Diante de muitas realidades ocultadas e ignoradas, podemos notar a situação periférica um pouco mais exposta na obra Cidade de Deus, de Paulo Lins. Retratando a formação de um conjunto habitacional, o romance apresenta o desenrolar do crime na favela carioca, possibilitando a visibilidade da miséria presente no ambiente.
A partir das histórias de Inferninho, Pardalzinho e Zé Miúdo as páginas do livro passam a contar a dinâmica e funcionamento da periferia. A obra se consolida com um narrador onisciente em terceira pessoa, que apresenta os fatos de maneira determinista. Perante a narrativa, podemos identificar uma dificuldade desses personagens em sair dessa condição humana e social, uma vez que a falta de estrutura familiar, de saúde, educação e segurança podem acarretar uma socialização incompleta. Assim, por consequência do desamparo social, o indivíduo passa a ser influenciado pela banalização da violência presente no ambiente de desenvolvimento.
A miséria que identificamos na narrativa gera, no indivíduo, o desejo de melhorar de vida com base em suas aquisições, fazendo com que o crime facilite tal caminho. Outro ponto que consolida essa ideia é o fato das personagens não se importarem em “passar” os outros para chegar onde querem. E é a partir desse ponto que podemos referenciar a mazela presente, também, nas realidades que cercam a periferia. A obra apresenta a intimidade e particularidade de policiais, tornando a existência de ambos equivalentes, como parte de uma suposta insignificância social.
A identidade literária
A importância do livro se baseia na necessidade de exposição da realidade periférica, considerando que esta é censurada e ocultada na maioria das vezes. A obra é inspirada em histórias reais: Paulo Lins viveu 20 anos na favela carioca com o intuito de internalizar tal vivência na hora de escrever. Entretanto, o romance pode ser visto como o olhar da classe média sobre a periferia; uma vez que alguns acusam a obra de estereotipar o negro e o conjunto habitacional popular.
Para Marcelo Magalhães Bulhões, doutor em literatura brasileira, Cidade de Deus destaca a relação estreita entre forma literária e realidade social. “No romance de Paulo Lins, o mundo degradado – a violência como parte inequívoca do abismo social brasileiro – encontra na própria linguagem, no cerne da forma literária, sua expressão. A violência não é mero tema, mas se apresenta na textura, no corpo da linguagem”, comenta Bulhões.
O doutor expõe o problema da representação social e a solução proposta pelo autor, como uma tentativa de dar voz ao marginalizado. “Falar ‘em nome dele’ poderia levar à criação de uma linguagem que não o representaria. Paulo Lins ‘resolve’ tal questão ao elaborar a forma literária ‘por dentro’, no cerne mesmo da marginalidade/criminalidade da realidade periférica, o mundo dos excluídos”, explica Bulhões.
Dessa forma, podemos observar as críticas e reconhecer que o escritor procurou solucionar a representatividade da população periférica abordando a linguagem como fator de identidade. O que deve ser considerada é importância de obras literárias que adentrem a realidade brasileira, expondo um modo de vida que, ainda hoje, é velado.
As frases de Paulo Lins são curtas, mas suficientes para imersão na realidade da periferia. Foto: Bianca Furlani
A obra, lançada em 1992, surgiu num contexto em que a necessidade de uma narrativa literária que abordasse questões associadas à guerra do tráfico e suas atrocidades de maneira mais profunda era de extrema urgência. O livro abre as cortinas sobre o que era noticiado nos jornais da época, desmistificando o imaginário da sociedade brasileira distante daquela realidade.
A riqueza nos detalhes e o mergulho sobre a mente das personagens fazem o leitor viver tudo que é narrado e ainda, sentir na pele a desigualdade e a miséria humana. O pobre explorado pelo patrão; a mulher que não recebia a atenção do marido; o homem traído pela esposa com o peixeiro; o policial que matava para ser temido; a mãe que segurava em seus braços a criança atingida por uma bala perdida; a mulher que morreu num abordo mal sucedido; a criança que preferia ser “bicho-solto” a “otário”; as mães que perderam os filhos tão novos para o crime. O assassino que matava para ser respeitado.
A própria (con)fusão entre a realidade e ficção na obra denuncia a proximidade narrativa da realidade vivida na favela e do mundo do crime. Além disso, o romance foi escrito por alguém que sabia muito bem o que estava fazendo; Paulo Lins acompanhou o nascimento e ascensão do trafico de drogas na Cidade de Deus através da janela de sua casa.
Até hoje, algumas cenas não são difíceis de serem vistas nos noticiários. Os assuntos abordados no livro continuam presentes na nossa sociedade. Segundo Bulhões, “a integração perversa da marginalidade, a ausência do Estado nos centros de marginalidade social e sua incapacidade de conduzir o indivíduo ao patamar dos direitos da cidadania, a corrupção policial, o aliciamento infantil no mundo do crime e a barbárie tornada matéria corriqueira do nosso cotidiano” são algumas das pautas abordadas no romance que continuam atuais.
Os holofotes na favela
O livro foi inspiração para o filme de Fernando Meirelles, lançado dez anos depois. A obra cinematográfica não fez sucesso apenas nos cinemas brasileiros, teve seu reconhecimento na Europa e nos Estados Unidos – o que se consolidou com as quatro indicações ao Oscar de 2004. Melhor Diretor, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Edição e Melhor Fotografia. O sucesso reforça a importância e a atualidade das questões abordadas, e ainda serve como representação das camadas populares no cinema e na televisão.
É claro que as obras, tanto a literária como ainda mais a cinematográfica, não ficaram de fora das críticas. Há quem diga que Cidade de Deus dissemina imagens negativas e de violência; para a sensibilidade conservadora é perigoso trazer à tona uma história sobre criminosos. A grande verdade é que a história da favela, seja ela retratada por Paulo Lins ou por Fernando Meirelles, incomoda. A representação das camadas populares e a denúncia escancarada da desigualdade pesam. Tudo agride em Cidade de Deus: as mortes, a violência gratuita, o descaso do poder público e da sociedade, o exército de crianças e até mesmo a fala das personagens.
Além disso, uma das questões mais marcantes em torno da produção cinematográfica é o fato de o elenco do filme fazer parte do contexto de Cidade de Deus. “Estudo cinema há muitos anos, comecei aqui no Grupo Nós do Morro e me tornei cineasta em 2002. E aí, me chamaram para fazer uma pesquisa de elenco do Cidade de Deus. O Fernando Meirelles e a Kátia Lund vieram aqui pro morro e convidaram o Guti Fraga, que é o fundador do grupo, pra achar atores jovens e negros das favelas do Rio. Eu fiz esse mapeamento, daí acompanhei todo o processo e treinamento e, depois, o filme entrou em produção. Cidade de Deus foi meu maior estágio de cinema, como cineasta”, conta Luciano Vidigal, ator e diretor no Rio de Janeiro.
A inserção dessas pessoas, com certeza, trouxe protagonismo para o filme e representa até um ponto de virada na vida de muitos a partir do audiovisual. Para Eduardo BR, que interpretou Jorge Piranha, a participação no filme trouxe uma mudança completa de vida: “antes do filme, eu cantava rap e vivia como muita gente da favela vive, fazendo escolhas que não são tão comuns e necessárias fora da favela, mas que, dentro dela, se tornam necessárias por uma série de questões, dentre elas a falta de recursos e a necessidade do ter. Eu vivia como muitos jovens vivem em algum momento da sua vida. A principal mudança na minha vida foi a abertura de novos horizontes”.
A realidade que era vista de forma determinista passa a ter uma possibilidade de mudança. “Tiveram atores que conseguiram sucesso dentro das suas carreiras, até internacionalmente. O Douglas Silva é um ator que me marcou muito de uma forma positiva. O Thiago Martins, que foi meu aluno… O próprio BR, que era traficante e virou diretor de cinema”, comenta Luciano Vidigal. A partir disso, alguns atores puderam trilhar seu caminho de uma maneira diferente.
No caso de Eduardo BR, a atuação no filme foi a descoberta de uma paixão: “eu me apaixonei pela técnica e não queria ser ator. Conheci um cara muito legal chamado Ivan Martini Ferreira, ele era assistente de direção, que era o que eu queria ser. E aí fui indo, surgiram oportunidades de atuar, algumas aceitei, outras não. Depois, com mais dois amigos, fundamos a ONG Nós de Cinema, onde fiquei durante um tempo. Em 2006, eu saí e comecei a trilhar meu caminho para me tornar um diretor, lancei meu primeiro longa-metragem no cinema e estou muito feliz”.
Realidade nua e crua
Dez anos depois, Luciano Vidigal e Cavi Borges decidiram mostrar a realidade de Cidade de Deus e como os atores se encontravam. Dentre muitas histórias, tanto de pessoas que seguiram carreira no audiovisual, quanto de outras que não continuaram na atuação, o que mais marca nos relatos do
documentário é a questão do valor recebido pelo elenco. “Não foi difícil reencontrar os atores, muitos se tornaram meus amigos. 70% deles é do grupo Nós do Morro. A dificuldade é que alguns não quiseram dar entrevista pelo tema. Se você vê o filme, você percebe que muitos ficaram revoltados por não terem recebido essa retribuição financeira de uma forma bacana”, relata Luciano.
No próprio documentário, os atores falam abertamente sobre o quão pouca foi a quantia recebida. Alguns dizem ter comprado alguns utensílios domésticos, outros, um computador. E essa passa a ser a principal crítica em relação à produção cinematográfica. Embora o filme tenha sido a oportunidade de um ponto de virada, ela não o foi para todos. “Quando encontrei o Renato Sousa, que fez o Marreco, eu fiquei bem mal. Estava trabalhando em uma oficina e o achei muito talentoso. Ele assumiu que se deslumbrou, que foi difícil aceitar o sucesso. Também teve um dos atores, o Jeff Xander, que desapareceu, não sabemos se faleceu”, conta Vidigal.
Diante disso, não dá para dizer que apenas o fato de ter participado de um filme que ganhou 4 óscars seria suficiente para capacitar e dar alicerce para essas pessoas. Para Luciano, “quando você lida com atores que têm uma estrutura social precária, você, como realizador, tem que pensar muito sobre isso. Seu filme ou sua obra pode lidar com o sucesso, então você tem que criar uma certa estrutura para essas pessoas. O Fernando Meirelles e a Kátia Lund tinham essa preocupação, mas o elenco era muito grande. Então, fica difícil julgar. Eu aprendi muito com o filme, principalmente, a lidar com esse tipo de pessoa e com o mercado, que não é fácil”.
Segundo o diretor, foi difícil para o elenco compreender como tinham ganhado tão pouco para atuar em um filme dessa magnitude. “eu sou ator também, já tem 30 anos de carreira, mas até hoje discutir cachê é uma questão. O valor vai de acordo com a pessoa que você é, com o empresário que você tem, que vai brigar pelo valor, e 90% do elenco nunca tinha feito um filme de longa-metragem. Então, foi avaliado assim, foi o primeiro cachê deles. A tabela para ator iniciante no audiovisual brasileiro é uma coisa polêmica”, explica ele.
Representatividade X racismo
“O cinema é muito elitizado, é direcionado para uma determinada classe. E, no cinema, ou você serve como eles querem ou não serve”, Eduardo BR.
Embora o fato do elenco ser parte da Cidade de Deus trazer representatividade para o que é a proposta do filme, não dá para ignorar que a ocupação do espaço audiovisual acaba, também, sendo racista. “O audiovisual ainda é racista, você não vê o negro predominando de forma democrática um protagonismo. E isso os afetou muitos na hora de conseguir uma estabilidade. O mercado é muito difícil”, relata Luciano, que também é negro.
Ou seja, esse é um fator agravante quando falamos da situação dos atores após Cidade de Deus. “Portas nunca se abriram, a gente que foi abrindo. Fui fazendo minhas coisas de maneira bem precária com ajuda de algumas pessoas. Inclusive, meu longa-metragem eu fiz na raça. Mas a gente que foi abrindo as portas e estamos dispostos a abrir cada vez mais, para que pessoas possam vir e usufruir desses espaços conquistados”, conta Eduardo BR.
Para Luciano Vidigal, o documentário é uma grande reflexão sobre o Brasil 10 anos depois do filme Cidade de Deus: “ser artista é uma profissão muito mágica, mas, ao mesmo tempo, é muito árdua e injusta, principalmente, para o artista negro”. Em entrevista realizada pelo Itaú Cultural em 2017, Paulos Lins revelou que o objetivo de seu livro era diminuir a violência e a matança da população negra e pobre feita por policiais. Ou seja, a motivação de escrita da obra é algo que ainda permeia os desdobramentos dessa realidade: o racismo.
Por Bianca Furlani e Gabriela Silva de Carvalho