Integrante do Soul Drag e futuro estudante de enfermagem conta sobre sua trajetória como Drag Queen
Por Nádia Linhares
Toca a sirene e todos vão para a frente do pequeno palco da Flex Club Bauru, é hora do show de abertura. Felipe era menor de idade, mas estava no meio da platéia, não muito na frente, porque tinha vergonha, mas longe o suficiente para poder ver o show, bem no meio. A música começa e as luzes acendem. Lanna’s Fashion aparece no palco sozinha, Drag Queen, dançava ao som de Work de J Zuart, depois entravam os Gogo Boys. Felipe saiu da boate maravilhado e pouco tempo depois, Bauru recebe uma nova Drag, Allyciah Müller.
“As pessoas conhecem mais a Allyciah do que o Felipe”, mas a Drag reflete bastante o homem que a interpreta. Felipe Augusto Barbosa é o nome por trás da Drag Queen. Bauruense de 24 anos, é filho da Marta e do André, e mora no bairro Bela Vista com a mãe, um cachorro e cinco gatos. Logo de cara se mostra como uma pessoa simpática e que gosta de conversar, ele monta sua história na mesa da cozinha para mim.
Tudo aconteceu na mesma época. Em 2012, quando ainda estava na escola, alguns amigos indicaram um grupo de dança formado por homens gays e pessoas transsexuais. Felipe está há 7 anos no grupo de Alex. Ele conta que o coreógrafo foi pioneiro em Bauru no modo gay de dançar. O gay style não era conhecido como hoje, com nomes como fame e vogue, Alex começou a dançar de salto alto e roupas mais coloridas e agarradas ao corpo.
Quatro meses depois de começar na dança, Felipe estreou como Drag Queen. A Flex Club Bauru abriu um concurso para fazer parte da casa como Drag e decidiu que iria participar. Porém, com 17 anos e sem emprego, não teria como bancar peruca, maquiagem e roupas. E foi por isso que conseguiu seu primeiro emprego em uma empresa de cobrança em Bauru. “Fiquei durante quatro anos, eu lembro que eu entrei em 15 de outubro e dia 22 foi o dia do concurso”, conta.
Allyciah não passou, mas continuou tentando. Participou de diversos concursos e viajou pelo interior do Estado de São Paulo, como em Assis, Macatuba e Marília. A partir disso, conheceu pessoas que trabalhavam no meio GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes), sigla usada antigamente no lugar de LGBTQ, e que Felipe ainda fala bastante. Recebeu a ajuda de Lanna’s Fashion no começo, de Lavínia, mulher trans de Lençóis Paulista, que a amadrinhou, e de Drags que já conheciam donos de boates e a indicavam, mas ressalta que fez seu nome “na raça”.
“Hoje as pessoas já me conhecem, se eu chegar no lugar como Felipe mesmo, em alguma balada GLS em Bauru, eles já sabem que sou eu” – Felipe Barbosa.
As referências para montar Allyciah partem de artistas transsexuais, como Nanny People e Rogéria. Ele admira muito suas carreiras e as dificuldades superadas pelas duas, considerando a época em que fizeram a carreira, e enxerga a arte Drag como uma homenagem às mulheres. “Você vê uma mulher com um cabelo muito bonito, você pega, uma cor de maquiagem, você pega uma maneira de se comportar, a gente pega um pouco e monta”, explica.
Assim como Felipe, sua personagem é uma drag dançarina. Ela faz dublagem e muito bate-cabelo, um movimento que ele tenta manter em seus shows por ser uma referência de quando começou. Mas, a apresentação não é só dança, a Drag tem um contato com o público que Felipe não tem quando desmontado, e é aí que entra seu lado brincalhão, que antes só os amigos e a família viam.
Uma apresentação que marcou para Felipe foi quando Allyciah entrou no seu mundo da dança no musical Kinky Boots, apresentado em 2015 para o espetáculo Eternos Musicais no Teatro Municipal. Como também era bailarino do Teatro, além de se apresentar como Drag, ele tinha mais duas apresentações na mesma noite, uma delas sendo a famosa Cell Block Tango, do musical Chicago (2002), mas só com dançarinos gays. “Eram duas coreografias para eu tirar tudo, eu enfiava a cara de baixo da torneira, era uma correria”, relembra.
A correria foi muito presente na carreira de Allyciah. Felipe conta que já aconteceu de sexta-feira trabalhar em Bauru, viajar de madrugada para Taboão da Serra para participar de uma competição de dança no sábado e domingo fazer um show em Cafelândia. Ele também é um dos dez integrantes do grupo Soul Drag. O grupo ficou famoso em Bauru e região, o que gerou oportunidades por todo o interior de São Paulo.
“Fazer o quê, eu amo essa correria, eu amo” – Felipe Barbosa
Com o Soul Drag, o trabalho de Drag Queen começou a ser mais valorizado na cidade. Antes, os salários eram muito abaixo do esperado e o grupo mudou um pouco o cenário ao exigir valores que condizem com a preparação do trabalho, levando em conta os gastos com a montagem da Drag, como perucas, maquiagem, roupas e saltos, o tempo gasto nessa preparação, ensaios, o nível da apresentação, etc. “Cansei de fazer evento sem cobrar porque eu amava fazer”, revela.
Para se montar para um show de madrugada, às 2:30, Felipe começa a se arrumar às 18:00. Ele precisa tirar todos os pelos do corpo e tampar as sobrancelhas antes de se maquiar por volta das 22:00 e vestir seu figurino. Uma vez, para um show sobre divas com o Soul Drag, Felipe teve que fazer luzes no próprio cabelo para ficar parecido com Miley Cyrus, já que não tinha uma peruca parecida com o cabelo da cantora.
No começo, as dificuldades eram outras. Felipe sempre morou com a mãe, mas começou a se montar sem ela saber. “Ele se vestia escondido, usava minhas roupas e eu nem percebia”, conta Marta. Ele levava as coisas em uma sacola para a casa de uma amiga, se montava lá e depois pegavam o ônibus para a boate e voltavam de madrugada pela linha noturna. Na maioria das vezes, ele tinha que se desmontar na casa da amiga antes de voltar para casa a pé.
Hoje, ela e o pai sabem tanto de sua sexualidade quanto da Drag. Felipe é muito próximo da mãe e sente que tem liberdade para conversar sobre qualquer assunto. Ela diz que, ao saber, “encarou numa boa” e percebe o quanto ele gosta de ser Drag Queen. “Quando ele chegava em casa, eu ria muito quando ele se desmontava, ele chegava cinco e meia da manhã, eu acordava e chorava de rir”, lembra com um sorriso no rosto.
Faz um tempo que Allyciah não sobe aos palcos, ele pretende voltar aos estudos e passar em um curso técnico de enfermagem, que sempre quis fazer, mas nunca teve a oportunidade. A escolha do curso vem do seu gosto por cuidar do outros. Marta conta que quando familiares foram hospitalizados, ele foi o primeiro a se disponibilizar a acompanhar, dormir no hospital e tomar conta. Ela acha que o curso combina com o filho, porque ele sempre foi assim, tanto com a família quanto com os amigos.
“Às vezes se eu demoro muito para chegar do serviço, ele já manda mensagem, às vezes ele exagera bastante, mas é uma pessoa muito carinhosa e atenciosa” – Marta Gonçalves.
Apesar de todas as dificuldades e aventuras que Felipe passou por causa de Allyciah, ele ama o que faz e tem certeza que não vai parar, enquanto der para conciliar , nem com a dança, nem com a Drag. Ele sabe porque já parou com os dois em alguns momentos da vida, mas sempre voltou. Não seria diferente nessa nova fase de sua vida.