Por Lucas Piccolo, Gabriel Andrade e Yuri Ferreira
Peixe cru, batata doce e muito tempero. Esses ingredientes formam a base de um dos pratos mais famosos da gastronomia internacional: o ceviche. O prato é a maior especialidade da culinária peruana. Em Bauru, o restaurante Peru Tradición faz o ceviche pelas mãos de Amador Echevarría. Em meio a um cenário forte, com cores quentes e a essência do país exalando no ambiente, o cozinheiro aproveita os 45 anos de tradição da família Echevarría na culinária de Lima fazendo o clássico em sua comida. É claro que o ceviche não é idêntico ao do restaurante no Peru, até porque os produtos utilizados são diferentes, mas cada ingrediente é de suma importância na elaboração do prato. Limão, milho, cebola, leite, peixe, batata doce, alface e, é claro, o tempero (secreto) da família! A simplicidade faz com Amador produza um dos melhores ceviches de Bauru.
Comecemos contextualizando o local em que o restaurante está inserido. A cidade de Bauru é conhecida por sediar um dos campus da Faculdade de Odontologia da USP. Estrangeiros de todas as partes do mundo já visitaram o local para participar de eventos ou cursos. Dentre todos que por lá já passaram, a vinda da irmã da colombiana Judith Echevarría é fundamental para descobrirmos o porquê Amador Echevarría, peruano e dono do restaurante Peru Tradición, fincou suas botas na “cidade sem limites”.
Para conhecer melhor a história, falaremos sobre a família de Amador e qual é sua relação com a cidade de Bauru. Judith é sua esposa e o casal tem três filhos. Os dois se conheceram há mais de 20 anos atrás, na época em que ele trabalhava com marketing na capital colombiana: Bogotá. Com o passar do tempo, a cunhada de Amador decidiu se mudar para o Brasil. A médica adorou a cidade e logo se mudou para cá. Foi aí que as coisas começaram a acontecer.
“Ela virara para mim e falava: não tem restaurante peruano aqui em Bauru e a cidade é ótima para se viver. Aí que eu comecei a pensar na ideia de abrir o restaurante. Vim para Bauru uns dois anos atrás para conhecer melhor a cidade. Gostei e decidimos arriscar. Hoje, graças a Deus, as coisas estão começando a dar certo.”.
O restaurante é pacato. Em uma quarta fria e de pouco movimento a família Echevarría leva o cotidiano da casa normalmente, mesmo com o restaurante já aberto. As mesas e cadeiras ficam dispostas na garagem da casa de Amador. Bandeiras e objetos da cultura do país espalhadas por todo o salão. Ao fundo, música essencialmente peruana. O atendimento diferenciado é uma das marcas do Peru Tradición, que fica no Jardim Europa, bairro prioritariamente residencial, mas para Amador isso não é problema para os negócios. Durante nossa conversa, à mesa estavam Amador, Judith e Olívia. Esta última é a “mama” (mamãe) – como ele próprio cansou de dizer ao longo da noite – do cozinheiro. O restaurante acompanha a família há mais de 45 anos. Em Lima, capital peruana e terra natal de Amador, fica localizado em Santiago de Surco, distrito com descendência italiana. Região bastante conhecida pela marcante gastronomia e pela forte relação existente entre o cliente e o cozinheiro.
“É um povo muito pequeno. Quatro quadras, quatro quarteirões. Tem a igreja mais antiga da América do Sul, muita plantação de uva. É um bairro muito boêmio, muy antigo. Se você vai ao nosso restaurante, você precisa tomar vinho”, completa Amador, dando risada e concordando com a cabeça. “O pessoal sai de lá às três da manhã depois de tomar três, quatro, doze garrafas de vinho”.
Uma das maiores diferenças que a família sentiu foi justamente a questão da relação entre o cozinheiro e a clientela. “No Peru, a elaboração da comida é uma festa. A gastronomia é a fusão de todos os costumes e raças de todos no Peru”, diz o chef. Isso tudo foi uma inspiração a mais para cozinhar para um mercado que não conhece muito a culinária do país de Machu Picchu.
“Aqui em Bauru eu penso que é um mercado mais interessante. São Paulo é bom, mas já existem muitos outros restaurantes, desde os mais baratos até os mais caros. Então, aqui em Bauru é bom para nós, porque somos os primeiros”, completa Amador, arrastando o indicador no polegar (indicando dinheiro) e brincando logo em sequência: “Quem pega primeiro, pega duas vezes.”, diz Amador em tom bem humorado.
Ainda dentro do assunto, Judith comparou as culinárias de Brasil e Colômbia – sua terra natal. “Eu sou de Barranquilla, cidade da Shakira (risos), e lá a comida é parecida com a do Brasil, é mais leve. No Peru, não. O que predomina é o tempero de cada pessoa”, completa a esposa do chef.
Aproveitando esse gancho, Amador lembra de um dos melhores pratos do restaurante da família lá no Peru: o anticucho, uma espécie de espetinho de coração de boi. “Eu acredito que o melhor anticucho de Lima é do Surco Tradición. A minha mãe já deu entrevista na rádio, principalmente pelo tempero”, fala Amador, enquanto dona Olívia mostra como ela faz o corte das carnes, deixando quase tudo sem gordura.
Cerca de 258 milhões de pessoas se mudaram de país no ano passado. Guerra civil, crise econômica, questões políticas, perseguições religiosas: uma série de fatores levam à imigração. Amador não conta exatamente porque saiu do Peru. Parece ter vindo pelo anseio de começar algo novo, de explorar outras fronteiras. Nenhuma novidade pra ele. Formado em Publicidade e Propaganda, já explorou boa parte da América do Sul tirando fotos para um projeto humanitário alemão. A posterior especialização em marketing dá suporte para o seu negócio crescer. E acredita. Diz com brilho nos olhos que quando o Peru Tradición for conhecido o suficiente quer mudar o restaurante do aconchegante quintal da sua casa para um local maior e mais movimentado.
Caso siga a receita da família no negócio gastronômico, tudo vai dar certo. Judith fala com orgulho sobre o Surco Tradición (restaurante da família em Lima): “as pessoas demoravam uma hora, uma hora e meia na fila e os outros restaurantes estavam vazios”. Seis meses após abrirem o restaurante no Brasil, ainda lidam com a falta de movimento. Estranham o contraste entre as noites vazias dos dias úteis e o movimento intenso no fim de semana.
A família faz parte de uma nova etapa do fluxo migratório ao Brasil. Especialistas atestam uma crescente presença de imigrantes empreendedores. Ainda assim, conforme o Observatório das Imigrações em São Paulo, a maior parte dos peruanos que moram no estado são profissionais das ciências e das artes, sendo a maioria destes, médicos clínicos.
Receita do Ceviche:
A classe médica, inclusive, compõe uma boa parte da clientela do Peru Tradición. Amador já tinha conhecidos médicos em Bauru, que foram indicando o restaurante uns pros outros, tudo na base do “boca-a-boca”. Ele não acredita na experiência gastronômica por si só. “você vai no restaurante e nem sabe quem é o dono, quem fez a sua comida…”. Ele cozinha e sua mulher faz o atendimento, mas o cozinheiro faz questão de sempre ir até a mesa e trocar ideias com os clientes ao final da experiência. “Nossa política de trabalho é assim, quero saber se você gosta porque eu quero conhecer quem é você. Só os detalhes permitem que um negócio de comida perdure por muito tempo. No Surco Tradición nós temos clientes de várias gerações da mesma família”.
Amador preza por uma experiência personalizada. Enquanto se prepara para cozinhar um ceviche, nos pergunta se gostamos mais apimentado e se queremos incluir cebolas em nosso prato. Quer construir uma relação informal e pessoal com os fregueses, como conta no caso em que mandou uma mensagem via Whatsapp para um cliente dizendo que estava com saudade e perguntando quando voltaria – a pessoa visitou o restaurante pouco tempo depois.
“Muitas pessoas só conheciam o ceviche”, diz Amador. Ele pretende apresentar outros pratos do Peru ao brasileiro, como o Lomo Saltado e o Tiradito. Mas apesar da população de 4875 peruanos no estado de São Paulo¹, o público-alvo do restaurante é o brasileiro, conforme o Censo 2010 do IBGE. “Nosso público-meta é o brasileiro, porque não conseguimos trazer todos os ingredientes do Peru. Trabalhamos com ingredientes brasileiros, os sabores são diferentes. Um peruano vai experimentar aqui e não é igual (ao Peru)”.
Amador, aliás, se indigna com o que chama de falta de consciência política do brasileiro: “Penso que o povo brasileiro não tem muita consciência política. Percebi essa situação na greve dos caminhoneiros: um quilo de batata custava R$ 8, mas as pessoas compravam. Não existe uma consciência de que não tem que ser assim. De que esse dinheiro não está sendo repassado ao produtor, mas sim ao supermercado, que está se aproveitando da situação”. Segundo ele, no Peru existe um sentimento diferente em relação à unidade do povo frente à estas questões. “No Peru, nesse sentido, somos mais unidos. A greve não passaria de dois dias. As pessoas têm que buscar outras alternativas, ainda que não sejam afetados diretamente pela situação”.
Quando perguntado sobre as eleições presidenciais no Brasil, Amador e Judith respondem: só conhecem Lula. Foi durante o seu governo, em 2009, que se implementou o Acordo Sobre Residência Para Nacionais dos Estados Partes do Mercosul. O documento facilita a regulamentação para imigrantes peruanos, por exemplo, viverem e trabalharem no Brasil. Nove anos depois o mundo parece menos convidativo aos imigrantes: o senador Romero Jucá apresentou projeto de lei tentando limitar a entrada de venezuelanos em Roraima. Donald Trump tenta consolidar suas políticas anti-imigração nos Estados Unidos. A Europa vive uma grande onda de xenofobia com a ascensão de partidos da extrema direita como o AfD (Alternativa para a Alemanha, em tradução livre), na Alemanha, e a Frente Nacional, na França, blocos com pautas super-protecionistas. Mas Amador e Judith não têm medo e se sentem à vontade fora de seus países de origem. “Na verdade estamos bem, nos adaptamos muito mais rápido do que a gente pensava. O acolhimento do brasileiro foi muito bom. Falamos em um começo, gostamos de Bauru”, conta Judith.
A escolha da cidade interiorana ocorreu, principalmente, pela possibilidade de criar os filhos de forma mais tranquila. Atualmente o Brasil vive um processo de capilarização migratória, os imigrantes estão procurando o interior: 61% das cidades brasileiras registram pelo menos um imigrante internacional, segundo estudos conduzidos na Unicamp. No ano de 2016, 580 dos 645 municípios do estado de São Paulo registravam a presença de imigrantes.
Amador ressalta a todo momento durante a conversa sua escolha por um tratamento particular e individualizado para cada cliente em seu restaurante. A experiência de pertencer a uma família que toca há quase cinco décadas um negócio na área faz com que ele pareça um veterano, e de fato é, apesar de seu pequeno restaurante ter pouco mais de seis meses de existência.
Olivia veio ao Brasil passar férias e visitar os netos, mas também ver como estava tudo no restaurante do filho. Fundadora do Surco Tradición, a mama anseia que o irmão mais novo e brasileiro do restaurante que ela criou na década de 70 prospere e cresça logo.
Mudar-se para um país almejando sucesso profissional e financeiro é uma narrativa mais do que recorrente quando se fala de imigração. No entanto, muitos alcançam esse objetivo a partir de planos focados em suas próprias comunidades, sem de fato abrir-se para uma relação mais profunda com seu novo país e com os nativos. Esse é o desafio dos Echevarría, construir pontes em um dos momentos que mais se constroem muros na história.
A criação de um ambiente receptivo e harmonizado para a recepção de imigrantes de países que não fazem parte do eixo rico e desenvolvido se faz necessária a cada dia. A cozinha é uma ferramenta elementar de promoção das interações sociais e se a frase “pego pelo estômago” costumava definir uma relação afetiva que teve a culinária como motivação, que seja para significar um ponto de mudança nas relações migratórias.