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Por Dandara Adrien Aveiro
A pressão social ainda é um dos principais problemas na vida das mulheres e na
tomada de decisão sobre seus corpos
IMAGEM: emtempo
Já começo este texto com uma linha fina de impacto. Você é capaz de traduzir? A frase que sucede o título, cheia de letras e símbolos confusos, foi escrita por uma criança de 2 anos e 5 meses; meu filho. Claro, é algo que não tem tradução, mas tem muito significado. Estar aqui hoje, deixando um filho, fruto de uma gravidez não planejada, participar da minha rotina acadêmica, é um grande avanço para uma mulher que não queria ser mãe. E ele está aqui, ao meu lado, brincando e por vezes batendo a mão no teclado, enquanto tento elaborar nos meus pensamentos a melhor forma de falar sobre maternidade; ou melhor dizendo, sobre a “não-maternidade”. Isso porque não se trata só de ser, é também sobre não ser, já que esse desejo (ou talvez a falta dele) é real e merece ser discutido. Mas adianto: essa é uma escolha que não nos torna “menos mulheres”, nos torna “apenas” donas de nossos próprios corpos e de nossas próprias decisões.
Quando uma menina, em sua infância, brinca com uma boneca, enxerga-se uma pessoa treinando para ser mãe. Quando uma jovem tem a primeira menstruação, vê-se nela um ciclo reprodutivo que a prepara para uma gestação. Quando uma adolescente tem o seu primeiro relacionamento, imagina-se sexo que gera filhos. Quando uma moça se casa, deseja-se logo uma gravidez no conceito mais tradicional de família. Quando uma mulher (cisgênero) existe como mulher, espera-se que ela exerça o seu instinto maternal em algum momento da vida. A sociedade sempre nos impõe padrões de comportamentos, em especial ligados à maternidade, que, caso não sejam seguidos, geram estranhamento, desconforto e muitas vezes revolta. Mas afinal, o instinto materno existe e o que isso significa?
Segundo estudos antropológicos da pesquisadora Sarah Blaffer Hrdy, a fêmea possui um instinto biológico a partir de hormônios formados no período da gestação, que responde a estímulos não programados da mãe para sua cria. Mas isso não é o mesmo que dizer que ao dar à luz a mãe está pronta para cuidar de seu filho ou que essa reação biológica está baseada no amor incondicional. Isso se trata de genética: as fêmeas geram e tentam oferecer condições adequadas de crescimento e desenvolvimento para que seus filhos tenham a capacidade de seguir sozinhos. Mas nem toda mulher quer de fato ser mãe. Nem toda mulher nasceu de fato para ser mãe. Nem toda mulher de fato se torna mãe.
O homo sapiens sapiens é o único animal que mantém relações familiares tão profundas. Certa vez perguntei a uma amiga psicóloga, Carolina Idaló, o que ela pensava sobre essa relação familiar tão arraigada entre os seres humanos e esse instinto maternal que muitos afirmam existir. A resposta foi simples, porém certeira: “a maternidade é uma construção social e cultural, logo o instinto materno não é algo inato e inerente. Algumas mulheres têm facilidade para tomar decisões mais conectadas com sua realidade de ter ou não filhos, tornando-se, portanto, uma decisão individual, pois a mulher tem o direito de não se identificar com a possível maternidade”. Esse pensamento nos leva a crer que o instinto materno só é adquirido pela mulher após o nascimento do filho, antes disso não há qualquer vocação enraizada no gênero feminino para se tornar mãe. Por isso que muitas mulheres escolhem a maternidade por puro desejo e vontade, enquanto outras, por serem levadas pela situação em que a sociedade exerce sobre elas.
Mas se faz necessário ressaltar que, junto com a onda de empoderamento feminino e do movimento em prol da liberdade de escolha (o que é bastante vantajoso, diga-se de passagem), cresceu o número de mulheres que decidiram não ter filhos. A cobrança social ainda é grande, mas de acordo com dados do IBGE, 14% das mulheres brasileiras não planejam ser mães, e o Censo mostra que o número médio de filhos nos últimos 50 anos caiu de 6,1 para 1,9.
A desconstrução da imagem de mulher frágil, dona de casa, que cuida do lar, dos filhos e do marido, foi fundamental para que nos tempos atuais pudéssemos ter a liberdade de escolher ser ou não mães. E isso se deve a movimentos feministas, mulheres que fizeram revolução, processos históricos, e por aí vai. Outro fator que contribuiu para essa escolha foi a ampliação da mulher no mercado de trabalho e sua vontade em construir um futuro de sucesso e realizar seus objetivos sem dependências maternas. Claro que, mulheres-mães conseguem realizar tais conquistas profissionais; mas sabemos pelo óbvio que o caminho para isso se torna mais complicado e muitas vezes mais cansativo, principalmente para aquelas que não têm estrutura financeira e familiar amplamente estabelecidas. Além do que, saber que alguém dependerá de você até conseguir seguir o próprio caminho ou que sempre, por toda a vida, existirá uma ou mais pessoas, corpo do seu corpo, sangue do seu sangue, que eternamente serão o motivo de suas noites mal dormidas e a razão de suas preocupações e decisões diárias, é muitas vezes assustador. Como agir? O que fazer? Como educar da melhor forma? Essas e outras tantas perguntas causam certa ansiedade e também servem de motivo para o crescimento das “NoMo”, sigla em inglês para “No-Mothers” (em português: Não-Mães).
Esse termo foi criado por mulheres inglesas que fazem parte de um grupo de voluntárias em diversos assuntos e questões no Reino Unido. Basicamente, a sigla busca conscientizar as pessoas de que a maternidade não é o caminho exclusivo para a felicidade. Trata-se, portanto, de um grupo feminino que reagiu contra uma sociedade machista, cujo discurso é majoritariamente contrário ao que dá voz e poder às mulheres. Mas não entenda a decisão de não ser mãe apenas como uma provocação ao patriarcado. Como já disse, os motivos são vários, mas, essencialmente, a capacidade de decidir e agir por si. E foi este o caso dessa aprendiz a jornalista que vos fala. Mesmo assim cá estou, meu caro leitor e minha cara leitora, seguindo na busca do meu “instinto biológico” e tentando aprender dia após dia como é ser mãe.
Encontrei em um grupo do Facebook, exclusivo para mulheres, uma moça que dizia ter a certeza de não querer a maternidade para sua vida. Camila Tramontina, 23 anos, estudante de direito, me afirmou que não sente vontade de viver o período materno e que, com isso, recebe uma chuva de comentários inconvenientes acerca de sua escolha. Conversando com a jovem sobre o assunto, ela me revelou que as pessoas a sua volta comentam que “uma hora ela vai mudar de ideia” ou que “ela precisa de um filho pra ter quem cuidar dela na velhice” e nas palavras da estudante, “a pressão social em cima da mulher, nesse aspecto, é pesadíssima, porque a sociedade ainda não se acostumou que a mulher é muito mais que um ser reprodutor, como se toda a responsabilidade do futuro do mundo caísse sobre o fato da mulher ter filhos ou não”. E ela continua: “e o pior são as perguntas do tipo ‘ah, mas e se seu marido quiser?’. Me choca! Como se a opinião dele contasse mais do que a minha”. Isso nos faz pensar em como a sociedade nos enxerga como um útero ambulante ou um ser existente para reproduzir a espécie, apenas.
Cuidar de um filho não é tarefa fácil, mesmo para as que desenvolvem esse papel com maestria. E este mundo violento e desordeiro como está, também aumenta a dificuldade e a angústia em se dar vida a um ser. Tudo isso traz reflexão às mulheres e as fazem pensar duas vezes se valeria a pena ou se elas estariam prontas para enfrentar tudo isso. Mas como as coisas para nós – em meio a uma sociedade que prioriza o homem – é sempre mais difícil, Camila ainda aborda uma questão complexa: a esterilização por meio de laqueadura. “É muito difícil conseguir ser esterilizada aqui no Brasil, é como se eles quisessem nos obrigar a ter filhos o tempo todo”, comenta a jovem. As vezes acho que a tal liberdade que a mulher conquistou ao longo dos anos, não passa de uma ilusão.
E quando a gravidez se torna real na vida de uma mulher de maneira não programada e até mesmo indesejada, entramos em um campo problemático que resulta, muitas vezes, numa questão bastante discutida e nada solucionada: o aborto e sua legalização. Nem todas as mulheres que passam por uma gravidez não planejada optam por interromper a gestação, porém muitas o fazem, de maneira clandestina e insegura. Conversando disso com Dryelle Cintra, advogada e minha amiga de muitos anos, ela me disse que “o aborto no ordenamento jurídico brasileiro é permitido em duas situações: em casos do risco de morte da gestante (logo opta-se pela preservação da vida da mulher em detrimento do feto), e gravidez resultante de estupro”. Estas são informações que muita gente já sabe. Mas o que alguns ainda têm dúvidas é como funciona o processo de aborto nesses casos, e ela explica: “primeiro acontece o relato circunstanciado do evento criminoso, realizado pela própria mulher; em seguida o médico emite um parecer técnico e a vítima recebe atenção de uma equipe multidisciplinar com opiniões registradas em documento escrito. Se todos estiverem de acordo, é lavrado um termo de aprovação do procedimento; depois, a mulher ou representante legal firma o termo de responsabilidade. E, por fim, realiza-se o termo de consentimento livre e esclarecido”. Parece fácil, e até seria se a justiça não fosse lenta e burocrática. É um processo que pode demorar mais que um período gestacional e geralmente causa ainda mais danos psicológicos a mulher. Reviver o trauma, tentar provar que uma situação horrível realmente aconteceu e ainda esperar por uma resposta da justiça… Muitas não aguentam a pressão e recorrem a ilegalidade.
Recentemente veio à público a triste história de uma garotinha de 10 anos, grávida em decorrência de um estupro cometido pelo próprio tio, na cidade de São Mateus, no Espírito Santo. Por decisão da justiça, a menina passou pelo procedimento para cessar a gravidez e a cirurgia foi um sucesso. Mas o que era para ter sido uma situação menos traumática do que já estava sendo, se tornou um pesadelo ainda maior na vida dessa criança. Grupos conservadores, com a ajuda de algumas figuras de extrema direita já conhecidas no cenário nacional, descobriram o local em que o aborto seria realizado e foram até à porta do hospital manifestar contrários à interrupção da gravidez. Além de todo o alvoroço causado, pessoas agrediram verbalmente a menina, acusando-a de assassinato; outros, nas redes sociais, alegavam que ela pode ter provocado o tio sexualmente e que se não contou a ninguém antes, é porque estava gostando da situação. Agora analisemos: trata-se de uma menina de 10 anos de idade, ameaçada, coagida, violentada, que, fisicamente falando, não teria capacidade de dar à luz e muito provavelmente o seu corpo e nem ao menos o feto resistiria a esta gravidez e que, psicologicamente, não teria estrutura emocional para lidar com todas estas questões traumáticas. Com isso vem a pergunta: que tipo de sociedade é esta em que vivemos que só estendeu à mão a esta menina para apontar os cinco dedos pra ela?
E não adianta ser contra ou dizer que “Deus não aceita”, pois esses pensamentos – certos ou errados – só machucaram ainda mais esta criança. Isso porque ela tinha a lei a seu favor, já que foi vítima de um estupro e a gestação colocaria em risco sua vida (como já mencionei anteriormente); mas e quando as mulheres não tem direito legal ao aborto? Não se tem noção exata dessa taxa, até porque é considerado crime no Brasil e posto em sigilo por quem o comete, mas tem-se uma noção de que os casos de abortos ilegais no país cresceu consideravelmente e, por consequência, o número de mortes também. Com a descriminalização, haveria, talvez, uma chance dos números de casos baixarem, visto que antes do procedimento, a mulher passaria por acompanhamento psicológico e assistencial, fazendo com que muitas pudessem desistir do processo (o que está acontecendo em países cujo aborto é legalizado).
E quando a mulher tem o filho, mas decide não ser mãe? Há um tempo atrás, vi uma matéria compartilhada nas minhas redes sociais sobre o caso de uma moça grávida que não se sentia preparada para assumir tal papel. Ela não recorreu ao aborto, mas decidiu entregar a criança recém-nascida para que outra pessoa mais capaz de fornecer os cuidados necessários ao bebê fosse a “nova mãe”. Alguns pontos são importantes ressaltar: 1º o bebê não tinha olhos, uma condição gestacional rara que acomete apenas três pessoas no mundo todo; 2º a decisão de dar a criança já havia sido tomada antes mesmo do parto, o que nos faz deduzir que a mãe biológica não tinha conhecimento de tal anomalia, já que, diferente de deformidades de membros ou cerebrais, esse tipo de descoberta (nos olhos) muitas vezes só é possível após o nascimento; 3° a moça foi criada num orfanato e muito provavelmente tem dificuldades financeiras, estruturais e psicológicas para criar um filho; e 4º muitos comentários dando pitaco na vida alheia, a maioria criticando, mas nenhum sobre o pai. Agora faça você as considerações que julgar necessárias; ou não faça.
É evidente que esta mulher foi julgada e “crucificada” pelos internautas mais conservadores. “É um monstro”; “isso não é ser mãe”; “ela irá pagar as contas com Deus”, “onde já se viu, filho é uma benção” etc. Mas ao tomar consciência de sua dificuldade, ela buscou alternativas para que seu filho, portador de uma deficiência física, recebesse a atenção que ela não sentiu capacidade de dar. Se aborta, está errado; se decide ter e dar, também está. O que a sociedade quer (mesmo que às vezes não diga abertamente) é que a mulher seja obrigada a arcar com as responsabilidades mesmo que para isso a criança pague com a infelicidade. Será que esses mesmos sujeitos julgadores oferecem ajuda a uma mãe e seu filho necessitados? E o pai que não entrou nessa história e nem ao menos foi citado ou criticado pelos formadores de opinião que vivem ditando regras enquanto estão sentados em suas cadeiras confortáveis em frente a telas virtuais?!
A verdade é que uma mulher que decide não ser mãe, não necessariamente tem um problema de saúde; não necessariamente não gosta de crianças; não necessariamente está perdendo o bom da vida; e principalmente, não necessariamente é da sua conta. A única coisa que é necessariamente relevante entender é que quando se trata da concepção de um bebê, biologicamente falando, precisa-se de uma mulher e também de um homem. E que isso fique muito claro. Então pense: esses mesmos julgamentos são voltados aos seres masculinos que não querem assumir ou objetivar a paternidade? Será que se o homem gestasse e parisse uma criança, o aborto já não seria legalizado? A conclusão que se tira disso é que a sociedade condena a mulher que não quer ter filhos, mas, ao mesmo tempo, tolera ou disfarça o fato do homem, que mesmo tendo filhos, escolhe não ser pai.
Enfim, não quero me estender mais do que já o fiz; me sinto revoltada e prejulgada o suficiente. Mas e vocês aí do outro lado, como se sentem diante de tudo isso? As perguntas que fiz ao longo de todo o texto são para gerar reflexão. É extremamente importante pensar que tudo o que envolve a maternidade, ou a falta dela, podem estar interligadas às questões que mencionei anteriormente. Isso gera revolta, medo, insegurança… Mas pode gerar também luta por igualdade e uma sociedade mais justa e menos julgadora, união entre as mulheres e a busca por alcançar os nossos objetivos em comum. O que queremos são direitos como cidadãs livres e o rompimento de certos tabus sociais, para que, finalmente, possamos ser mães, ou não ser, porque a escolha tem que ser nossa!