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Holocausto Brasileiro: uma narrativa sobre violência, silenciamento e omissão

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Por Gabriela Ravazzi, Lara Pires e Rafael Guimarães.

O Movimento de Luta Antimanicomial no Brasil teve seu início no final da década de 1970 e contou com a mobilização de profissionais da saúde mental e dos familiares de pacientes portadores de doenças mentais. O movimento denunciou abusos cometidos em instituições psiquiátricas e a condição deprimente que viviam os pacientes, colocando em evidência a necessidade de uma reforma psiquiátrica no país. Com a intenção de extinguir os manicômios, a luta antimanicomial também procurava gerar um diálogo de conscientização com as instituições médicas e com os cidadãos ao elaborar um discurso humanista de que portadores de transtornos mentais não representam nenhuma ameaça ou risco ao círculo social.

Mas é décadas mais tarde, apenas em 2001, que é sancionada no Brasil a Lei Paulo Delgado (nº 10.216) que prevê o redirecionamento da assistência à saúde mental para tratamentos em serviços mais humanitários e menos invasivos, priorizando a reinserção na família, no trabalho e na comunidade – e não a internação compulsória e, muitas vezes, sem critério. Segundo o relatório Reforma Psiquiátrica e Política de Saúde Mental no Brasil (MS, 2005), o número de leitos reduziu de 75.514 em 1996 para 42.076 em 2005. O número de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) aumentou de 92 em 1996 para 689 em 2005. Mas, infelizmente, a história dos pacientes psiquiátricos no país é uma triste realidade de violência, silenciamento e omissão, tanto por parte do governo, como da sociedade em geral.

Um dos marcos para a reforma sanitária brasileira foi a visita do psiquiatra italiano Franco Basaglia, em 1979, ao Hospital Colônia de Barbacena (Minas Gerais). Basaglia lutava contra a desinstitucionalização de “hospitais” como o Colônia desde a década de 1960 e, na ocasião em que esteve no Brasil, afirmou à imprensa: “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em nenhum lugar do mundo, presenciei tragédia como esta”.

Basta dizer que os eletrochoques eram dados indiscriminadamente. Às vezes, a energia elétrica da cidade não era suficiente para aguentar a carga – Ronaldo Simões Coelho, médico e testemunha.

A jornalista mineira Daniela Arbex esmiuçou, em 2013, detalhes da rotina e das atrocidades cometidas no Colônia contadas por ex-funcionários e, pela primeira vez, por sobreviventes em seu livro Holocausto Brasileiro.

FOTO: Luiz Alfredo, Revista O Cruzeiro (1961)

A obra

Os recém-chegados à estação do Colônia eram levados para o setor de triagem. Lá, os novatos viam-se separados por sexo, idade e características físicas. Eram obrigados a entregar seus pertences, mesmo que dispusessem do mínimo, inclusive roupas e sapatos […] Os homens tinham ainda o cabelo raspado de maneira semelhante à dos prisioneiros de guerra.  (Livro Holocausto Brasileiro).

Fundado em 1903, o hospital ficou notoriamente conhecido pelo tratamento desumano que oferecia aos pacientes. Inicialmente com capacidade para 200 leitos, em 1961 já contava com cerca de cinco mil pacientes. Estima-se que cerca de 70% dos pacientes não possuíam nenhum quadro clínico que motivasse a internação: para o Colônia eram enviados pessoas “desagradáveis” como prostitutas, homossexuais, mendigos e outros grupos marginalizados pela sociedade na época. Um dos prontuários evidencia a internação, em 1911, de uma mulher “sempre calma e triste”.

Daquele momento em diante, elas deixavam de ser filhas, mães, esposas, irmãs. As que não podiam pegar pela internação, mais de 80%, eram consideradas indigentes. Nesta condição, viam-se despidas do passado, às vezes, até mesmo da própria identidade. Sem documentos, muitas pacientes do Colônia eram rebatizadas pelos funcionários. Perdiam o nome de nascimento, sua história original e sua referência, como se tivessem aparecido no mundo sem alguém que as parisse.  (Livro Holocausto Brasileiro).

Diversos crimes ocorreram no Colônia, dentre eles, a venda ilegal de corpos: entre 1969 e 1980, 1.857 corpos foram vendidos para 17 faculdades de medicina. Os pacientes, além de perderem sua dignidade em vida, eram humilhados e vendidos como indigentes:

Como a subnutrição, as péssimas condições de higiene e de atendimento provocaram mortes em massa no hospital, onde registros da própria entidade apontam dezesseis falecimentos por dia, em média, no período de maior lotação. A partir de 1960, a disponibilidade de cadáveres acabou alimentando uma macabra indústria de venda de corpos.  (…)
Quando os corpos começaram a não ter mais interesse para as faculdades de medicina, que ficaram abarrotadas de cadáveres, eles foram decompostos em ácido, na frente dos pacientes, dentro de tonéis que ficavam no pátio do Colônia. O objetivo era que as ossadas pudessem, então, ser comercializadas.  (Holocausto Brasileiro)

Conversamos com a jornalista Daniela Arbex sobre o processo de produção do livro e a dificuldade de abordar um tema tão delicado, Arbex acredita que “Lembrar dessa história que é tão dolorosa, que nos envergonha tanto, é uma obrigação para que a gente possa aprender com ela”. Confira:

[Jornalismo Especializado] Em 2011 você publicou a primeira matéria da série de reportagens sobre o Colônia. Como surgiu essa pauta e em qual momento você decidiu fazer dessas reportagens um livro?

[Daniela Arbex] Na verdade, essa pauta não surgiu. Fui eu que descobri através do material feito pelo fotógrafo Luiz Alfredo… quando eu tive acesso às fotos dele de 1970 eu fiquei muito impactada porque eu não consegui visualizar um hospital. E eu fiquei pensando ‘porque que na redação ninguém sabe nada sobre essa história?’ Eu tive acesso a essas imagens em 2009 e já trabalhava com essa temática desde os anos 2000. […] Não foi uma história que nasceu pronta, foi uma história que foi construída a partir desse viés. […] Inicialmente virou uma série de matérias mas a gente entendeu pela repetição, por tudo que envolvia essa história, pela grandeza da história que ela ficar retida nas páginas do jornal era injusto.

[Jornalismo Especializado] Diversas foram as tentativas de denunciar essa história, até mesmo durante os anos da reforma psiquiátrica. Porque essas tentativas não surtiram tanto efeito e porque o Holocausto teve mais impacto?

[Daniela Arbex] Naquele momento na década de setenta quando Luiz Alfredo entra e faz uma denúncia na revista O Cruzeiro houve um impacto muito grande, mas foi um impacto temporário, passageiro… e logo depois tivemos a ditadura. E depois veio o Hiram Firmino que fez a série de matérias Os Porões da Loucura que foi uma série importantíssima para aquele momento, corajosa, porque ele fez uma denúncia pública em plena ditadura ainda, em 1969, e as matérias dele ajudaram muito a mudança no modelo de atendimento dentro daquele local. Agora, porque o Holocausto teve tanto impacto em relação ao que foi feito anteriormente? Porque foi a primeira vez que os sobreviventes foram procurados. Foi a primeira vez que essas pessoas ganharam voz.

FOTO: Luiz Alfredo, Revista O Cruzeiro (1961)

[Jornalismo Especializado] É marcante saber que 70% dos pacientes internados não possuíam nenhum quadro clínico, evidenciando a falta de critério para internação. É possível dizer que, de certa forma, ocorreu em Barbacena uma limpeza social?

[Daniela Arbex] Eu acho que sim, porque na verdade acabou sendo um local que não foi construído para isso. Ele nasceu com a intenção de se tratar pessoas que sofriam de doenças nervosas e de doenças mentais, mas desde 1911, o primeiro relato já evidenciava uma superlotação, então ele é criado em 1903 e em 1911 já tem relato de superlotação, quer dizer, desde que surgiu já tinha uma finalidade deturpada. […] Ele acabou com esse papel de receber todas as pessoas segregadas, indesejáveis, que não se encaixavam em padrões sociais, que incomodavam outras com mais poderes, então ele acabou prestando a esse papel. Não nasceu pra isso, mas se tornou esse lugar porque tinha e ainda tem uma sociedade muito eugenista.

[Jornalismo Especializado] Qual história mais te marcou?

[Daniela Arbex] Cada uma com sua característica é muito chocante. Tem histórias muito fortes como a da Geralda e do João Bosco, mãe e filho que foram separados por esse lugar, se perderam um do outro e passaram 40 anos longe um do outro. Eles se reencontraram em 2013 pelo Corpo de Bombeiros de Minas Gerais que procurou a Geralda pra fazer um carinho no João Bosco, ele é bombeiro militar. Mas como é que você resgata 40 anos de ausência? Como é que você resgata pra uma mãe ela não ver o filho dar o primeiro passo, a primeira palavra, não cuidar dele, da febre dele… E como é que você resgata pra um filho quando ele cai, quando ele precisa de alguém e não tem esse colo de mãe? O tempo nunca vai resgatar essa ausência. Isso é só uma amostra do quanto esse hospital atravessou a vida de milhares de brasileiros, separando pessoas por conta de várias questões de preconceito, um tratamento que não era humanitário, então o resultado é esse, o abandono, a segregação… uma perda da história que a gente não consegue resgatar.

[Jornalismo Especializado] Qual o papel do jornalismo para trazer à tona assuntos como esse?

[Daniela Arbex] Eu acho que um dos papéis do jornalista é a construção da memória. Eu acho que é um papel muito importante. Acredito que esse resgate da memória é fundamental para a gente ver do quanto a gente foi capaz de maltratar.

FOTO: Luiz Alfredo, Revista O Cruzeiro (1961)

Jornalismo e denúncia

Holocausto Brasileiro não foi a primeira denúncia sobre os crimes cometidos em Barbacena. A revista O Cruzeiro já havia denunciado, em 1961, os absurdos que aconteciam no hospital com a matéria A sucursal do inferno, realizada pelo fotógrafo Luiz Alfredo e pelo repórter José Franco. Nas fotos de Luiz Alfredo os pacientes ainda estavam vestidos; já em 1979, sob as lentes de Napoleão Xavier, os pacientes estão nus. São imagens mais duras, indigestas. Se antes da ditadura, em 1961, as condições já eram precárias, em 1979 eram desumanas.

O escritor Guimarães Rosa também foi um dos protagonistas na denúncia contra o Colônia. O conto Sorôco, sua mãe e sua filha do livro Primeiras Estórias, publicado em 1962, narra a história de duas mulheres prestes a ir para o hospital: “Não era um vagão comum de passageiros […]. A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos. […] Ia servir para levar duas mulheres, para longe, para sempre”. O trem citado por Guimarães ficou conhecido como “trem de doido”: os pacientes que iam com destino a Barbacena nunca mais voltavam.

Em 1979, foi a vez do Estado de Minas fazer sua denúncia com Nos porões da loucura, do repórter Hiram Firmino e da fotógrafa Jane Faria. Ainda em 1979, Helvécio Ratton lançou o documentário Em nome da razão. Apesar das primeiras denúncias surtirem certo efeito, a situação começaria a mudar apenas em 1980 com o início da reforma psiquiátrica.

Muitas pessoas que entrevistei tinham apenas perdido a carteira com os documentos, outras foram pegas usando maconha e levadas para lá. O que me chocou foi a gratuidade, a falta de voz, a impotência diante do sistema. O fato de as pessoas terem sido presas sem terem cometido crime nenhum – Hiram Firmino

A psicóloga Bruna Gennaro afirma: “As mídias são uma ferramenta que tanto podem ser usadas para reforçar os preconceitos em relação ao louco e à loucura, como podem servir de instrumento para desconstrução das idéias equivocadas, que por anos cegaram os olhos das pessoas para as barbáries feitas contra pessoas em sofrimento mental.” Portanto, o questionamento nesta reportagem é justamente o papel que o jornalismo desempenhou – e ainda desempenha – para dar luz e voz a temas tão silenciados.

Fotojornalismo

O fotojornalismo teve papel imprescindível na história do Colônia. O fotógrafo Luiz Alfredo foi o primeiro a ter autorização para retratar os pacientes, no início da década de 1960, e ficou horrorizado. Em uma das passagens do livro Holocausto Brasileiro Luiz Alfredo conta que, ao voltar para a redação, desabafou: “Aquilo não é um incidente, mas um assassinato em massa”. Suas fotos também ilustram a narrativa de Arbex: ainda mais do que as palavras, as imagens chocam e provocam revolta. O fotógrafo, apenas com 21 anos na época, revelou que a reportagem repercutiu, mas não foi forte o suficiente para mudar a situação. “Tudo que não pode acontecer no mundo, aconteceu em Minas Gerais”, afirmou.

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FOTO: Luiz Alfredo, Revista O Cruzeiro (1961)

A história narrada por Daniela Arbex foi adaptada para o cinema: o documentário Holocausto Brasileiro, produzido pela HBO e Vagalume Filmes (2016), assim como o livro, destaca a necessidade da existência de um jornalismo investigativo que seja pautado na seriedade, nos dados, mas também na humanidade e a importância da preservação da memória. “Para que tenhamos um cuidado ético, integral e equânime para com as pessoas em sofrimento mental e suas famílias há  um longo caminho a percorrer,” explica a psicóloga Bruna. “Mas se os trabalhadores da saúde, os usuários dos serviços do SUS, as instituições de ensino e aqueles que estão na gestão caminharem juntos para a construção de uma sociedade que não precise de manicômios, será possível produzirmos uma outra maneira de cuidar daqueles que sofrem”, continua. Há ainda um grande caminho a ser percorrido até que os manicômios sejam apenas uma parte da história.

Redação

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