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Entre regulamentações fundiárias e dificuldades com programas habitacionais, os moradores de Bauru passam por desafios na busca por uma casa própria 

TEXTO: DANIELE OLIMPIO E MATHEUS RODRIGO

Antes marcado apenas por barracas de tábua e um chão de terra que, em dias de chuva, transformava-se em um caótico lamaçal, e, atualmente, contando com o asfaltamento de três ruas – o restante permanece na antiga configuração -, uma quadra esportiva e uma praça, o bairro Jardim Nicéia, localizado no município de Bauru, no interior do estado de São Paulo, atravessa um novo período. Morador do local desde 2002, Fernando de Abreu observou grande parte desse processo de desenvolvimento. Entretanto, ainda hoje, acompanha notícias e frequenta reuniões com o poder público em busca de uma inédita perspectiva para a sua moradia: a regularização fundiária, divulgada em nota pela prefeitura – coordenada pelo político Clodoaldo Gazzetta (PSD) -, em abril de 2019, que está sendo pretendida para o espaço.

Em ritmo de indefinição, a medida, caso se concretize, seria um passo importante para Fernando, sua esposa e filhos – e mais 279 famílias, que, estimativamente, habitam o território. Na busca por uma maior segurança em relação aos direitos de seus lares, eles enxergam com preocupação a ausência de uma escritura de aspecto legal. Afinal, sem um documento que ateste para a posse de seus imóveis, anos de pagamento de impostos regulares podem se mostrar, de uma hora para outra, em vão. O caso do Jardim Nicéia é apenas um exemplo da instabilidade que cerca a busca por uma casa própria no Brasil.

Um problema nacional

Conforme aponta o estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) divulgado em 2019, que analisou o período de 2007 a 2017, o déficit habitacional no Brasil, isto é, a quantidade de pessoas sem moradias adequadas, é de 7,78 milhões. O número é um trágico representante da falta de acesso da população a um direito garantido pela Constituição Federal de 1988.

No capítulo 2, artigo 6 do documento, ficam estabelecidos os seguinte dizeres: “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Já em outro ponto, no artigo 23, firma-se como um dever da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico. 

Criado em 2009, durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva (PT), o programa habitacional Minha Casa, Minha Vida surgiu justamente com o propósito de oferecer soluções para o déficit habitacional. Contudo, apesar de incluir diversas modalidades de financiamentos acessíveis a uma faixa da população mais carente, a iniciativa coleciona críticas por alguns de seus mecanismos. Conforme aponta a secretária executiva do Ministério das Cidades Ermínia Maricato, em entrevista à BBC Brasil em 2018, a construção de imóveis fora dos grandes centros gerou um fenômeno. “As cidades explodiram horizontalmente, algo que todo urbanista condena, porque você tem de estender a rede de água, esgoto, de transporte. Quem paga por isso? Todos. E os que ganham são muito poucos: as empreiteiras, as incorporadoras imobiliárias e os donos de terrenos”, pontua.

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Unidades habitacionais entregues pelo Minha Casa Minha Vida (Foto: Bruno Peres/Min. Cidades/Fotos Públicas)

Em consequência desse afastamento das centros das cidades, as habitações desenvolvidas pelo projeto passaram a ser caracterizadas por insegurança e ausência de mobilidade. Afinal, em virtude de um menor policiamento em áreas afastadas, bem como falta de condições estruturais de transporte, a  rotina da população tornou-se precarizada. “O que acontece no fim de semana nos conjuntos habitacionais criados nessas áreas? O ônibus não vai, você tem um exílio”, ressalta Ermínia na reportagem da BBC.

Talvez como reflexo dessas condições, talvez por reflexo à crise econômica que atravessa o país nos últimos anos, o Minha Casa Minha Vida tem passado por uma vertiginosa queda de contratações de imóveis. Em 2013 foram contratadas 912.407 habitações e entregues 648.474 delas, enquanto que, no ano de 2018, as contratações caíram para 527.115 e as entregas para 163.647. De acordo com a diretora da Secretaria de Planejamento de Bauru Natasha Moinhos, no contexto da cidade, a iniciativa coleciona índices correspondentes a 60% de evasão em uma de suas modalidades, o faixa um (destinado às populações mais carentes). Ela destaca que esse comportamento ocorre, muitas vezes, em função da venda irregular dos imóveis ou de trocas realizadas pelos donos dos recintos por carros ou outras propriedades. 

Em meio ao centro-oeste paulista

Conforme indica o Relatório Brasileiro para a Habitat III, de 2016, organizado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em conjunto com o Ministério das Cidades, o Ministério das Relações Exteriores e a Secretaria de Relações Institucionais, a precariedade da habitação no Brasil leva à produção informal de moradias em terrenos fundiária e/ou urbanisticamente irregulares, sem infraestrutura nem serviços urbanos básicos (saneamento, energia elétrica, equipamentos de saúde e educação e transporte público), realidade recorrente em alguns bairros marginalizados de Bauru, como o Ferradura e o Jardim Niceia, mencionado no início desta matéria. 

Fernando de Abreu relata desafios do acesso à moradia em Bauru

Ambos, ocupados nas décadas de 1970 e 1990, comportam, atualmente, 1200 famílias, que aguardam há anos o processo de regularização dos lotes em que habitam. O processo, que consiste em um conjunto de determinações jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais para reconhecer a propriedade, permitiria-lhes obter a posse definitiva do local onde vivem por meio de documentos – e conforme apontam os moradores do bairro Jardim Niceia, consequentemente, uma maior atenção do poder público.

Divulgado em abril de 2019, o plano de regularização foi consolidado por meio do programa habitacional Casa & Cidadania, que pretende construir novas moradias e melhorar a qualidade urbanística de Bauru. Para isso, está projetado o desenvolvimento de 20 mil casas populares por diferentes regiões e a regularização de bairros – nas quais estariam inclusas as situações do Ferradura e Jardim Niceia.

O projeto encontra-se amparado pelo programa estadual, mantido por repasses da iniciativa habitacional, Cidade Legal, que auxilia municípios com o processo de regulamentação de territórios, desenvolvendo certidões, documentos e assistências técnicas. No caso do Ferradura, o Cidade Legal proporcionou o desenho da topografia  (descrição exata do terreno do bairro) por meio de recursos financeiros. Já no Jardim Nicéia, por mais que tenha sido vinculado ao bairro, o programa ainda não agiu de forma efetiva no processo de normalização da situação jurídica do território.

O caso Niceia

Embora os boatos de que uma possível regularização enfim ocorrerá no Jardim Niceia tenham ganhado força em 2019, Natasha Moinhos não garante que a medida sairá do papel. Cautelosa, ela explicita que o processo regulatório do bairro é muito mais complicado do que parece por envolver o imbróglio judicial entre os moradores, que deram entrada em pedidos por usucapião – direito que os habitantes podem exigir em decorrência da utilização do bem por um determinado tempo – e a reintegração de posse feita pela família Madureira, proprietária legal do território. “Temos que esperar a família repassar a área para a prefeitura, só assim o município será capaz de realizar a regularização para os moradores”, afirma. 

Diretora da SEPLAN, Natasha Moinhos, elucida alguns dos recentes desdobramentos da regularização

Esse clima de indefinição afeta as famílias moradoras da região, principalmente aquelas que a habitam desde as primeiras ocupações, como é o caso de Adauto Cândido, sua mulher e filhos. Considerado o líder do bairro por ter encabeçado, por anos, a presidência da Associação dos Moradores – cargo que pretende retomar ainda este ano-, ele é enfático ao afirmar que, durante os 27 anos em que mora no Niceia, ouviu os rumores da regularização mais de 15 vezes. Dessa vez, entretanto, está otimista. “Tivemos uma reunião com a Secretaria, e eles disseram que a prefeitura vai disponibilizar uma quantia de dinheiro para o bairro. Não é um valor muito alto, mas dá pra cobrir a quadra e construir um centro comunitário”, conta. 

De acordo com Relatório Brasileiro para a Habitat III, uma habitação para ser considerada adequada não depende apenas das características físicas da habitação, “mas também da garantia da segurança da posse e a disponibilidade de serviços, de infraestrutura e de equipamentos urbanos públicos; […] e a localização, que deve oferecer condições de desenvolvimento humano e adequação cultural”. Em consenso, a esperança de Adauto com a regularização fundiária é que, através do processo, seja possível obter melhorias estruturais e sociais para o bairro, que nem asfalto completo tem. “ O Governo não vai investir numa coisa que não tá garantida”, supõe ele. 

Adauto, morador do Jardim Niceia, comenta boatos sobre a regularização

Embora abandonado quando recebeu as primeiras ocupações, o Jardim Niceia logo começou a atrair olhares e a receber investimentos, isso, principalmente, por conta das famílias que se mudaram pra lá. Hoje, já se pode dizer que sua infraestrutura melhorou bastante, o que leva Adauto a crer que toda essa melhoria não será em vão. Já, Fernando, apesar de também ter essa visão otimista, reclama de como o processo de regularização tem sido conduzido, alegando falta de transparência do poder público. “As informações passadas para nós são distorcidas, só para criar uma expectativa na gente”, aponta.

Um desafio sem fim

Para os moradores do Jardim Nicéia, o acesso a moradia é um assunto que gera constante “dor de cabeça”. Sem posse de suas terras, eles são um dos exemplos do desafio habitacional que afeta milhões de brasileiros. Fernando não hesita em atribuir a culpa dos desafios da regularização do bairro e a sensação de indefinição à falta de comunicação e vontade do Governo da cidade. “A verdade é que eles não querem, eles estudam um meio de dificultar tudo para nós”, desabafa. Adauto, por sua vez, complementa, associando o problema ao poder público em geral. “Tem terra e não tem, o Estado não dá condições do ser humano ter uma vida decente e digna”, ressalta. 

Questionada, Natasha, por sua vez, se mostra na contramão das opiniões dos moradores, acreditando que a culpa do problema da falta de moradias em Bauru nada tem a ver com o Estado e políticas, mas sim com a cultura de se desejar ter uma casa própria. “O problema é a cultura do Brasil de acumular imóveis e de ter a posse definitiva deles”, salienta. Para a Diretora e arquiteta, o ideal seriam imóveis provisórios, garantidos temporariamente via aluguel. 

Natasha Moinhos aponta a cultura da casa própria como um problema nacional

Seja como for, entre diversos motivos alegados, a garantia à uma habitação de qualidade gera diversos debates. Entretanto, enquanto programas e iniciativas são desenvolvidos, aproximadamente, 280 famílias continuam à espera da posse definitiva de suas terras no bairro Jardim Niceia, ansiosos por melhorias estruturais, que possam ou não, ser geradas em decorrência da medida. 

Para desânimo de alguns deles, contudo, Natasha ressalta que, para a Secretaria de Planejamento, o bairro tem um nível satisfatório de infraestrutura, perto de outros territórios mais precários da cidade. “O Nicéia é ‘filé’ perto de outras situações de bairros na cidade”, brinca. Questionada a respeito de indicativos para a situação do bairro, ela aponta que não há previsão para a regularização definitiva. “Pode ser amanhã, ou daqui a dez anos”, sinaliza a Diretora, mostrando que, pelo visto, a situação do bairro Jardim Nicéia continuará sendo uma dor de cabeça para os seus moradores por um longo tempo.

Natasha define a situação da regularização no Jardim Niceia
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Redação

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