Como a guerra civil na Síria está afetando a memória e a cultura de sua população
Por Marina Debrino e Sofia Hermoso
Em 24 de março de 2017, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução 2347, relativa à preservação do patrimônio cultural. Foram décadas de ideias e acordos para que, em 2017, a destruição desses patrimônios fosse considerada crime de guerra. “Eles querem apagar nossa história de evolução e de ciência. Nossa terra é a terra dos profetas. O primeiro alfabeto da história foi encontrado em meu país, o berço da civilização”, afirma Ali Malkon, 23, refugiado sírio que mora em São Paulo.
Desde o final do século XIX, já existiam projetos que visavam proteger monumentos e objetos históricos. No entanto, foi apenas após a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945), que a Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), tomou providências mais diretas no sentido de preservação e proteção cultural.
“Depois da grande destruição de monumentos pela 2ª Guerra Mundial, a UNESCO iniciou esforços de conscientização para a importância da preservação de objetos, arquitetura, monumentos e sítios de valor cultural, para o que contou com a participação do Conselho Internacional de Museus (ICOM), que vem se preocupando, desde então, com a valorização do patrimônio cultural em caso de conflitos armados e mesmo em tempos de paz”, explica a Professora Helena Uzeda, atual coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio da UNIRIO.
Apesar disso, foi necessário o estopim da Guerra Civil na Síria, que teve início em 2011, para que de fato os sítios de patrimônios mundiais nessa região tivessem a atenção merecida, no que diz respeito à sua proteção. Em 2015, foi aprovada a Resolução 2199 do Conselho de Segurança da ONU, que proíbe o comércio de bens culturais do Iraque e da Síria.
Em 2017, em entrevista para o próprio site da UNESCO, a diretora-geral da Organização, Irina Bokova, disse acreditar que “um novo cenário cultural está sendo construído, e uma nova consciência mundial está surgindo, com o nascimento de uma nova abordagem para proteger a cultura para a paz e a segurança”. Logo após, foi aprovada a resolução mais nova e atualizada sobre o assunto, a Resolução 2347.
Memória e identidade de um povo
Ainda que medidas sejam tomadas e resoluções aprovadas para a proteção e preservação de sítios arqueológicos, a memória e a identidade do povo árabe sofreu – e ainda sofre – um impacto muito forte com a guerra civil. A devastação do Oriente Médio, além de ferir o passado desse povo, fere também seu futuro.
Os jihadistas do Estado Islâmico, assim como outras forças envolvidas na guerra civil, deixaram em ruínas Aleppo, na Síria, uma das cidades mais antigas do mundo.
Cidades históricas, museus, mesquitas, bibliotecas. Tudo o que faz parte ou resguarda o passado dos povos árabes, se tornou alvo dos militantes do ISIS (Estado Islâmico do Iraque e do Levante). A professora Helena Uzeda acredita que o principal motivos para essas ações seja que “destruir patrimônios representa apagar não apenas bens materiais, mas as identidades, os saberes e as memórias afetivas do adversário, o que talvez signifique a arma mais letal e efetiva para enfraquecer e subjugar o ‘inimigo’”.
A extinção da cultura do outro sempre esteve presente na história das guerras. Seja durante a Primeira Guerra do Ópio, na China, em que o Antigo Palácio de Verão foi destruído, ou durante o Holocausto, em que os nazistas buscaram destruir cemitérios e sinagogas, a fim de eliminar traços culturais judaicos.
A região do Oriente Médio sempre passou por uma série de ataques e invasões. Sendo considerado um dos berços da humanidade, onde encontrava-se a antiga Mesopotâmia, desde os tempos antigos (aproximadamente 3000 a. C.) os povos que habitam essas terras passaram por diversos conflitos. Os principais motivos envolvidos eram as condições extremamente férteis para a vida que a região apresentava, por estar localizada entre os rios Tigre e Eufrates. Além da primeira civilização conhecida ter surgido nessa região, os primeiros registros de escrita e outras descobertas importantes da humanidade – como a invenção da roda – são datados de lá.
O que pode ser considerado um agravante no caso do Iraque e da Síria, é justamente o fato de estarem localizados em um dos berços da civilização. Assim, o prejuízo cultural não está ligado à apenas um povo específico, mas também à história geral do desenvolvimento da humanidade.
Alguns monumentos históricos da Síria foram capturados pelos olhos do fotógrafo americano de arquitetura, Peter Aaron. Em 2009, ele foi até lá passar as férias com a família e levou sua câmera para registrar diversos locais e momentos. Aaron conta que “quando a guerra civil cresceu, nós nos sentimos mal em relação ao sofrimento da população que encontramos e dos monumentos perdidos. Não temos contato com ninguém que conhecemos, mas gostamos muito de todos. A maioria do que eu fotografei foi prejudicado ou destruído e é doloroso pensar sobre isso”.
O trabalho do fotógrafo está exposto na Bienal de Arquitetura de Veneza (26 de maio até 25 de novembro de 2018). O peso das imagens é grande, por serem alguns dos registros mais atuais do passado recente da Síria.
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A Guerra Civil na Síria
“Nos dias de sol, o céu era negro, a folhagem branca e os edifícios altamente detalhados e variados em tom” conta Peter Aaron sobre as paisagens fotografadas em preto e branco da Síria que visitou, um país ainda intocado pela guerra. “Isto é o que fez as fotografias tão monumentais em grande estilo. Combinado com a imponente beleza e importância do objeto, sente-se o impacto do que foi perdido” lamenta Aaron.
Já se passaram 7 anos desde o início do conflito sírio e ainda não vemos uma perspectiva de seu fim. “As pessoas eram acolhedoras e curiosas sobre nós. Eles eram bem educados e pareciam se dar bem culturalmente”, afirma o fotógrafo Peter Aaron.
A Síria é governada pela mesma família desde 1970. Hafez Assad comandou o país por trinta anos até sua morte, deixando o cargo para seu filho Bashar Al-Assad em 2000. Com a morte de Hafez Assad, não houve eleições democráticas e sim um referendo em que seu filho era o único candidato. Quando tomou posse, Bashar Al-Assad prometia um governo diferente que incluiria reformas e melhorias assim como uma Síria mais democrática.
Em 2011, uma série de protestos por melhores condições de vida e pelo fim dos regimes ditatoriais tomou o Oriente Médio e o Norte da África. Outras questões agravaram essa situação: as elevadas taxas de desemprego e o alto custo dos alimentos. O episódio ficou conhecido como Primavera Árabe – em uma referência à Primavera dos Povos (1889) e teve como resultado a queda de vários regimes ditatoriais como na Tunísia, no Egito e na Líbia. Na Síria, os manifestantes agruparam-se em praças para manifestações pacíficas contra o governo do país. Em março daquele mesmo ano o conflito tornou-se violento quando Assad enviou tropas militares para dispersar as manifestações, causando mortes e ferindo a população.
A partir deste evento o país se dividiu em diferentes grupos. Em um primeiro momento o governo sírio entrou em conflito com os manifestantes, geralmente chamados de “rebeldes”. Aliado a este grupo estão alguns soldados que tomaram o lado da população e foram contrários ao governo. A frente mais representativa dos rebeldes se chama Exército Livre da Síria. Ambos os lados possuem aliados que enviam suprimentos que ajudam na manutenção do conflito: para o governo sírio os principais são a Rússia e o Irã, e, para os rebeldes, os Estados Unidos, Europa, Turquia e Arábia Saudita. Ainda neste contexto estão envolvidos grupos extremistas como o autoproclamado Estado Islâmico, que pretende instaurar um governo com suas ideologias e, para isso, derrubar o governo sírio assim como destruir a cultura deste povo e a Frente al-Nusra, um braço da Al-Qaeda. Além destes, as milícias curdas reivindicam um Estado próprio em parte dos territórios iraquiano, iraniano, sírio, turco e armênio, participando do conflito no norte do país em defesa de seus territórios já conquistados.
A Guerra da Síria não possui uma única frente. O conflito já não se trata mais apenas de derrubar o governo de Assad, como envolve diferentes interesses em um mesmo território. Cada um desses segmentos ocupa uma região do país e desenvolvem conflitos entre si.
A questão dos refugiados
“A guerra quebrou a sociedade” conta Ali Malkon, que vive em São Paulo há 8 meses desde que conseguiu um visto no Líbano para vir para o Brasil. A situação dele soma-se a de 5,6 milhões de sírios que foram forçados a abandonar o país desde o início da Guerra Civil em 2011. Os países mais procurados por eles são a Turquia, o Líbano e a Jordânia, segundo a Agência das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).
O país reconhece como refugiado uma pessoa que teme perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas e por isso não está em seu país de origem. Assim como também o indivíduo que sofreu severas violações dos direitos humanos e foi obrigado a abandonar seu país. É o que diz o Estatuto do Refugiado, uma lei de 1997 que institui normas aos solicitantes de refúgio no Brasil. Além disso, o Estatuto do Refugiado criou o CONARE, que é presidido pelo Ministério da Justiça e responsável por analisar os pedidos de refúgio, orientar as condições de proteção, assim como é responsável pela assistência jurídica aos refugiados no Brasil.
O Brasil registra 10.145 refugiados reconhecidos, 39% desses são de nacionalidade síria, de acordo com Comitê Nacional para Refugiados (CONARE). Os estados onde mais moram refugiados são São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná respectivamente. Mas ao chegar no Brasil, os refugiados enfrentam outros desafios como a dificuldade de integração social e a xenofobia. Nos anos de 2014 e 2015 as denúncias de xenofobia na Secretaria Especial de Direitos Humanos saltaram de 45 para 333 registros, tendo os refugiados como principais alvos desse preconceito. Não há registro de xenófobos punidos.
(Infográfico: Sofia Hermoso)
Em relação ao acolhimento de refugiados no Brasil, a professora Helena Uzeda defende que o imigrante não pode ser entendido como “estrangeiro inimigo”. “Não podemos esquecer que o Brasil foi povoado por colonizadores, imigrantes e refugiados. Quando falamos de ‘brasileiros’, incluímo-nos todos entre eles em razão de nossa descendência” afirma Uzeda. A professora explica que todas as nações do mundo formaram-se e desenvolveram-se com a participação direta de imigrantes. “Foram as imigrações que proporcionaram as trocas culturais que desenvolveram as diferentes línguas e culturas, dando forma ao que somos hoje, tanto no âmbito local quanto internacionalmente”.
A Guerra Civil rompeu os laços identitários com seu território e fez com que a população se dispersasse por todos os países. Além da grande tragédia humanitária e de milhões de mortes, a perda de relações com o passado e a incerteza de um futuro é de enorme impacto para o povo sírio.
Foto Capa: Peter Aaron