O Jornalismo é a carreira responsável por levar informações ao público e em sua utopia, é produzido de maneira horizontal, livre de conceitos pré-dispostos por parte de do jornalista de modo que isso não interfira na notícia – trazendo a pauta da maneira como os fatos as descrevem.
Em sua “perfeição”, a imparcialidade é o que guia as diretrizes deste campo, mas como Jornalismo se trata de um negócio – um ramo de mercado que deve, acima de tudo, fazer dinheiro para que se continue rentável – a profissão muitas vezes passa por cima desta diretriz, deixando se influenciar por razões editoriais e sobretudo econômicas.
Não há consenso sobre a origem do modelo de Jornalismo que conhecemos hoje, mas estima-se que ele tem como uma de suas raízes a Revolução Francesa, com panfletos e folhetins que tinham como função agitar a burguesia contra a monarquia. Uma origem que remonta os séculos e, por si só, nem chega a se encontrar com a ideia de imparcialidade e de “mostrar os dois lados”. Marcondes Filho, em seu livro “Comunicação e Jornalismo: A saga dos cães perdidos” traça o ano da Revolução Francesa, 1789, como o período de inauguração da primeira fase do Jornalismo.
Felipe Pena – jornalista, escritor e estudioso – em seu artigo “O Jornalismo Literário como gênero e conceito”, explica como este ramo do fazer jornalístico foge de alguns aspectos de sua corrente tradicional enquanto mantém outras:
“Não se trata apenas de fugir das amarras da redação ou de exercitar a veia literária em um livro-reportagem. O conceito é muito mais amplo. Significa potencializar os recursos do jornalismo, ultrapassar os limites dos acontecimentos cotidianos, proporcionar visões amplas da realidade, exercer plenamente a cidadania, romper as correntes burocráticas do lide, evitar os definidores primários e, principalmente, garantir perenidade e profundidade aos relatos. No dia seguinte, o texto deve servir para algo mais do que simplesmente embrulhar o peixe na feira.”
Também não há consenso sobre onde exatamente se inicia a prática do jornalismo literário, mas Truman Capote diz, com todo o seu ego, que o formato de “romance de não-ficção” se inicia com o lançamento do livro “A Sangue Frio”. Neste livro, o escritor conta a história do assassinato da família Clutter, crime que foi cometido por Perry Smith e Richard Hickock, numa pequena cidade no Kansas.
A obra tem todos os recursos do jornalismo literário: foge das amarras da redação, exercitando sua veia literária, potencializando os recursos jornalísticos de aprofundamento do tema e garantindo que a história seja lida de maneira diferente do jornal cotidiano, levando a pauta para adiante do tempo.
Capote apura os acontecimentos desde antes do crime, remonta o dia anterior da família que estava prestes a ser executada, retrata as relações entre os vizinhos da pequena cidade de Holcomb e se aprofunda na mente dos assassinos, em busca da motivação e do que em suas vidas os tornaram as pessoas que vieram a ser.
Uma outra característica jornalística que o livro apresenta, é a linguagem em terceira pessoa, um narrador onipresente e onisciente que não é personagem de sua própria narrativa. E é aqui que mora o dilema ético de “A Sangue Frio” – Truman Capote, na vida real, foi um personagem de muita influência no processo do julgamento da família Clutter.
O trabalho do livro se inicia quando Capote, jornalista já famoso que trabalhava para a revista The New Yorker, leu em uma das colunas do veículo que o empregava a notícia do assassinato de um fazendeiro e de sua família, e resolveu ir até Holcomb para acompanhar os desdobramentos do acontecimento. Em outras palavras, o escritor iria relatar como uma comunidade provinciana respondia a tamanha crueldade.
A influência de Truman nesta história pode ser vista de diversas maneiras, a começar pelo fato de que um grande escritor em uma cidade pequena para relatar um acontecimento que, por mais que de natureza extraordinária, é local. Depois, Capote foi uma espécie de confidente dos dois acusados durante os anos de processo, investigação e cárcere – o que resultou, nas linhas da obra, em descrições profundas do caráter, dos trejeitos, experiências, traumas, medos e sonhos dos assassinos.
Entre os guardas penitenciários que vigiavam os assassinos (que parecem ser mais protagonistas da obra do que as vítimas ou a comunidade de Holcomb), rolava uma “rádio-corredor” que dizia que Truman e Perry Smith mantinham um caso amoroso. Pode não ser verdade, mas tal boato por si só já demonstra uma constância das visitas e uma forte empatia entre jornalista e fonte.
Capote demorou mais de 6 anos para publicar a primeira versão de “A Sangue Frio”. Ele afirmava que não poderia concluir sem saber o final do julgamento, bem como o destino dos assassinos. Truman não poderia, oficialmente, assistir à execução dos criminosos (condenados à forca), mas sua relação com o escritor era tão importante para eles, que Perry e Dick o autorizaram como uma das três testemunhas que poderiam estar presentes durante seus enforcamentos.
Kenneth Tynan, um dos vários críticos a Truman na época, relatava que o escritor se esforçou com seu tempo, dinheiro e influência ao longo dos seis anos de trabalho, para provar a insanidade mental dos dois assassinos. Tal questão pode ser observada nas páginas do livro: durante o julgamento o juiz não autorizou que os psicólogos que analisaram os acusados entregassem os seus diagnósticos mais completos. Capote, por sua vez, colocou estas análises diretamente em seus escritos.
Um outro ponto que também pode ser analisado como resultado da aproximação entre jornalista e fonte – e uma clara tendência à tentativa de amortecer a culpa dos assassinos e talvez salvá-los da forca – pode ser lida nas descrições de Perry Smith como um rapaz sonhador e inocente, que devido aos cruéis acontecimentos da vida, deixou de ser o garoto inteligente com potencial para um criminoso.
Em uma outra polêmica que se deu ainda na época do lançamento de “A Sangue Frio”, eram discutidos os acontecimentos da noite do crime em Holcomb. O ponto era que as pessoas não conseguiam distinguir o que era jornalismo factual e o que era ficção nas descrições das cenas dos assassinatos. Diversas das pessoas que entraram no livro como personagens, contestavam a falta de exatidão nas descrições de Capote.
No artigo “In Cold Fact” (“A Fato Frio”), o autor Phillip K. Tompkins conclui que Truman Capote escreveu as suas próprias observações através das falas e dos pensamentos dos personagens, além de montar uma representação irreal e romantizada de Perry Smith.
Tamanhas críticas ao trabalho de Capote podem parecer cruéis, mas não tiram nem diminuem os méritos de “A Sangue Frio”. Durante todos os anos de reportagem, o escritor juntou um total de (segundo ele mesmo) 8 mil páginas entre as suas investigações e depoimentos dados à justiça. Todas as entrevistas feitas por ele durante o período foram feitas sem o uso de gravador, numa técnica observativa que fora treinada para ser mais exata possível.
Um dia antes de suas execuções, Richard Hickock e Perry Smith pediram para ver Truman Capote pela última vez. O escritor, emocionalmente abalado, recusou: “Truman respondia ‘eu não consigo fazer isso’. Estava às lágrimas boa parte do tempo. Não dormia”, relata o editor de Capote Joe Fox em seu livro de memórias. Truman assistiu ao enforcamento de Dick Hickock (o primeiro a ser executado), sob, segundo relatos, pressão de náuseas e vomitando muito. À execução de seu possível affair de acordo com boatos, o escritor não conseguiu assistir, e saiu da sala antes do enforcamento.
O que deve ser questionado na obra não é a sua qualidade nem influência (já que é impossível contestar o título do livro como um dos maiores trabalhos do jornalismo literário), mas a aproximação demasiada entre jornalista e fonte que gerou laços emocionais e pessoais, e direta ou indiretamente afetou as palavras escritas por Truman Capote.