Por: Fellipe Gualberto
Em 2020 a pandemia do coronavírus jogou o mundo globalizado em meio a crises múltiplas e causou sequelas no capitalismo, na política e na sociedade como um todo. A queda do PIB mundial é esperada de 3.3% (a pior desde a crise de 29) e as emissões de carbono também diminuíram em 17%. Estes são apenas dois sinais que nem de longe estamos no mesmo mundo que vivíamos.
A vida em comunidade, que agora só é possível se estiver dentro dos parâmetros do “novo normal”, deixa óbvio que estamos estamos na borda de uma grande mudança e de eventos que mudam a sociedade e a arte para sempre.
Muito além de filmes de zumbis, que foram lançados aos montes durante os a década de 2010, desta vez o cinema mundial enfrenta uma pandemia de outro modo, no mundo real. A quarentena global fechou salas de cinema e com isso adiou o lançamento de centenas de filmes, sejam eles nacionais (A menina que matou os pais, No Gogó de Paulinho) ou internacionais (Mulan, Soul, Velozes e Furiosos 9, Duna, etc…), ao mesmo tempo as assinaturas em serviços de streaming cresceram durante esse período. A animação Trolls 2, que estava prevista para estreia no cinema, foi lançada diretamente na plataforma online de sua produtora, outras obras também estudam fazer o mesmo.
Para evitar aglomerações o BIFF foi realizado online este ano, é a primeira vez que um festival ocorre desta maneira no Brasil. Anna Karina de Carvalho, diretora e co-fundadora do evento desde sua primeira edição, conta que no início os organizadores não queriam realizar o evento virtualmente, mas esta foi a única maneira de não cancelá-lo: “Já que fomos um dos primeiros do mundo, tivemos que entender como fazer as negociações com os realizadores, autorizações dos filmes, realização anti pirataria e como selar parcerias que dessem garantia”.
“O BIFF não só vai causar, como já causou impacto. O Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que é o mais importante do Brasil, vai acontecer online e vários outros já estão se preparando” a organizadora relata. Anna também ajudou o Fórum dos Festivais a preparar uma plataforma para que todos os eventos deste tipo que seriam realizados no segundo semestre aconteçam virtualmente.
A acessibilidade trazida pelos festivais online é um ponto positivo que o público ressalta, o BIFF teve 50 mil acessos em sua versão online, algo que seria impossível presencialmente. Raphael Santos é crítico de cinema há 15 anos, trabalha no jornal O Povo e tem um canal no youtube, o cinéfilo celebra: “Tenho minha credibilidade construída, mas não tenho condições de ir para Veneza, Cannes, Portugal, sem que haja convite e financiamento, agora posso viver um festival de casa. Espero dos festivais que, mesmo que não seja por completo, nos dê o prazer de ter uma experiência online”.
Edu Felistoque é diretor de cinema e sócio diretor dos estúdios Felistoque e BSB, sendo que este último participou do BIFF com o filme Cano Serrado. O cineasta fala suas impressões sobre o festival: “Foi bem interessante, mas claro, nada se compara com a experiência presencial, onde é possível interagir com as pessoas nos debates, nas salas, nos corredores, nos bares”.
Anna Karina concorda e diz que o prejuízo da falta de feedback foi imensurável. Muito além da falta de toques, os festivais online também acabaram por favorecer a distribuição ilegal dos filmes. “Nem as plataformas de streamings estão preparadas para impedir a pirataria… Tivemos problemas com isso, após o festival pedimos para retirar do YouTube dezenas de links do filme”, complementa o diretor.
A premiação mais importante do cinema foi adiada do dia 28 de fevereiro de para 25 de abril, o período de inscrição também foi aumentado. Danilo Teixeira escreve para o site Termômetro Oscar, especializado em prever a premiação, ele fala sobre o simbolismo neste ato: “Ao mudar a data a Academia mostra o quanto a situação realmente pede atenção ao momento epidêmico e como os cinemas ainda não estão prontos para o retorno. Além disso, o cinema pede que o Oscar aconteça. É uma parte importante para a indústria”. Após a mudança outras premiações como Bafta e Cannes também ajustaram suas datas: “Não faz sentido entregar seus prêmios depois do Oscar, igual não faz sentido entregar muito antes”, Danilo complementa.
Devido a pandemia a Academia mudou sua regra e somente nessa temporada filmes que estrearam no streaming podem concorrer, outras premiações como BAFTA e Globo de Ouro também seguiram este padrão. Danilo comenta a decisão: “A situação pede que a Academia facilite a entrada do formato, mas não achamos que isso vá se repetir nos próximos anos. O streaming tem dado vida ao cinema nesta temporada, mas, provavelmente, quando tudo isso passar, os filmes exibidos nas salas de cinema voltarão com grande peso de valorização”.
O motivo do Oscar ser tão restritivo com o streaming está ligado com a forma como o mesmo é exibido. “Não diríamos que a Academia pense neles (filmes do streaming) como menos arte ou mais comercial. Tanto que a Netflix têm recebido diversas indicações e vitórias e, inclusive, fez muito sucesso com Roma que acabou levando 3 estatuetas.” alega Danilo.
Estreias de filmes da Netflix em cinemas ocorrem pois o regulamento do Oscar exige que os filmes que concorram em sua premiação sejam exibidos pelo menos duas semanas presencialmente, esta foi uma maneira que a gigante do streaming encontrou para entrar na disputa pelo prêmio. “O Oscar acaba se tornando um defensor do formato convencional, do filme sendo exibido nas telonas, é uma briga um pouco longe de acabar”, a quarentena pode ter feito a Academia dar o braço a torcer este ano, mas Danilo mostra como os dois lados estão longe de ceder: “A própria Netflix têm se mostrado muito firme em suas decisões, já tendo brigado com o Festival de Cannes por não acatar a regra de que o filme precise estrear na França depois de passar pelo festival”.
Há 25 anos no mercado, atuando como produtor, diretor e montador, Edu Felistoque sabe das dificuldades de se produzir cinema no Brasil, e ressalta como a pandemia tornou tudo ainda mais difícil: “Desde a compreensível falta de interesse dos patrocinadores em investir em audiovisual brasileiro até enfrentar os complicados protocolos bio sanitários para as filmagens”.
A quarentena pegou o diretor durante a segunda semana de filmagem de seu novo filme intitulado Amado, ele relata: “Precisei dispensar 80 pessoas que estavam trabalhando no filme, 50 enviei de volta pra São Paulo e para o Rio de Janeiro… Isso gera um prejuízo enorme na produção… E sem data pra voltar a filmar”.
As consequências da pandemia podem ir além e também retirar os já escassos investimentos em cinema nacional. “Já estávamos com sérios problemas com a Ancine ‘parada’, agora creio que os investidores vão preferir negociar filmes estrangeiros que são investimentos mais seguros”, Edu explica.
Confira também a matéria Festivais de cinema em meio à pandemia para obter uma contextualização geral e também panorama completo sobre a realização destes eventos em meio a quarentena.