A aceleração do consumo culminada na chamada fast fashion e as suas consequências.
Nos últimos 15 anos, no ramo da moda, a produção de roupas dobrou, motivada pelo crescimento da classe média e pelo desenvolvimento econômico. Os dados, disponíveis no relatório “A New Textiles Economy” (“Uma nova economia têxtil), realizado pela Ellen MacArthur Foundation, indicam que o fenômeno está atrelado a denominada “fast fashion”, ou “moda rápida” – caracterizada pela rápida movimentação de estilos e produtos em um período de tempo cada vez menor.
O atual modelo de produção da indústria têxtil pressiona os recursos naturais, polui o meio ambiente e cria impactos socioambientais negativos, conforme afirma o relatório da fundação Ellen MacArthur. Para entender o fenômeno e suas verdadeiras implicações, é preciso analisar a moda e a indústria na qual ela orbita, de itens têxteis, que se dispõe socialmente tanto como uma forte geradora de empregos quanto de significativas problemáticas voltadas ao meio ambiente.
“Assim como os demais parques industriais, a moda e tudo o que gira em torno dela precisa ser repensada”, afirma Lilyan Berlim, autora do livro ‘Moda e Sustentabilidade: Uma reflexão necessária’ e pesquisadora do Laboratório de Mudanças Climáticas e Práticas Sustentáveis da ESPM-RJ. “Pesquisas recentes, inclusive minhas, indicam que não só o mercado de moda começa a transformação como a própria indústria têxtil também começa a passar por uma reformulação.”, diz Berlim.
Falar de moda e sustentabilidade se tornou uma questão essencial, apesar de desafiadora. O termo sustentabilidade significa “qualidade ou condição do que é sustentável”, o que garante certa liberdade e subjetividade para a palavra. De toda forma, Berlim afirma que associar os termos sempre foi um desafio, graças a complexidade do processo produtivo dos artigos de roupas que circulam no mercado e todas as suas nuances. Além disso, em sua pesquisa de doutorado, também entende como desafiador o fato de que a moda é vista como uma das causas de um consumismo exacerbado e enraizado na obsolescência. Segundo Berlim, em sua tese, “a cada época, moda e consumo vão estabelecer novas e distintas relações que nos apontam como estes fenômenos não são dissociados.”
O modelo industrial da fast fashion gerou a grande necessidade de se reformular a indústria da moda como um todo. Em pesquisa para a Universidade Estadual de Londrina (UEL), a pesquisadora Erica Shimamura analisa o fenômeno Fast Fashion. Shimamura explica que o fenômeno se expandiu desde a década de 1990, através da globalização econômica e das comunicações, onde a oferta e demanda de produtos tomou proporções maiores. Além disso, a fabricação “offshore” – onde a produção como um todo está fragmentada pelo mundo – disponibilizou o acesso a mão de obra barata e facilitou sua expansão.
Ao longo dos últimos anos, aos poucos se entende como aceitável o consumo e descarte descontrolado de roupas, de forma regular, e se analisa uma queda na frequência de uso de cada roupa: as peças são compradas, utilizadas e descartadas com maior aceleração. De acordo com a Ellen MacArthur Foundation, as roupas estão sendo usadas 36% menos vezes do que 15 anos atrás.
Em um exemplo prático sobre a fast fashion, Shimamura afirma que “as roupas produzidas no âmbito da moda rápida são conhecidas pelo design atualizado a preços acessíveis, porém também são associadas à baixa qualidade dos materiais e dos acabamentos, e por isso receberam o rótulo de ‘moda descartável’”.
Os padrões de consumo tiveram uma evolução histórica a partir do estabelecimento do capitalismo e, segundo o relatório “Possibilidades para a moda circular no Brasil”, realizado pelo instituto Modefica, a produção de roupas aumentou exponencialmente nos últimos 15 anos. Em 2019, só o Brasil produziu 8,9 bilhões de peças de roupas. Esse aumento da produção e do consumo está relacionado ao crescimento da população de classe média em todo o mundo, e também é intrinsicamente relacionado ao fenômeno da fast fashion.
Os impactos da cultura do descarte e da moda rápida vão muito além do âmbito econômico e social. O relatório da fundação Ellen MacArthur Foundation mostra que a indústria global têxtil é responsável por uma significativa emissão de gases de efeito estufa (GEE). Segundo o estudo, em 2015, a indústria produziu cerca de 1,2 bilhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2). Além disso, a manufatura do nylon, fibra muito utilizada para a produção de roupas, também emite óxido nitroso, um poderoso gás de efeito estufa.
Mestre em Ciências Ambientais pela UFF, Lilyan Berlim procura elencar as consequências negativas mais relevantes da indústria da moda. Segundo a pesquisadora, a produção segue utilizando muito as fibras naturais, embora não sejam as mais utilizadas (espaço reservado para o poliéster, uma fibra sintética). “O algodão vem sendo utilizado com uma carga de agrotóxicos muito alta, em monoculturas imensas, e isso tende a levar o solo à uma erosão muito mais rápida”, declara.
“O solo é um recurso renovável, mas ele precisa de tempo. E a aceleração da indústria têxtil faz com que essas monoculturas aconteçam de uma forma muito rápida, não deixando tempo para o solo se recuperar.” – Lilyan Berlim
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Na imagem, uma lavoura de algodão no interior de São Paulo. (Foto: Isabela Batistella)
Além disso, a pesquisadora explica que o algodão é uma commodity – mercadorias de produtos básicos de matéria prima –, e apesar de existirem iniciativas do próprio agronegócio em tornar esse produto sustentável, não existe garantia sobre os agrotóxicos e transgênicos que estão sendo utilizados para reduzir as pragas comuns no seu cultivo.
Segundo Priscila Barbosa, em sua pesquisa de pós-graduação “Análise dos impactos ambientais da cadeia têxtil do algodão”, é a utilização de produtos químicos – utilizados para controlar a incidência de pragas – que tem se destacado como contribuinte para a degradação ambiental. Junto a isso, a pesquisadora da área de Engenharia Urbana também aponta que a irrigação, apesar de seus benefícios para o cultivo, tem criado impactos ao solo e à disponibilidade de água.
Berlim aponta que a área de tinturaria e estampagem são uma das que mais atingem os recursos hídricos dentro da produção têxtil. Apesar de existirem pesquisas com soluções para evitar a poluição das águas e leis que regulamentam seu uso, como a de nº 9.433 – que institui a política nacional de recursos hídricos –, a pesquisadora aponta que raras são as estamparias e tinturarias que tenham uma real manutenção hídrica do lixo líquido.
Em sua pesquisa, Barbosa salienta que o tingimento da malha altera a qualidade da água, por conta das substâncias químicas que fazem parte do processo. “A principal fonte de poluição da indústria têxtil é o despejo destes efluentes não tratados nos corpos d’água e no solo”, disserta.
Lilyan Berlim considera que a poluição é o pior dos males. A empresa americana ShareCloth publicou, em 2018, um relatório que buscava explicitar a quantidade de roupas produzidas que não chegam a ser comercializadas. Segundo a pesquisa, a indústria fashion produzia, na época, 150 bilhões de peças por ano – o que equivale a 20 itens por pessoa. “A gente sabe que grande parte da população do planeta não tem nem condição de comprar roupa. Então, tem um desequilíbrio aí muito grande”, comenta Berlim. Além disso, desse total, 30% das peças não chega ao mercado.
A pesquisa também demonstra que a indústria cria cerca de 92 milhões de toneladas de resíduos têxteis. Berlim ressalta que, graças a isso, tem-se questões como o Deserto do Atacama com montanhas de roupas usadas. Segundo reportagem da BBC, 60 mil toneladas de produtos têxteis são enviadas por ano para o Atacama, e mais da metade termina em aterros sanitários. Grande parte dessa roupa é incinerada, o que gera incêndios anuais de grande proporção e diversos problemas ambientais e de saúde pública.
Como a sociedade pode contornar essas consequências?
Para Lilyan Berlim, a questão é complexa de ser respondida. “Não se pode culpar o consumidor, mas também não podemos desprover ele de cidadania e de agência”, afirma a pesquisadora. A alternativa dada por Berlim é a de informar os consumidores e a sociedade – principalemnte a classe média, com o papel de maior consumidora –, para que uma pressão possa ser realizada sobre as grandes corporações.
“A sociedade como um todo tem que exercer pressão politicamente, em termos de quem ela elege, quem são os políticos preocupados com isso, e ela também pode pressionar fazendo boicotes”, disserta a autora.
O relatório da fundação Ellen MacArthur também entende que é preciso transformar o setor têxtil com base em uma economia circular. Os princípios dessa economia seguem a ideia de restauração, regeneração e providência benefícios para os negócios, para a sociedade e para o meio ambiente. No caso da indústria têxtil, o relatório busca a utilização e re-utilização de roupas, de forma a possibilitar que os recursos naturais e energia se regenerem.
Em resumo, o plano apresentado pela Ellen MacArthur Foundation se baseia em retirar do mercado substâncias preocupantes e que liberam microfibras plásticas, por exemplo. Isso para que a economia tenha materiais seguros e saudáveis em seu ciclo. Além disso, transformar a maneira com a qual roupas são produzidas, vendidas e utilizadas para que se possa mudar a natureza descartável dos produtos. Também considera essencial melhorar a reciclagem e transformação de roupas, reprocessando as coleções no mercado. Por último, realizar o uso eficaz dos recursos e mover a indústria para insumos renováveis.
“Para mim, o que há de mais sustentável hoje em dia em termos do vestir é a roupa de segunda mão”, afirma Berlim. “As iniciativas em torno dos negócios, com aluguel de roupas, bazares de roupa de segunda mão, brechós, e outros negócios circulares […] são uma das iniciativas mais importantes no sentido de que mudam a prática e a percepção do que poderia ser lixo. Essas roupas, ao invés de sofrerem o “downside” – termo que significa ‘ir para o lixo’ –, voltam para a vida útil no mercado”, explica a pesquisadora.
O conceito de greenwashing, na pesquisa de doutorado realizada por Berlim, é o “ato de enganar consumidores apregoando as práticas ambientais de uma empresa ou os benefícios ambientais de um produto ou serviço”. A pesquisadora explica que sua tradução é a “lavagem verde”, quando uma empresa olha as tendências e faz um discurso ambiental sustentável, não baseado na realidade. “Às vezes ela [a empresa] tem só um produto ecológico, em uma cartela de 2.000 produtos”, conta a doutora.
Para Lilyan Berlim, o que o consumidor deve fazer nessas situações é averiguar a transparência de cada empresa, prestar atenção em como elas são e se mostram em seus sites e redes sociais, e procurar a verdade. Em sua pesquisa, mostra que a dificuldade em diferenciar o greenwashing de uma iniciativa autêntica está no fato de que o mercado de moda se consiste em uma oscilação entre a incorporação da sustentabilidade e a cooptação, com uma zona intermediária entre ser ou não ser uma empresa sustentável.