A falta de preservativos para mulheres lésbicas e bissexuais revela discriminação à homossexualidade feminina
Amanda Araujo, Clara Tadayozzi e Giovana Murça
Um pênis, uma vagina, penetração e ejaculação. Resumidamente é assim que se aprende na escola o significado de sexo. Nas aulas de educação sexual, é ensinado como se coloca um preservativo masculino, mas, na maioria das escolas, não se aborda a relação sexual entre duas mulheres, ou o que pode gerar mais prazer a elas, ou então como elas podem se proteger nessas situações. Justamente porque elas não podem se proteger nessas situações.
Os métodos de proteção sexual foram exclusivamente pensados e desenvolvidos para atender ao sexo entre um homem e uma mulher, ou até entre dois homens, mas não entre duas mulheres. A invisibilidade já começa por aí.
O livro “A cabeça do brasileiro”, de Alberto Carlos Almeida, é resultado de uma pesquisa que pretende desvendar o perfil do cidadão brasileiro. Realizada em 2007 em 102 municípios, com participação de 2.363 entrevistados, a pesquisa revela que 88% das pessoas são contra a lesbiandade e bissexualidade de mulheres. Um dos reflexos dessa não-aceitação é essa invisibilidade de mulheres lésbicas e bissexuais, porque, além do machismo inerente à sociedade que as afeta por serem mulheres, existe a discriminação referente à sua orientação sexual, que não se enquadra na heterossexualidade concebida socialmente como norma cultural.
A invisibilidade se apresenta tanto na própria omissão da identidade por parte dessas mulheres, por terem receio de serem tratadas com discriminação; quanto na ausência de políticas públicas destinadas a suprir suas necessidades e garantir sua representatividade nos diversos âmbitos sociais. A maior forma de violência que essa população vivencia é a negligência aos seus direitos, que não são cumpridos ou sequer considerados.
Saúde para quem?
Em questão de saúde, a situação não é diferente. Mulheres lésbicas e bissexuais muitas vezes lidam com maus-tratos ao relatar a orientação sexual em consultas ginecológicas. Muitas delas têm o atendimento negado, ou deixam de receber informações relevantes para a sua saúde sexual, até por despreparo dos profissionais para esclarecer essas questões.
A psicóloga Luisa Aliboni revela que nunca passou por maus-tratos nas consultas, mas que já percebeu uma mudança de comportamento da médica ao revelar que era lésbica. “Ela passou a dar muito menos importância para o que eu estava dizendo e nem quis me dar exames de DST para fazer, porque, segundo ela, ‘eu não precisava’”, Luisa explica.
A técnica de enfermagem e militante pela causa, Ana Paula Oliveira, relatou também que em diversas consultas ginecológicas saiu sem respostas. Ela mencionou, ainda, a falta de recursos específicos a esse público para se proteger sexualmente e a falta de informações disponíveis sobre o assunto. “Realizei diversas tentativas de tentar adequar um método de proteção, mas nem sempre me senti protegida. Muitas vezes busquei informações e obtive pouquíssimas respostas. Na maioria das situações ouvi explicações não fundamentadas e que, em alguns casos, até banalizavam o sexo entre duas mulheres”, comenta.
Por conta dessas violações de direitos e discriminações sofridas, as mulheres tendem cada vez mais a omitir sua orientação sexual nas consultas médicas, o que contribui para manter essa posição de invisibilidade e para a falta de políticas públicas destinadas especificamente à sua saúde. O profissional da saúde, não sabendo a orientação sexual da paciente, não passa a assistência apropriada, e assim, essa demanda vai silenciosamente aumentando, sem a tomada de providências para atendê-la.
“Acho que a mudança tem que começar na formação dos profissionais da saúde, que precisam ter disciplinas que ensinem sobre a diversidade e como lidar com esses casos, além de obviamente não serem preconceituosos, porque acho que há muita falta de informação”, opina Luisa Aliboni.
De acordo com o estudo do Centro de Referências e Treinamento DST/Aids feito em 2012 pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, apenas 2% das lésbicas entrevistadas se previnem para evitar as doenças sexualmente transmissíveis. Isso decorre justamente da falta de informações oferecidas a essas mulheres, bem como da falta de métodos de proteção adequados especificamente ao sexo lésbico.
Para a empresária Hillary Lancaster, “os riscos existem e as mulheres precisam de formas de prevenção e cuidado sexual na vida com suas parceiras. A questão é que esse grupo sequer é pensado de fato, o que complica toda a ação que poderia existir e envolver as mulheres bissexuais e lésbicas”.
A ginecologista Laila Yamashita* afirma que os riscos da relação homossexual são muito semelhantes aos da relação heterossexual. Nos dois casos, o que transmite as doenças é a saliva, o sêmen ou secreção, e o sangue. Ela ainda adverte que os riscos do sexo lésbico podem ser maiores, pois “o diferente do sexo entre mulheres é que as duas menstruam”, então há um contato maior com o sangue, que é o principal vetor da maioria das doenças. Sendo assim, a doutora orienta que se evite o sexo durante a menstruação.
Diante dessas circunstâncias, como as mulheres lésbicas podem se proteger? Existem algumas recomendações disponíveis em sites de militância LGBT e em alguns poucos artigos científicos sobre o assunto. A invisibilidade lésbica é constatada até na ausência de pesquisas desenvolvidas sobre isso.
A sexóloga e psicanalista, Lelah Monteiro, reitera que esse tema ainda é muito novo em termos de estudo. Segundo ela, a sociologia encara a questão lésbica como se fosse isenta de sexualidade e transmissão de DSTs. “Como não temos o pênis e a vagina – o clássico, o sistema binário – a medicina ainda está muito crua para isso”, explica. Diante disso, ela acredita que há uma falta de entendimento por parte das pessoas, que acabam não se cuidando por acharem que o sexo lésbico é “um sexo sem sexo”.
Como não existem métodos de proteção destinados às mulheres lésbicas, os profissionais da saúde orientam alguns cuidados básicos. Dentre eles, está o uso de camisinha feminina, tanto para a penetração, quanto para o sexo oral; ou de camisinha masculina, que deve ser inserida no dedo ou no brinquedo erótico utilizado, ou cortada para o sexo oral.
A ginecologista Laila ressalta que, em relação a brinquedos eróticos, é recomendável que cada mulher tenha o seu, mas caso não haja essa possibilidade, é necessário higienizá-los antes e depois de usar, e trocar a camisinha quando for a vez da parceira.
Jessyca Aline, entregadora, comenta que mantém a sua proteção sexual fazendo consultas ginecológicas de seis em seis meses, assim como a analista de conteúdo Carolina Cachoni, que além disso, evita fazer sexo sem proteção com pessoas desconhecidas.
Existem também algumas “gambiarras” que podem ser utilizadas, como as “dedeiras” ou as luvas de látex, que podem ser encontradas em farmácias e até em algumas sex shops, com opções de textura para estimular o prazer. Além disso, há a opção das dental dams, que são barragens dentais de látex usadas no tratamento odontológico, mas podem ser utilizadas para a proteção no sexo oral.
As barragens dentais podem ser encontradas em lojas de materiais odontológicos, algumas farmácias, ou pela internet. Mas também é possível “produzir” em casa uma dental dam, com uma camisinha masculina. Veja como no infográfico abaixo.
É importante lembrar que tanto as dental dams compradas, quanto as feitas em casa, devem ser usadas apenas uma vez; depois disso, devem ser descartadas. Outro fator a ser considerado é que essas estratégias não garantem a proteção completa, já que são métodos improvisados.
Desvendando soluções
Como se pode observar, os meios de proteção para o sexo lésbico são de difícil acesso ou improvisáveis, o que só reafirma a necessidade de criação de métodos de proteção específicos para mulheres lésbicas.
Ademais, é imprescindível o desenvolvimento de campanhas de divulgação que revelem os riscos de contaminação na relação sexual entre duas mulheres. “A forma de trabalhar isso é trazer o tema, por meio do jornalismo, de rodas de conversa, trazer cada vez mais textos sem preconceitos, que tratem disso de uma forma aberta, e também com uma escuta receptiva e com acolhimento”, propõe a sexóloga Lelah.
Por serem pouco atrativas, ou difíceis de usar, as alternativas de proteção disponíveis não são consideradas convenientes por muitas mulheres, que preferem correr o risco de contaminação do que causar algum constrangimento à parceira. Luisa Aliboni considera importante haver proteção, porém nunca encontrou um método que, em sua opinião, não seja “bizarro e constrangedor”, e, por isso, não costuma usar. “Já deixei muitas vezes de me proteger por vergonha. E já me prejudiquei sim, peguei uma DST que foi difícil de tratar”, revela.
Para a ginecologista Laila, o que mais barra o desenvolvimento de novas pesquisas é o tabu que gira em torno dessa temática. Mas ela acredita que, com o empoderamento feminino e a busca das mulheres por novas coisas para melhorar a qualidade de vida, a tendência é ter cada vez mais estudos nesse sentido para desenvolver algum método para ajudar as mulheres.
*Registro de Qualificação de Especialista (RQE) – 39407