Apesar de assegurado pela constituição, serviços alternativos não são colocados em prática
Em 2017, quase dois milhões de jovens rapazes brasileiros são esperados para o alistamento militar, algo que já está quase que culturalmente enraizado na vida dos adolescentes do sexo masculino, com direito à comercial de televisão apelativo ao espírito aventureiro do jovem. O alistamento obrigatório foi implantado em 1906, durante a primeira república, para todo brasileiro nato, do sexo masculino no ano em que completa 18 anos de idade. Mas ela só entrou em vigor com a lei do Serviço Militar – No 4.375, criada em 17 de agosto de 1964, apenas quatro meses depois de instaurado o Golpe Militar.
O período para o alistamento compreende todo o primeiro semestre do ano, em que é preciso ir à Junta Militar da sua cidade, munido de certidão de nascimento, duas fotos 3×4 e um comprovante de residência. De acordo com o Exercito Militar Brasileiro, um alistamento militar tem aproximadamente, um milhão e oitocentos mil conscritos. Desses, apenas 100 mil incorporam, anualmente, nas Forças Armadas (FA).
Rodrigo Cordeiro está sentado ao lado do pai e mexendo a perna nervosamente. Em suas mãos estão seus documentos e sua senha para ser atendido na Junta Militar de Bauru. O estudante do terceiro ano do ensino médio pretende seguir o curso de Engenharia Civil, e quer passar longe de uma carreira militar, e expõe isso com a sua resposta quando perguntado se quer servir no Tiro de Guerra da cidade. Seu pai, seu Luis, serviu em sua época e diz ter sido “uma ótima experiência”, e que o ajudou “a virar homem de verdade, assumir responsabilidades”. Ao contrário do seu filho, Luis quis entrar e sentir um pouco da vida militar. Rafael só vai saber do seu futuro durante o segundo semestre deste ano, nas etapas de seleção dos atiradores. Elas ocorrem em várias partes presenciais no próprio Tiro de Guerra, contendo uma entrevista com os instrutores daquela sede, uma prova psicotécnica e exames médicos em que é possível ser dispensado, caso o candidato tenha alguma condição que prejudique sua saúde.
O ex-atirador Lucas Hanada se lembra das suas experiências durante a seleção e no período serviço militar: “De verdade, eu não queria servir e falei isso desde o começo, mas no final acabei sendo selecionado de qualquer jeito”. Ele conta que naquele ano de 2012, ele estava ainda cursando Direito e trabalhava em dois estágios, no período da manhã e da tarde: “Eu perdia uma hora do meu primeiro estágio por causa do horário que eu saia do Tiro de Guerra, pra só voltar pra casa depois da aula. Isso quando eu não tinha plantão, que então eu perdia o dia inteiro mesmo”. Hoje formado em Direito e trabalhando como autônomo, periodicamente prestando serviço para outras firmas, o ex-atirador Hanada concluí: “Foi legal pelas amizades, e por conhecer pessoas que têm vidas totalmente diferentes da sua, com outras rotinas, mas obviamente atrapalhou muito a minha vida profissional e acadêmica na época. Não é legal você ser forçado a fazer algo que você não quer”.
Além do Brasil, apenas Israel conta com o alistamento militar compulsório, porém abrangendo os dois sexos, com duração de dois anos para o sexo feminino e três anos para os soldados do sexo masculino, sendo que estes depois terão que se juntar ao exército todo ano por algumas semanas até serem completados 40 anos de idade, para a força militar de reserva. As mulheres não são obrigadas a se juntarem à reserva. Outro país que mantinha o serviço militar obrigatório até o ano de 2004 era Portugal, porém, isso foi alterado para o acompanhamento de um dia de trabalho das Forças Armadas para ambos os sexos, conhecido como “Dia da Defesa Nacional”. A não participação neste dia pode levar ao pagamento de multa variando entre 250 e 1250 euros. Nos Estados Unidos, o alistamento obrigatório foi encerrado em 1973, às vésperas do fim da Guerra do Vietnã.
Atualmente, apenas a Suécia reverteu sua decisão com relação ao alistamento militar obrigatório. Abolido em 2010 no país, o Serviço Militar Obrigatório será reativado no ano que vem. A justificativa é de que conflitos se intensificaram próximos a região e que o país não possui número suficiente de soldados. De acordo com o site da Exame a decisão irá obrigar homens e mulher nascidos em 1999 ou depois a se alistarem.
Mas ao contrário dos exércitos citados, o Brasil não é famoso por suas participações em conflitos armados, salvo algumas campanhas em países vizinhos (a última foi em 1991, contra a ocupação das FARC em território colombiano). A última guerra em que o país esteve presente foi a Segunda Guerra Mundial, onde enviou um pequeno contingente de soldados, nenhum de serviço militar obrigatório. A política que o país vem adotando nos últimos cem anos, é a de se manter neutra ou com participação mínima durante conflitos externos.
Assim, o serviço militar obrigatório acaba não treinando adequadamente seu exército de reserva para o combate, como atesta o ex-atirador Gustavo Oliveira: “Na minha opinião, nem de longe o Tiro de Guerra capacita os jovens a situações de guerra e combate. Nós temos uma instrução militar bem superficial, um aprendizado bem básico sobre o que é o exército, do que se trata, o que faz, como se porta e etc. Talvez no papel ainda seja esse objetivo, treinar cidadãos pra uma possível guerra, mas na prática esse treinamento não acontece”. Gustavo queria servir às Forças Armadas na época, mas diz que diferente dele, algumas pessoas não cooperavam durante o período “Quem não escolheu servir, fez com má vontade. Claro que alguns no meio do caminho acabam gostando e se engajando com o ano militar, mas para a grande maioria, é uma espécie de brincadeira”.
Uma forma de estimular a participação dos atiradores selecionados para servir seria o pagamento de um salário, garantido pela Constituição Federal desde 2008, quando foi votada pelo Supremo Tribunal Federal, desde que com um valor inferior ao do salário mínimo vigente. Porém, essa medida é facultativa e não é colocada em prática na maioria dos quartéis, já que o soldado está cumprindo um dever cívico imposto e não uma atividade profissional.
Justificativa
Procurado para comentar sobre a questão do serviço militar obrigatório, o Exército Militar Brasileiro (EMB) ressaltou, através de sua assessoria, que segue o que está previsto na constituição. E que a obrigatoriedade do serviço é importante pois possibilita as forças armadas a manter um efetivo “condizente com as necessidades da nação“ que é grande em extensão territorial e em poder de dissuasão. Além disso, o Exército Militar Brasileiro informou que o custo para preparar uma reserva mobilizável é cinco vezes menor do que seria para manter um efetivo profissional.
De acordo com a comunicação, “a atual sistemática de recrutamento é uma necessidade para o Brasil, por ser operacionalmente compatível, economicamente viável e socialmente vantajosa para o País, especialmente, em tempos de economia de recursos”.
Questão de direito e dever
Para o EMB, “O Serviço Militar Obrigatório deve funcionar como espaço republicano, no qual todos os jovens, independente de raça, credo religioso, ou classes sociais possam participar da defesa da sua pátria”. Ou seja o Serviço Militar Obrigatório, deveria servir como um ato de cidadania. Mas na prática, os recrutas, tratados com “conscritos” são impedidos de exercer o direito de voto, de acordo com o Art. 14, Art. 14, § 2º, da Constituição Federal.
Embora devesse funcionar como um espaço republicano e positivo, muitos dos jovens se vêem obrigados a prestar o alistamento no exército contra a sua vontade – já que é um dever previsto constitucionalmente no artigo 143 e regulamentado pela Lei n. 4375/64. Como todas as leis vigentes, ela não pode ser descumprida. Caso seja, o transgressor terá que arcar com as consequências legais de seu ato, podendo sofrer punições.
Acontece que a constituição federal também prevê direitos individuais que abrangem diferentes tipos de pessoas e situações. Os direitos e garantias individuais constam no Artigo 5 da constituição e são considerados Cláusula Pétrea, ou seja, não podem ser alterados nem mesmo por Proposta de Emenda à Constituição (PEC), sendo um dos deveres máximos do país.
Analisando a constituição, podemos ver que alguns desses direitos individuais acabam entrando em conflito com o que a própria constituição estabelece como dever no caso do alistamento militar obrigatório. Nesse caso, tratando-se especificamente do serviço militar obrigatório em tempos de paz. O Artigo 5, VI determina que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” e o parágrafo VIII, da constituição estabelece que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”. Ainda no artigo 5, no parágrafo XV, estabelece-se que “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.
Os três parágrafos do artigo entram em conflito com algumas das obrigações do serviço militar obrigatório, já que algumas religiões possuem convicções que podem impedir o cumprimento desse dever. É o caso dos adventistas de sétimo dia, que precisam se retirar do convívio em um dia da semana, impedindo que cumpram suas funções nesse dia. Além disso, no caso do parágrafo XV, a locomoção só é permitida com autorização prévia do exército. E o jovem pode ter seu direito de sair do país negado, caso não esteja em conformidade com seus deveres militares.
Entramos em contato com a Doutora em Direito Constitucional Jamile Gonçalves Calissi, que explicou que no caso artigo 5, parágrafo VIII existe o que é chamado de Escusa de Consciência “É uma justificativa que isenta a pessoa de determinada obrigação legal. Tal escusa é garantida pela Constituição Federal no Artigo 5º, incisos VI e VIII.” É o caso do fator de liberdade de consciência, crença religiosa, convicção filosófica ou política. O texto constitucional garante que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”. DDC Jamile desenvolve que nesse caso é previsto uma prestação alternativa, fixada na lei, que está relacionada aos âmbitos militares. “Nesse sentido, a própria Constituição prevê exceções aos deveres por ela impostos. Testemunhas de Jeová, por exemplo, que são contra os serviços militares, podem deixar de servir ao exército aos 18 anos, e prestar algum serviço público para poder compensar”.
No caso das divergências entre os direitos DDC, Jamile esclarece que esse fenômeno atende por choque de direitos, e geralmente é resolvido pela própria constituição federal. Quando isso não ocorre, quem deve resolver o impasse é o Poder Judiciário, como é o caso da escusa de consciência.
Em 1991, foi sancionada a Lei Federal 8.239, para regulamentar o mandado constitucional. Em seu parágrafo terceiro, a legislação define serviço alternativo como “o exercício de atividades de caráter administrativo, assistencial, filantrópico ou mesmo produtivo”, prestados em “organizações militares da ativa e em órgãos de formação de reservas das Forças Armadas”.
Para a Doutora, na teoria o alistamento não fere direitos, “Mas dependendo da consciência, crença, religião e cultura de cada um, na prática pode ferir.” Concluí.
E na prática a “Escusa de Consciência” não funciona tão bem. Não existe serviço alternativo oferecido pelo exercito, e quem tenta alegar à escusa (ou imperativo) de consciência, acaba enfrentando uma longa batalha judicial ou tem seus direitos negados enquanto aguarda a decisão da justiça.
É o caso de um dos membros do grupo “Pelo FIM do Alistamento / Serviço Militar Obrigatório” no facebook. O grupo é voltado a discussão sobre a obrigatoriedade do serviço militar, e conta com mais de 700 membros. Em diversos posts publicados no grupo, W.R., conta que se declarou pacifista (convicção filosófica) e por isso se negou a ter que fazer o Juramento a Bandeira e também a jurar sua vida à nação. Esse juramento é indispensável para conseguir o Certificado de Dispensa de Incorporação.
W.R explica que a junta militar em que fez o alistamento, desconhecia a lei do imperativo de consciência e que não conseguiram resolver o problema. Com isso, o jovem teve seus direitos políticos suspensos por tempo indeterminado. Ele levou o caso a justiça e espera o resultado do processo. O caso segue desde 2015, ainda sem solução.
Nesse aspecto, caberia ao cidadão alegar a violação de direito e abrir um processo para que o judiciário julgasse o caso e desse um parecer. O mesmo poderia acontecer nos outros casos em que os direitos e deveres entram em conflito, como a violação do direito de ir e vir, mas tudo dependeria do caso apresentado e do andamento do processo, além de julgar cada pessoa individualmente.
De acordo com a Bacharel em Direito Marcela Gomes, se um caso tiver um precedente, ele pode abrir caminho para que casos semelhantes consigam ser solucionados. Isso ocorreria se o caso chegasse até o Supremo Tribunal Federal.
A dificuldade em encontrar representantes
A complexidade em lidar legalmente com a questão do alistamento militar obrigatório, faz com que grupos opositores tenham sua maior esperança depositada na possível aprovação de PECs (Proposta de Emenda à Constituição), que modifiquem a atual legislação em relação ao alistamento. Atualmente, a PEC 162/2007, de autoria do ex deputado, Silvinho Peccioli – DEM/SP, tramita entre a câmara dos deputados, sem grande possibilidade de futuro. A PEC prevê que o serviço militar torne-se facultativo, e que terminando o serviço militar inicial, os militares possam – através de processo seletivo – ingressar em definitivo as forças armadas.
A PEC 162 foi arquivada e desarquivada várias vezes ao longo de sua criação e no momento aguarda a disponibilidade da criação de uma Comissão Temporária pela mesa.
O grupo do facebook, “Pelo FIM do Alistamento / Serviço Militar Obrigatório” citado anteriormente, também busca através de uma petição on-line pelo site Avaaz, mobilizar as pessoas a e posicionarem contra o Serviço Militar Obrigatório. A petição conta com mais de 5 mil assinaturas, mas ainda está muito longe de sua meta de 5 milhões. O movimento também busca dar visibilidade a causa e aos debates, incentivando as pessoas a não ficarem em silêncio e se mobilizando para fazer com que a PEC 162 volte a entrar em pauta no Congresso. E quem sabe assim, conseguirem fazer com que seus direitos sejam seguidos.