“O vento sacode as árvores, move os galhos, para que todas as folhas tenham o seu momento de ver o Sol”, lê de uma placa, em voz alta, uma garota de aproximadamente doze anos, enquanto seus dedos brincam com os botões do colete de salva-vidas. Aparentemente, não há uma ventania a caminho, mas será a primeira vez em que a aluna e seus colegas verão como ocorre o encontro entre o céu, o mangue, o oceano e as aves que habitam a hibridez de ecossistemas da região do Portinho, ponto turístico da cidade de Praia Grande e sede da Escola Ambiental, que oferecerá o passeio aos alunos.
Criada em 1996, a instituição permitiu que a cidade se adiantasse às decisões do país: aprovada em 1999, a Política Nacional de Educação Ambiental, ou Lei 9795, considera a conscientização ambiental como parte inerente ao processo educativo no ensino brasileiro.
Oito anos depois de sua criação, a Escola ainda é a única da costa litorânea paulista a oferecer aulas para uma rede pública de ensino.
“As atividades estão voltadas para a conscientização de que é preciso preservar o meio ambiente como um todo, mas a escola ambiental acaba sendo um espaço em que o aluno percebe que há riqueza no ambiente natural que rodeia a sua cidade”, explica Nadja Silva, professora de História que atualmente está desenvolvendo um mestrado sobre a instituição pela Universidade Católica de Santos.
Boa parte das atividades possuem uma carga horária que combina teoria e prática: os alunos recebem os professores nas suas escolas, obtêm as principais informações sobre a região e, na semana seguinte, visitam o Portinho, quando podem buscar os cenários dos slides, apresentados outrora. Algumas aulas, como a de observação dos pássaros, são na própria instituição, e as visitas de campo ocorrem no mesmo dia, como foi na tarde nublada da garota e dos seus colegas, da Escola Municipal Maria Silva Nilva.
Graziela Muller, professora de Ciências, acompanhava os alunos, e embora se dedique, há anos, à preservação dos ecossistemas da cidade, ela ainda olha para as singularidades do Portinho como se fossem segredos a serem desvendados pela primeira vez, encanto que procura passar para seus alunos. Ela lida, diariamente, com o conflito entre ensinar bons modos ambientais aos alunos e a concepção da falta de acesso a recursos básicos que muitos deles não possuem.
Galeria: O lixo também é indicador de contrastes
A poluição na cidade da Praia Grande não ocorre apenas em áreas vulneráveis. Condomínios não separam o lixo orgânico daquele que pode ser reaproveitado; praias são vítimas dos excessos do turismo e da especulação imobiliária.
A maioria dos pais dos seus alunos trabalha no lixão da cidade e na Coopervida, cooperativa de materiais recicláveis que é mantida pela Prefeitura. Ambas estão localizadas no bairro da Vila Sônia, região da escola municipal. “Eu já estou acostumada com a realidade do bairro e das famílias, mas eu constantemente fico chocada. Outro dia, uma aluna contou, toda feliz, sobre a linguiça encontrada pela avó no lixão, e de como aquilo foi a alegria da casa no dia”, conta a professora Graziela, às lágrimas.
O seu desafio é o mesmo enfrentado pelos professores da Escola Ambiental. Atualmente, a pedagoga Rejane Cortes Pinheiro e o biólogo Leonardo Casadei são os principais educadores do projeto, e acreditam que a conscientização do combate ao lixo é uma ferramenta social.
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Café no manguezal
As pedagogas comunitárias são as principais testemunhas diárias do Estado sobre o que ocorre na zona III da cidade. É a região que recebe, diariamente, dezenas de famílias, oriundas da capital e de outras cidades próximas, que invadem as regiões mais vulneráveis da cidade, no caso os manguezais. No primeiro semestre de 2014, foram registradas 409 notificações de combate a invasões em áreas públicas e de preservação ambiental.
Para uma das pedagogas que trabalham na escola da Vila Sônia, o aglomerado de casas, construídas em condições precárias, a pobreza e a violência das facções criminosas locais são os problemas sociais de um impacto ambiental irregular. A escola atende 1379 famílias, e muitas delas, segundo ela, estão à beira dos manguezais, em favelas que, informalmente, necessitam de autorização para que estranhos possam visitá-la. Geralmente, as pedagogas são bem-recebidas, já que são confundidas, muitas vezes, com a assistência social. “Além disso, eles veem que cuidamos das crianças, então ninguém vai mexer com quem permite que elas fiquem fora das brigas de rua, pois nem lá eles gostam disso”, ela comenta, a passos rápidos, que precisam desacelerar quando a pedagoga é “convidada para um café”, ou seja, quando precisa apresentar as pessoas que estão ao seu lado e que são estranhos à comunidade.
Para o secretário do Meio Ambiente Eduardo Rodrigues Xavier, a situação das regiões invadidas começaram a ser controladas: “O número de invasões reduziu bastante e eu entro tranquilamente em muitas localidades, pois as pessoas começaram a confiar no nosso trabalho”.Segundo ele, as reintegrações, quando ocorrem, são pacíficas.
Mas ele reconhece o problema das drogas na região da Vila Sônia e ao perceber, com a Prefeitura, como muitos catadores informais trabalhavam para sustentar o vício no crack, agilizou o processo de mudança da Coopervida, a cooperativa de materiais recicláveis da Praia Grande, para a região de Andaraguá, que não possui área urbana:
“Além de combatermos o consumo ao crack, começamos a organizar a forma como queremos combater a poluição, ao tirar um lixão de uma área que além de urbana, está muito próxima aos manguezais, já afetados pelos problemas de saneamento”, explica.
Durante as transformações urbanas da década de 90, zonas foram denominadas para separar, nas conversas informais do dia-a-dia, as demarcações sociais. Morar à praia passou a significar morar na zona I da Praia Grande. Os bairros localizados entre a avenida principal e a rodovia Expresso Sul estão na zona II, caso do Melvi. Já a região entre a rodovia e as encostas da Serra do Mar (com o manguezal no meio do caminho), é a zona III, caso da Vila Sônia. Essa área, inclusive, é a região que recebe, diariamente, dezenas de famílias, oriundas da capital e de outras cidades próximas, que invadem as regiões mais vulneráveis da cidade, no caso os manguezais. No primeiro semestre de 2014, foram registradas 409 notificações de combate a invasões em áreas públicas e de preservação ambiental.
A água do mar tem sabor de esgoto
Karla Marques Souza chefia o setor de Divisão de Controle, Normatização e Licenciamento Ambiental da Secretaria do Meio Ambiente. Segundo ela, a cidade já conseguiu boas pontuações no Projeto Verde Azul, incentivo nacional para que as cidades invistam no desenvolvimento sustentável da região. A pedra no sapato da Praia Grande ainda é o esgoto.
Os fios de água lodosa chamam atenção nas altas temporadas, quando a cidade lidera a lista das praias que não são recomendadas para banho. Mas ao contrário do que muita gente pensa, boa parte da água que vai ao mar é pluvial. Os focos isolados que causam mau cheiro são os esgotos clandestinos, compostos por 40% dos domicílios que não são beneficiados pelo tratamento de esgoto oferecido pela Sabesp à cidade.
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“Nossos vizinhos separam o lixo, os condomínios não”
Priscila Silva trabalha há três anos na Coopervida. Ela não sabe se a mudança para uma reunião distante da sua casa será ruim, mas confia na prefeitura “Se eles querem, deve ser porque vamos ter condições melhores pra trabalhar”, opina.
Segundo ela, a vantagem da localização atual da cooperativa é que os moradores possuem uma preocupação maior sobre o que deve ser reciclado. “Aqui eles veem que precisamos do trabalho e como isso afeta a qualidade de vida de todos. É diferente dos condomínios, que deve ser mais confuso para que as pessoas entendam, até que alguma lei seja aprovada”, explica.
Vanusa da Costa é a trabalhadora mais antiga da cooperativa, e é uma faz-tudo que se recusa à divisão de tarefas: “Somos pagos para serviços gerais, logo não entendo quem fica apenas no galpão, quando há serviço aqui fora”, reclama, enquanto separa o lixo desorganizado sob o sol escaldante. Também ao contrário das suas colegas, ela não se inibe quando questionada sobre o trabalho que a livrou da depressão: “Quando pude sair do lixão para esquecer meu marido, eu aproveitei. A Cooperativa foi essa oportunidade e catorze anos depois, sei que a vida melhorou, pois estou de dentes novos”, brinca.
Moradora da Vila Sônia, ela percebe como os moradores já estão acostumados a separar o lixo orgânico do reciclável. Mas para ela, a violência da região atrapalha o expediente:
“Espero que a mudança aconteça mesmo. Quanto mais longe, melhor, pois aqui sofremos com roubos e com os usuários de crack, que arranjam muita confusão, são violentos demais”, reclama. Sem medo, ela aponta um grupo de rapazes atrás da casa administrativa da cooperativa, enquanto uma moça entra, de repente, fazendo reclamações de modo ininteligível.
Segundo Raimundo Silva, atual presidente da cooperativa, cada um dos 27 funcionários recebe o que equivalente a um salário-mínimo, número que poderia ser maior caso a cooperativa possuísse mais máquinas. O secretário prometeu mais dois caminhões de coleta, além de mais uma prensa e uma máquina de corta-papéis.
Enquanto isso, o tempo, a violência e a falta de acesso a recursos básicos, como saneamento e asfalto, afasta os alunos dos slides montados pela professora Rejane. Algumas aves apresentadas resistem à poluição do mangue naquela região e são encontradas com frequência no bairro, mas para os alunos, tudo é desconhecido. É como se o mangue fosse um oásis em meio ao deserto do lixo.
Quando ela pergunta quem tinha ido ao manguezal do bairro ou quem morava mais próximo à área, nenhum dos quarenta alunos presentes levanta a mão. Ao perceber que o constrangimento de muitos alunos denuncia a mentira coletiva, a professora não perde tempo:
“Não tenham vergonha do lugar de vocês. Eu moro há trinta anos no bairro Melvi, e nunca tive medo de admitir isso”, repreende, em alusão à outra região pobre da cidade, também localizada próxima ao mangue. Ela conta que, na idade deles, observava as vizinhas mentirem para os colegas de classe sobre o bairro em que moravam, motivadas pelo medo de serem excluídas pelas filhas das regiões próximas à praia.
A vergonha ensina o adolescente a ser a visita da própria casa, como aconteceu com as amigas de Rejane, incapazes de olhar o extenso quintal do bairro como o caminho para o próximo Parque Estadual da Praia Grande: a Cachoeira Guariúma.
“Agora digo para todos que no final do meu bairro vamos ter uma trilha legal, e que vai atrair vários turistas. Se antes todos tinham vergonha, agora todos querem conhecer o Melvi”, conclui a professora.
“Ei, não esqueceu de ontem, né?”, a aluna da professora Graziela pergunta, enquanto os dedos brincam com os cachos molhados pelo recreio que foi invadido pela chuva. Ela queria as fotos, ou qualquer coisa que provasse que agora ela sabe o que acontece nos arredores do Mar Pequeno.