Canto livre, temperamento dócil e sociável, mas valente. Característico por sua cor amarela e presente em todo território brasileiro, é símbolo até da seleção de futebol nacional. Por causa de seu canto forte e bonito, é também alvo fácil para ser mantido em cativeiro. Mas é contra a natureza do canário-da-terra, ou canarinho, viver aprisionado numa gaiola. Assim também é Tereza.
O seu canto é o filé, bordado tipicamente alagoano, e o amarelo também é sua cor, como mostram as paredes e a decoração da sua loja de artesanatos localizada no bairro do Pontal da Barra, em Maceió. “Tem que ter o amarelo, senão eu endoido”, diz à outra artesã que entrega suas encomendas.
Mais velha de cinco irmãos, mantém até hoje o ofício de bordar, iniciado na infância ao lado das primas e irmãs e ensinado por sua avó e tias. A mãe também é filezeira, mas à época não tinha tempo de ensiná-la por causa da necessidade de dedicação ao trabalho como professora. Hoje ela se dedica apenas ao filé, com uma loja colada à de Tereza, que administra com a ajuda da filha mais nova. Com o falecimento muito cedo do pai, Tereza passou a ajudar a mãe desde pequena e o faz até hoje quando necessário.
É possível ver nos seus olhos a paixão e o orgulho pelo que faz. Diariamente se veste com o filé para trabalhar, mas o bordado está presente em muito mais do que apenas o trabalho. Ela conta que já fez até biquíni de filé, mas de longe a maior prova de amor pelo bordado foi seu vestido de noiva, feito inteiramente do bordado típico por ela e um amigo.
A peça demorou oito meses para ficar pronta e foi feita com um tipo de linha mais fina que a usual, para não pesar tanto, tornando o processo ainda mais trabalhoso, mas o resultado final ocorreu conforme a artesã concebeu. “Ninguém nunca quis o vestido de filé, todo mundo se casa de renascença (outro tipo de renda, considerada mais nobre), mas eu pensei ‘eu vou fazer meu vestido de filé’. Combinei com o Marquinhos e a gente fez juntos, bordamos depois e ficou do jeito que eu sonhei”.
No entanto, ela diz que não repetiria a façanha para mais nenhuma pessoa, porque teria o trabalho financeiramente desvalorizado. “Se eu passar oito ou dez meses fazendo o vestido dos seus sonhos e pedir R$3 ou R$ mil reais vão dizer que eu tô roubando, mas se fosse de renascença ou outra, você paga”.
Mas, para Tereza, quem mais desvaloriza o trabalho das filezeiras é o próprio governo, com a falta de incentivo e suporte. A compra da matéria-prima é um exemplo disso. As artesãs compram em grande quantidade os novelos de linha que usam no bordado, mas não têm nenhuma condição diferenciada ou desconto, o que para ela seria o ideal, já que muitas só ganham o dinheiro para comprar mais matéria-prima quando conseguem vender as peças já produzidas.
A aposentadoria da categoria também é um motivo de sua reclamação. “A artesã não tem aposentadoria. Você nasceu e se criou fazendo isso aqui e tem que pagar igual todo mundo pra poder se aposentar. Fora que a gente sente dor nas mãos, nas pernas, de ficar sentada com o tear, nos dedos, unhas, dói tudo”, explica. Com a aposentadoria por idade mínima, e não por tempo de contribuição, a velhice é sempre um capítulo muito incerto da vida de um artesão.
Para compensar a falta de apoio governamental, as artesãs da comunidade se organizam de maneira lucrativa para todas. Como numa linha de produção, Tereza prefere dividir o processo entre várias mulheres. De uma, compra a rede que é o suporte do trabalho, que depois de bordado é lavado e engomado por outra e cortado por uma última.
O processo inteiro pode ser feito por uma única artesã, mas ela encontra na divisão uma forma de ajudar e estimular as companheiras. “O filé é uma máquina de emprego” e cada uma faz o que mais gosta.
Além de bordar suas peças, ela compra e encomenda também as peças prontas de outras filezeiras do bairro, para ajudar as que não têm loja própria e não conseguem vender tudo que produzem. Mas para isso é exigente. Gosta de trabalho bem-feito e combina os pontos e modelos das peças antes de encomendar, para ter tudo do seu gosto. Do contrário, não consegue vender.
É também uma grande incentivadora do bordado às gerações mais novas, estimulando-as a aprenderem a técnica para terem uma renda complementar e continuarem no ofício mesmo quando começam a trabalhar em outros empregos. Algumas vezes, complementa o dinheiro que paga pelas peças das artesãs iniciantes com material escolar para que possam estudar.
“Aqui a gente ajuda, ensina a fazer ponto, é uma troca, tudo na vida tem que ser assim. Não adianta eu dar o meu saber a você se você não sabe trocar, você não pode só crescer, tem que dividir. Tem meninas que já são mães. As mães delas costuraram comigo, depois elas e agora as filhas delas já vêm pra cá fazer”. Mas muitas já não têm o interesse em aprender a tradição do bairro, o que entristece a bordadeira. “Essa é a nossa arte. Uma arte não pode parar, porque se parar ela não cresce, você esquece”.
Nascida e criada no Pontal, Tereza é apaixonada pelo bairro. E ela não é a única. O senso de comunidade e solidariedade no local é nítido. Antes da entrevista ela conversava com um rapaz, vendedor de produtos de limpeza, sobre uma tragédia ocorrida no dia anterior. Uma das bordadeiras do bairro havia perdido tudo em um incêndio e eles discutiam a maneira como a população iria se mobilizar para ajudar a vítima. Além da casa, ela pensava também em arrecadar dinheiro para comprar o material necessário para a bordadeira refazer seu estoque de peças.
Pouco tempo depois, um outro episódio demonstrou novamente a camaradagem da filezeira. Um rapaz chegou à loja pedindo uma rede para começar uma peça. Tereza perguntou a cor que ele preferia e prontamente entregou o aviamento. Sentando-se novamente para continuar a entrevista, justificou: “tem que ajudar, quando eu precisei me ajudaram. Quando ele fizer o trabalho, me devolve”.
A maioria dos moradores da comunidade de pescadores e bordadeiras nasceu lá mesmo e até hoje sobrevivem da pesca e do filé. Um ou outro comerciante de fora se instalou no bairro, mas a resistência do lugar se deve ao bordado e às mulheres que o fazem. “O Pontal tá aqui porque a gente luta, viu? As mulheres daqui são todas guerreiras, correm, lutam, fazem, chamam, inventam modelo e cada um faz do seu jeito. Se você for em três lojas aqui, cada uma é diferente, cada uma tem sua criação, é muito bonito. Eu tenho muito orgulho do meu bairro, eu adoro o Pontal, não quero sair daqui nunca”, afirma envaidecida.
E não foram poucas as oportunidades que quiseram tirar Tereza do seu berço. A galega de olhos claros era constantemente convidada para ser modelo durante a juventude, mas nunca aceitou. “Desde pequena eu tive essa cabeça, nunca quis sair daqui. Todo mundo queria me levar”.
Ela relembra uma ocasião em que comentou com a mãe sobre um visitante, que em meio às costuras, a fotografou. Um tempo depois, ele voltou com as fotos em um envelope para tentar convencê-la de que era fotogênica e poderia ganhar muito dinheiro, mas Tereza recusou. “Eu gosto de ser livre, depois eu posso ser rica, mas primeiro eu tenho que ser livre e aqui eu me sinto livre”. Meses depois o mesmo homem a convidou para posar para uma revista, mas com o filé. Dessa vez ela aceitou.
A única pessoa que conseguiu tirar Tereza do Pontal foi seu primeiro marido. Casada aos 19 anos, ela conta que desde pequena sempre sonhou em ter uma família, trabalhar e cuidar dos filhos, sem maiores ambições. Mas o marido decidiu ir para o Rio de Janeiro e não sobrou outra opção para a artesã a não ser acompanhá-lo, “porque é assim que a gente aprende, né”.
Mas fora de seu lugar ela se sentia presa. Durante os seis anos que morou lá sentia-se como em uma gaiola. O marido não queria que ela trabalhasse, o que aumentava mais ainda sua angústia. Sua arte foi seu refúgio. Começou a comercializar, pelo correio, os filés que produzia sob encomenda e em pequena escala. Por fim, o casamento não deu certo e quão reconfortante foi para a bordadeira voar livre de volta ao seu lugar, dessa vez acompanhada dos filhos.
Apesar do alívio de estar de volta, a artesã se viu perdida, sem saber o que fazer para criar os filhos. Foi então que decidiu exercer sua profissão de formação, o magistério. Assim como sua mãe, Tereza foi professora, só que de reforço escolar. Montou sua turma com as crianças do bairro e dava aulas em sua própria casa. Assim poderia ficar com os filhos, já que não tinha dinheiro para pagar uma creche ou alguém para cuidar deles.
Formada há algum tempo, Tereza estudava sempre que não lembrava mais de algum conteúdo. No intervalo das aulas vendia para os alunos também os lanches que ela mesmo fazia. Como precisava do dinheiro, acabou por ter turmas nos três períodos.
A falta de tempo e o medo de trocar o certo pelo duvidoso fizeram com que ela deixasse de lado o filé nesse período, mas não sem pensar em voltar. E assim o fez quando conseguiu se firmar. Abriu sua loja de artesanatos sem estoque nenhum, vendendo cada peça para conseguir produzir a próxima.
“Eu tenho meus três filhos formados e ninguém precisa de mim pra nada, porque eles têm estudo e tudo isso foi daqui. Para você ver o tamanho que é isso aqui. Mas para ter isso tem que trabalhar, criar, ter fé, vontade, ter carinho pelo que faz, não pode ter moleza”, ela conta, orgulhosa com as conquistas de seu trabalho ao longo dos anos.
A simpatia e o amor pelo que faz ajudaram sua loja a crescer. Um dia, o trabalho de Tereza chamou a atenção de dois turistas. Após visitarem as outras lojas do Pontal, voltaram à dela e um deles, que a artesã identificou ser estrangeiro, quis saber se ela produziria em grande quantidade.
– Quantos?
– Cem xales.
– Eu posso fazer, mas você vai ter que esperar.
No fim, comprou dez peças e foi embora. Um tempo depois voltou dizendo que tinha achado xales de filé mais baratos em Fortaleza. Ela disse que os de lá são diferentes, costumam ser feitos de cordão tingido, ao invés de linha, e desbotam com mais facilidade. Ele explicou que tinha planos de abrir uma loja de artesanatos na França e fez uma proposta de comprar mil xales feitos por ela.
Por causa da quantidade grande de peças, ela propôs que o trabalho fosse distribuído também para outras artesãs na associação do bairro. Depois de muito esforço para convencê-lo, os dois entraram em acordo de distribuir 500 peças para as artesãs associadas e ela mesma produziria as outras 500. A divisão gerou polêmica na associação. Algumas pessoas não concordavam com produção de apenas metade e outras defendiam que era justo Tereza fazer metade, afinal o cliente era dela. Diante da confusão, ele desistiu da proposta e disse que esperaria o tempo que fosse, mas queria todas as peças produzidas por Tereza.
Mesmo depois de insistir para que todas ganhassem, não houve mais acordo. Mesmo assim, a bordadeira chamou mais dez artesãs para ajudá-la a entregar a primeira metade da encomenda. A outra metade ela enviou depois, através do amigo do cliente, sem precisar pagar pelo transporte ou embalagens. “Ele virou um cliente para o resto da vida. Por causa dele eu aumentei a loja, fiz tudo isso. De vez em quando ele pede as peças, 20 ou 30. E botou lá o artesanato dele com o nome ‘show de bola’. Para você ver onde o artesanato me levou”.
Aos 52 anos, ela continua aprendendo, evoluindo e criando novos modelos para o seu trabalho. “Quando não sei alguma coisa me proponho a aprender. Se eu durmo com um modelo na cabeça, acordo, vou procurar saber como fazer e faço. Tem coisa que eu criei e não exponho lá na frente, a pessoa tem que entrar pra eu mostrar. Você tem que ser diferente, tem que criar suas coisas. Não chego na porta de ninguém pra olhar. Sempre fui assim.. A gente tem que ser original e criativo pra poder viver, crescer e continuar aqui”.
Tereza faz parte da associação de bordadeiras do bairro, mas é crítica em relação aos projetos que desenvolvem. “Eu não sinto uma associação que quer juntar, pensando em todos. Eu acho que tem que trazer o pessoal pra cá, mas a associação tá com projeto de levar as artesãs para os hotéis e eu não acho isso certo. Tudo bem você ir para um congresso e voltar depois, mas não ir toda semana para lá, porque tira o foco do lugar, que é aqui. Eles têm que vir aqui, não a gente ir lá”.
Os congressos mencionados são eventos realizados em Maceió em que a própria artesã paga por um espaço para vender suas peças e mostrar um pouco da cultura alagoana aos congressistas que estão na cidade, mas que não têm tempo de conhecê-la. “Eu acho que é por aí, mostrando meu trabalho, ganhando meu dinheiro e pegando pra isso, não indo de graça e nem tirando o foco daqui”, ela defende.
Na associação ela se envolve apenas nas ações que acredita incentivar o artesanato e valorizar o Pontal, como por exemplo, ajudando a comprar material para as demais conseguirem produzir.
Além das peças, Tereza ama atender os clientes. Com um cafezinho sempre pronto para oferecer, ela os recebe como se estivessem em sua casa. Assim ensinou os filhos, que ajudam na loja até hoje quando ela precisa, e também o netinho, que já chama os clientes para entrar. “Eu adoro receber, adoro conversar, mostrar que é minha casa. Boto cafezinho pra todo mundo, comprando ou não. Eu faço questão que a pessoa se sinta em casa, ela não é obrigada a comprar, mas eu quero que ela veja, ache bonito e mesmo que não compre fale pra outro, pra um amigo”.
Os turistas ficam encantados com o trabalho e às vezes o valorizam mais do que os próprios moradores da cidade, que muitas vezes reclamam dos preços, dizendo que é exploração.
“Não existe isso que tá vendendo mais caro porque é turista. Se você é de Maceió, compra pra nos prestigiar. O seu dinheiro é igual ao do turista. Tem que ter jogo de cintura para lidar com o povo daqui”.
E isso ela tem de sobra. Os filhos admiram a calma e a desenvoltura com que ela leva seu negócio e atende as pessoas com os mais diversos temperamentos. E se depender da vontade da bordadeira, continuará assim por muito tempo ainda. “Eu penso em nunca parar, mas se um dia eu não tiver mais condições físicas os meninos que vão ficar com a loja. Mas eles dizem que não querem porque não têm a paciência para lidar com tanta gente diferente”.
Hoje ela se sente realizada. Conseguiu cumprir seu objetivo de criar os filhos, trabalhar para dar estudo para que eles tivessem a opção de escolher o que queriam e saber se virar quando um dia ela não estiver mais aqui. Hoje cada um segue seu caminho, com seu próprio dinheiro, mas se preciso, sempre terão a arte, que aprenderam a respeitar com a mãe.
Sempre emocionada ao falar da família, o orgulho transparece e transborda nos olhos. “Não posso pensar grande demais, mais do que eu sou. Tenho que pensar com meus pé no chão, não posso ficar querendo o que os outros têm. Sou conformadíssima, realizada e muito feliz. Com uma família linda, meus filhos muito unidos, amigos. Eu consegui realmente o que eu queria”.
Carla Rodrigues, Gabriel Castro, Nathalia Cunha e Wesley Gonsalves