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Cultura do Estupro existe, sim e, para ela, fecharam-se os olhos e desceram as cortinas

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No Brasil, uma mulher é violentada sexualmente a cada 11 minutos;  mas apenas 10% das agressões são denunciadas.

Por Paula Nishi

O recente caso da adolescente que sofreu um estupro coletivo no Rio de Janeiro em maio deste ano chocou o país. Apesar da intensa repercussão da notícia, o caso da jovem carioca não é isolado, tampouco se deve concluir que esse tipo de crime raramente ocorre no país. No Brasil, uma mulher é violentada sexualmente a cada 11 minutos. Por ano, são quase 50 mil crimes envolvendo violência sexual contra a mulher. Entretanto, estimativas apontam que, deste número, apenas 10% das agressões sejam denunciadas. Na verdade, são cerca de 500 mil estupros anuais. Apesar dos números absurdos, a forma como a violência contra a mulher é tratada no Brasil só evidencia uma trágica realidade: Cultura do Estupro existe, sim e, para ela, fecharam-se os olhos e desceram as cortinas.
Uma recente pesquisa realizada pelo Datafolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostrou que 85% das mulheres brasileiras têm medo de serem vítimas de uma agressão sexual. Entre as nordestinas, o número cresce para 90%. Ainda segundo dados oficiais do Sistema Único de Saúde (SUS), 70% dos casos de estupro envolvem crianças ou adolescentes. A evidência de que se vive um momento crítico em relação à segurança das mulheres, entretanto, não é de hoje. Apesar do termo Cultura do Estupro ter conquistado notoriedade apenas recentemente através da mídia, pensar sobre Cultura do Estupro no Brasil é, na verdade, ter coragem para olhar para trás.
Afinal, o que é Cultura do Estupro?
Para Tamara Amoroso Gonçalves, mestre em Direitos Humanos pela USP e integrante do Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM/Brasil), da Rede Mulher e Mídia, é preciso primeiramente entender o que, de fato, significa a palavra cultura. Quando pensamos em cultura, há uma tendência em associá-la a um conjunto de costumes e ações socialmente aceitos, a ideais e pensamentos que convergem em um comportamento em comum para um determinado grupo de pessoas. Pensar sobre uma Cultura do Estupro, porém, é entender que Cultura, neste caso, se refere a esse conjunto de padrões, costumes e comportamentos que naturalizam a violência contra a mulher. De acordo com o Comitê para Eliminação da Discriminação contra as Mulheres da Organização das Nações Unidas (Comitê CEDAW, em inglês), essas atitudes tradicionais – como justificar o estupro devido às roupas usadas pela vítima, o horário em que saiu de casa desacompanhada ou desacreditar a vítima devido aos seus valores morais – colocam a mulher em um papel pré-estabelecido e, baseadas em estereótipos de gênero, contribuem para a geração de uma cultura tolerante a esse tipo de violência. Além disso, a Cultura do Estupro ainda fomenta a reprodução de discursos machistas, inclusive, entre as mulheres. grafico-paula-01Fonte: Datafolha (encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública).  (Créditos da imagem: Maykon André)
O resultado… Não é novidade para ninguém. Tais práticas acabam justificando a violência de gênero como uma forma de controle sobre as mulheres e, ainda, acabam por culpabilizá-las pela violência das quais são vítimas. A consequência mais nítida da violência de gênero é, portanto, privar as mulheres de exercerem suas liberdades fundamentais e gozarem de seus direitos humanos. Essa assimetria de poder nas relações sociais entre homens e mulheres, na qual a mulher é sempre colocada em um patamar de subordinação ao homem, resulta na desigualdade de direitos em diversas esferas da vida: na família, na escola, no mercado de trabalho e na política.
O papel do Poder Judiciário
Nesse âmbito, a Lei Maria da Penha, sancionada em agosto de 2006, foi um avanço na conquista dos direitos das mulheres. A Lei, que visa proteger, legalmente, qualquer mulher vítima de violência doméstica, familiar e de “toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”, contribuiu para que a violência contra a mulher deixasse de ser um eco distante e fosse um tema a ser colocado em pauta. Entretanto, ainda que um progresso, a Lei Maria da Penha muitas vezes acaba por restringir sua efetividade no campo doméstico, o que prejudica o cumprimento da Lei tal como deveria. Isso porque, nos casos de abuso sexual, é comum que o agressor seja próximo da vítima, muitas vezes membro da própria família, sendo 70% dos casos de estupros registrados, o agressor é conhecido da vítima. Tal fato também indica, consequentemente, a culpabilização da vítima e o descrédito na fala da mesma. Afinal, é dada a credibilidade e o valor probatório necessário essencial ao que diz a mulher em situação de violência?
Tamara Gonçalves, que também é formada em Direito pela PUC – SP, elucida as falhas primárias no atendimento à mulher em delegacias e órgãos públicos. Nove em cada dez reclamações feitas à Ouvidoria da Secretaria de Políticas para as Mulheres são queixas acerca do atendimento da Polícia Militar e da assistência em delegacias – tanto as tradicionais, quanto as especializadas no combate à violência contra a mulher. Assim, a conduta de profissionais que têm o primeiro contato com uma mulher que acabou de sofrer uma violência sexual é imprescindível para não coibir a denúncia e fragilizar ainda mais a vítima. grafico-paula-02
Fonte: Datafolha (encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública). (Créditos da imagem: Maykon André).
O sistema judiciário, entretanto, está longe de possuir uma postura humanizada diante desses casos: quando sua atuação reproduz estereótipos e preconceitos sociais, não levando em consideração a questão de gênero, são comuns atitudes que reforçam a ideia de que o estupro é um crime no qual a própria vítima deve provar que não é culpada. No primeiro depoimento dado aos oficiais e justiça, “via de regra a primeira pergunta é sempre sobre o comportamento da mulher e não dos atos cometidos pelo homem. É como se houvesse uma inversão dos fatos e do ônus da prova. E isso é a cultura do estupro”, afirmou Gabriela Mansur, que é Promotora de Justiça e Militante Feminista, em entrevista dada ao portal Justificando. Ela ainda aponta que “numa violência física, moral, psicológica, essa mulher tem que ser atendida de uma forma humanizada, como se ela tivesse realmente procurando o sistema de Justiça de uma forma geral e esse sistema tem de recebê-la de braços abertos e treinado para isso, como se fosse dar um primeiro atendimento para essa mulher em situação de violência”.
Segundo, ainda, a pesquisa realizada pelo Datafolha, 53% dos entrevistados afirmam acreditar que as leis brasileiras protegem estupradores; 35% discordam da afirmação; 5% não souberam responder e 7% disseram não concordar, mas também não discordar. Todavia, no Brasil, o crime de estupro sempre recebeu punição considerada severa pela legislação penal. Em 1830, o Código Penal determinava pena de três a doze anos; em 1890, a pena era de um a seis anos e, em 1940 e 1969, o Código Penal previa pena de três a oito anos para casos de estupro. Hoje, o crime é previsto no artigo 213 do Código Penal, Lei n. 12.015 e a pena passou a ser de seis a dez anos. Entretanto, a pena máxima pode chegar a doze anos se a vítima sofrer alguma lesão corporal, ou até a trinta anos se ocorrer a sua morte. Percebe-se, porém, que o aumento das penas não resultou na redução nas taxas de ocorrência desse crime. Ao contrário, os números apenas aumentaram.
Ao ser questionada sobre a efetividade da lei brasileira, Maíra Zapater, professora e pesquisadora nos âmbitos de Direito Penal, Processual Penal e Direitos Humanos, aponta: “depende do que você chamar de lei efetiva: se por efetividade entendermos um alto percentual de condenações ou aplicação de penas elevadas, não podemos fazer qualquer afirmação, pois os tribunais não sistematizam esse tipo de informação, ou seja, não temos um dado oficial que nos diga quantos acusados de estupro são condenados, e a quantos anos de prisão. Porém, se por efetividade entendermos o poder de prevenir estupros (porque as penas altas previstas na lei dissuadiriam potenciais estupradores), aí a efetividade é zero. Mas isso ocorre com qualquer lei penal: é consenso entre os criminólogos que a ameaça de penas altas (em qualquer crime) não é um fator que interfira da decisão de praticar um crime”.
Maíra ainda explica que projetos de lei como a PL 5398/13, proposta por Jair Bolsonaro e que previa a castração química de estupradores não é o caminho para assegurar às mulheres mais segurança. “O projeto é populista e ineficaz, pois parte do pressuposto que o estuprador é meramente um homem com uma libido descontrolada. O crime de estupro não tem qualquer relação com libido ou com erotismo (daí ser absolutamente incorreto atribuir qualquer responsabilidade à vítima e seu comportamento, roupas etc), mas sim com exercício de poder […]. Em países que experimentaram a castração química para condenados por estupro, ocorreu apenas uma modificação de como os crimes eram praticados (com outras parte do corpo, como mãos, ou introduzindo objetos nas vítimas), e frequentemente com um grau de violência mais elevado, a demonstrar que a questão não é o pênis do agressor funcionar ou não. Além disso, o projeto é inconstitucional, pois a castração química viola a integridade física do condenado e configura pena degradante, o que é vetado pelo artigo 5º da Constituição Federal”.
Dessa forma, percebe-se que tais medidas não compreendem a violência de gênero em sua origem: o machismo. Justificar a atitude do agressor, ou proteger-se atrás do argumento da generalização, em que “nem todo homem é estuprador”, apenas contribui para a relação assimétrica de poder entre homens e mulheres, nas quais a mulher sempre desempenhou um papel pré estabelecido por uma sociedade patriarcal. É preciso compreender que, ao contrário da violência contra o homem, a violência contra a mulher é legitimada socialmente. “A própria Convenção para Eliminação de todas as formas de violência contra a mulher (CEDAW, 1975) e a Convenção de Belém do Pará (1994) reconheceram isso, que a condição de gênero expõe as mulheres a múltiplas formas de violência e diferentemente dos homens que matam e morrem por exemplo, que estão envolvidos na criminalidade e sofrem as consequências desse envolvimento, diferentemente disso, somos agredidas, violadas e assassinadas simplesmente porque somos mulheres”, explica Izabel Solyszko, feminista, Assistente Social e Professora na Facultad de Ciencias Humanas y Sociales da Universidad Externado de Colombia.
Por que é importante falar sobre gênero?
É comum ouvirmos falar sobre a defesa do humanismo, termo que se baseia na valorização do ser humano, independentemente do sexo, ou seja, faz-se desnecessário pensar sobre a perspectiva de gênero. Porém, enxergar o ser humano sem suas especificidades, abre caminho para invisibilizar o gênero feminino, conhecido como “gender blindness”/“cegueira de gênero”. Pensar sobre gênero inclui, ainda, refletir sobre os papéis “masculinos” e “femininos”, em que para cada instância espera-se determinado conjunto de ações socialmente atribuídos e aceitos, ou seja, o famoso “isso é coisa de menino” e “isso é coisa de menina” ou, ainda, “meninos podem fazer isso” e “meninas devem fazer aquilo”.
Durante séculos, a enunciação de direitos humanos foi guiada pela ideia de igualdade formal, como parâmetro para definir a titularidade de direitos. Na declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, por exemplo, afirmaram-se os princípios políticos de liberdade, igualdade e fraternidade. Dessa forma, os direitos humanos básicos eram vistos como universais e para todos. Entretanto, em uma sociedade marcada por contrastes sociais e assimetrias de poder, afirmar a igualdade entre os seres humanos foi suficiente para garantir a não violação de direitos?
Pensar sobre gênero como uma categoria de análise, permite enxergar as diferenças socialmente construídas entre homens e mulheres. Dessa forma, homens e mulheres possuem os mesmos direitos, mas não se pode ignorar o fato de que existem determinadas situações que dizem respeito apenas às mulheres, como os direitos sexuais e reprodutivos, por exemplo.
“O reconhecimento das especificidades não viola o critério da universalidade dos direitos humanos, mas reafirma a necessidade de entender os contextos nos quais as pessoas e grupos estão inseridos e, consequentemente, a maior suscetibilidade a terem seus direitos violados. Justamente por isso é preciso que o Estado reconheça direitos específicos, como os direitos das crianças e adolescentes, idosos, indígenas, negros e negras, mulheres, LGBTs”, afirma Tamara Gonçalves, em um de seus textos para o portal Justificando.
A importância dos Coletivos Feministas
Nesse contexto, a militância feminista tem desempenhado papel fundamental na luta pelos direitos das mulheres. O movimento feminista, hoje aquecido e criando raízes mais profundas, tem dado voz às mulheres e, sobretudo, tem levado para a  mídia pautas importantes como a própria Cultura do Estupro, o aborto, e a representatividade feminina na política.
Para Thamires Motta, militante feminista e parte do Coletivo Abre Alas, “O movimento feminista é indispensável na luta pela emancipação cultural, social e econômica das mulheres. Ele influencia a sociedade a partir do momento em que é um movimento social organizado, já que essa definição de movimento é capaz de exigir e provocar transformações sociais. Sem um movimento forte e objetivo é impossível transformar a sociedade”.
O Abre Alas é um Coletivo Feminista, fundado em 2014, inicialmente com a proposta de ser uma roda de samba feminista para a semana dos calouros da Universidade Estadual Paulista (UNESP), no campus de Bauru. Através de ações diretas, discussões internas e grupos de apoio, o Coletivo busca atuar de forma incisiva no combate às opressões e realizar debates para ampliar o conhecimento das mulheres sobre feminismo. Atualmente, o Coletivo encontra-se desarticulado e, para Thamires, isso também é “reflexo do momento político que o Brasil vive, com o conservadorismo se fortalecendo e a esquerda rachando”.
Uma brecha na cortina
Mas se durante séculos a figura da mulher sempre esteve relacionada ao papel submisso desempenhado por ela, a ideia de que seu corpo é público ou pertencente ao homem ou, ainda, se a equidade de direitos nunca foi uma realidade dentro de uma sociedade patriarcal, machista e misógina, hoje o grito feminista tem sido a voz representativa que, por muito tempo, encontrava-se adormecida.
Essa visão desumana não se resume ao machismo, em que existe uma supremacia masculina e no qual o homem detém controle sobre a mulher em diversas esferas de poder e que resulta na Cultura do Estupro tal como é manifestada hoje. Por isso, é preciso entender, de uma vez por todas, que o principal ponto para o início de uma desconstrução consciente sobre as relações assimétricas de poder entre homens e mulheres é, finalmente, compreender a importância da discussão sobre gênero. Nesse âmbito, a educação possui inquestionável poder transformador. Se 91% das pessoas entrevistadas na pesquisa realizada pelo Datafolha acreditam que é possível ensinar meninos a não estuprar, vê-se a educação como o principal agente de mudança. Assim, não se depende mais apenas de políticas públicas, ou medidas extremistas propostas pelo governo, mas acredita-se na educação como principal pilar transformador da sociedade.
Além disso, é importante que as vozes femininas não se calem. Campanhas que amplamente dominaram as redes sociais, como #PrimeiroAssédio e #MeuAmigoSecreto, e também a imponente presença feminista nas ruas têm garantido mais visibilidade para as causas feministas. Ainda que para cada passo a frente exista uma oposição conservadora puxando a corda para o lado contrário, a luta pela igualdade de gênero tem se fortalecido e conquistado mais espaço diante das pautas sociais. A discussão fomenta a desconstrução e, tal atitude, é essencial.
Em uma sociedade em que não se discute os papéis sociais desempenhados por seus componentes e, ainda, ao que deve ser considerado padrão, correto ou socialmente aceito, é impossível pensar na equidade de direitos entre homens e mulheres. A brecha encontrada na cortina, ainda que por ora seja tímida e sutil, existe. Nela, encontram-se feministas corajosas, mulheres guerreiras e meninas empoderadas que não se acanham pela maré desfavorável, mas lutam para que, futuramente, haja um sopro de esperança para a construção de uma sociedade mais justa e mais humana.

Redação

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