2016 | 2014*: dados preliminares

Outra análise importante é que esses indicadores nacionais acabam omitindo contradições nacionais internas. Analisando a década de 2004 a 2014, muitos estados brasileiros, na verdade, apresentaram elevados índices de crescimento na taxa de homicídios por armas de fogo: Rio Grande do Norte e Maranhão mais que quadruplicaram seus números. Já São Paulo e Rio de Janeiro conseguiram reduzir esse indicativo à metade no mesmo período, o que contribuiu para a baixa nos índices nacionais.

Para além do homicídio

Jovem se manifesta na “March for our lives”, em Nova Iorque, pedindo um maior controle de armas nos EUA (Foto: Mathias Wasik/Flickr)

Segundo um estudo feito pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), de 2011 a 2012, 83,03% dos homicídios com causa provável em São Paulo foram cometidos devido a motivos “fúteis” ou por impulso. Enquadram-se nessa categoria as mortes por vingança, desavenças, crimes passionais, em situação de embriaguez, entre outros. No relatório que divulgou a pesquisa, o CNMP pontuou que a “banalização da violência no país é extremamente preocupante”.

Dijaci Oliveira acredita que “práticas culturais específicas, saberes populares como ‘não levar desaforo para casa’, por exemplo, poderiam interferir para o aumento das estatísticas [de homicídio].” A população, em geral, costuma se preocupar com o armamento de potenciais criminosos, mas a questão é mais ampla.

A psicóloga Sandra Marquezi é umas das três profissionais credenciadas em Bauru para fazer a avaliação psicológica dos candidatos ao uso de arma de fogo. Há uma lista de indicadores restritivos – ou não – que são levados em consideração para verificar se o candidato está apto. O intuito da avaliação é justamente evitar que pessoas com características comportamentais potencialmente problemáticas obtenham a permissão. Sandra conta que o índice de reprovação é de cerca de 5%.

Segundo ela,  “as pessoas que vêm já vêm com uma consciência muito ampla para o uso de arma de fogo”. São, geralmente, policiais da reserva, trabalhadores cujas profissões trazem risco, como agentes penitenciários, funcionários da carreira jurídica e também colecionadores e moradores da zona rural. Isso porque, da forma como está estruturado hoje, o Estatuto do Desarmamento requer uma justificativa válida para concessão do direito ao porte. Os partidários da flexibilização defendem o fim da necessidade dessa justificativa.

Já Dijaci Oliveira defende que, se há de ser feita alguma mudança, é restringir ainda mais o acesso às armas. “Algumas pesquisas realizadas nos EUA demonstraram que residências que possuíam armas e que foram assaltadas, apenas 2% tiveram a oportunidade de utilizar a arma como defesa. Portanto, como imaginar que uma política de acesso a armas que falha em 98% dos casos?”, questiona.

Além dos crimes por motivos fúteis, o sociólogo acredita que a maior facilidade na posse de armas pode ter consequência em questões como o suicídio. “O maior controle de armas na Suíça e na Áustria, por exemplo, contribuiu para a redução dos homicídios, mas também para a redução dos suicídios”, pontua.

O posicionamento dos presidenciáveis

Com a iminência das eleições de outubro e a presença de pré-candidatos como Jair Bolsonaro, que faz da flexibilização da legislação sobre o uso de armas uma de suas principais bandeiras de campanha, a questão volta a ser pautada nas sabatinas e entrevistas. As opiniões se dividem: muitos candidatos defendem a manutenção do Estatuto do Desarmamento; outros, sua substituição por outro mais permissivo.


Essa divisão espelha a sociedade brasileira: em novembro de 2017, segundo pesquisa do Datafolha, 56% da população era contrária à ampliação do porte de arma; 42% eram a favor. Esse fracionamento da opinião pública pode ser explicado, em parte, pela falta de estudos mais aprofundados sobre o tema, que tragam indicadores mais certeiros da influência direta do uso de armas por civis nos índices de violência no país. Por ora, grande parte dos posicionamentos ainda se justificam no campo ideológico e simbólico.

Redação

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