Por Bruna Hirano, Caroline Mazzer, Geizi Polito, Maria Beatriz dos Reis
Há algum tempo as pessoas com transtornos mentais não eram consideradas cidadãs de direito e, devido à isso, muitas vezes sofriam exclusão e eram submetidas a internação hospitalar. Atualmente a realidade é mais positiva: há leis e direitos para que essas pessoas sejam incluídas socialmente no mercado de trabalho. A mudança iniciou com a Lei de Cotas, nº 8.213/91, que garantiu direitos no mercado de trabalho para os doentes físicos e mentais e com a Lei da Reforma Psiquiátrica, nº 10.216 de 6 de abril de 2001, que instituiu um novo modelo de tratamento aos transtornos mentais no Brasil.
A luta Antimanicomial e as internações
Movimentos que pautavam a necessidade de reforma do sistema psiquiátrico, começaram a eclodir sobretudo na década de 1970, no pós segunda guerra mundial, em que passaram a se tornar públicas as atrocidades cometidas em diversos hospitais psiquiátricos em todo o mundo.
Um dos médicos pioneiros na luta contra o sistema manicomial foi o psiquiatra Franco Basaglia, de Veneza na Itália. Ele dirigiu o Hospital Psiquiátrico de Gorizia, durante os anos 1970, onde presenciou uma série de abusos e negligências com os enfermos. Por isso, ele promoveu, junto de outros psiquiatras, mudanças práticas e teóricas no tratamento de seus pacientes, que ficaram conhecidas como Psiquiatria Democrática, e incentivaram a luta antimanicomial.
No Brasil, a luta antimanicomial surgiu de forma parecida quando, também na década de 1970, muitos movimentos ligados à saúde denunciaram os abusos cometidos pelas instituições psiquiátricas. A partir daí, surgiram outros movimentos de profissionais da saúde mental por uma reforma psiquiátrica no país. Em 18 de maio de 1987, foi realizado um encontro dos grupos favoráveis a luta antimanicomial, que deram destaque à proposta de reformar o sistema psiquiátrico brasileiro. Por isso, até hoje, a data é conhecida como o dia da Luta Antimanicomial.
Raphael Bernardes* formado em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e com especialização em Ciências da Saúde explica que “dentro da saúde mental, as leis da reforma psiquiátrica impedem que as instituições desumanizem o paciente que está buscando um tratamento. Dessa forma, a visão que os profissionais deveriam ter sobre esses sujeitos é a mais humanizada possível, já que é em função disso que o movimento luta: conseguir humanizar o tratamento, o sujeito, a instituição, sensibilizar os familiares, que os próprios pacientes também consigam falar sobre o próprio tratamento, que não fique centralizado em uma visão médica ou muito técnica. O que se fala muito é sobre o cuidado de não cair na lógica do “manicômio/hospital psiquiátrico de portas abertas”.
Apesar da reforma psiquiátrica estar acontecendo e ter alcançado bons resultados, o psicólogo afirma que “a pessoa pode entrar e sair quando quiser, mas a lógica que se tem ali ainda seria de uma instituição psiquiátrica, como pode ser constatado através de algumas políticas existentes ainda hoje, como a internação involuntária (aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro), a internação compulsória (que é determinada pela Justiça), altos níveis de medicação a ponto de dopar o paciente e até pequenos hábitos que a equipe possa ter e que vão limitando a liberdade do sujeito”, conclui.
Quando se aborda o tema da luta antimanicomial, é imprescindível falar também sobre os motivos que levaram os profissionais da área da saúde a acharem que a internação seria uma forma positiva de tratamento. Victor Moretti é estudante de medicina da UNICAMP, e pesquisa sobre a luta antimanicomial. Ele explica que, com o desenvolvimento científico e a descoberta dos micro-organismos, os médicos passaram a adotar uma concepção puramente biológica sobre a saúde. “Difundiu-se a ideia de que as doenças mentais se resumiam a disfunções orgânicas, um mau funcionamento do cérebro. Desta forma, isolar o doente mental da sociedade traria benefícios, pois seria possível observar a loucura em seu estado mais puro, sem interferências do meio”, conta Victor.
O estudante aponta ainda que manter os pacientes reclusos nos hospitais poderia também auxiliar para que eles reorganizassem suas mentes: “supunha-se que o enclausuramento tinha também, por si só, um fim terapêutico, uma vez que os antigos manicômios se organizavam de modo hierárquico, regrado e disciplinar, servindo para reorganizar a mente dos pacientes que haviam ‘perdido a razão’”, explica.
Já Raphael Bernardes diz que “nas residências terapêuticas existem muitos casos de psicose em pessoas que possuem certo rompimento com a realidade o que pode causar delírios e alucinações. Por isso, nós precisamos considerar todo o processo histórico desses pacientes dentro das instituições e o quanto a loucura é um fenômeno social, ela faz parte de um processo de adoecimento social. Então, você internar alguém, tirar essa pessoa do contato com a sociedade e excluí-la desse contato, por si só já é adoecedor, já agrava os casos de diversos tipos de patologia”, afirma.
Inserção social dos pacientes
A partir da evolução dos estudos em psicologia e psiquiatria percebeu-se que a reclusão dos pacientes gerava efeitos negativos, já que afeta a capacidade de autonomia e pode gerar sentimentos de inferioridade. “Algumas experiências de desinstitucionalização mostram que os pacientes, após voltarem para o convívio em sociedade apresentaram um desenvolvimento muito significativo das habilidades diárias e sociais, além da melhora dos sintomas psiquiátricos. Essas experiências atestam assim as falhas do modelo manicomial na atenção à saúde mental, que não só se mostra ineficiente e, portanto, desnecessário, como, muitas vezes, prejudicial”, explica Victor Moretti.
Nesse sentido, em 2003, a Lei Federal nº 10.708 cria o “Programa de volta pra casa” com o intuito de facilitar a oferta de recursos assistenciais visando a reinserção social das pessoas que passaram por longas internações psiquiátricas.
Raphael Bernardes explica que algumas políticas de reinserção social, como o programa De Volta Para Casa, têm a recuperação dos estudos e outros dispositivos como estratégia. “O próprio acompanhante terapêutico tem como proposta a reinserção social do sujeito nos espaços urbanos, com passeios ao centro da cidade, museus, tudo isso com um vínculo terapêutico”, conclui.
Tratamentos alternativos
Atualmente, depois da Reforma Psiquiátrica uma das formas mais convencionais de tratamento dos transtornos psicológicos, é aliar o acompanhamento constante e a medicação. “Apesar de os medicamentos psiquiátricos serem de extrema importância, na grande maioria dos casos o tratamento psicológico é indispensável. Um bom atendimento à saúde mental deve obrigatoriamente ser feito de maneira multiprofissional, contando com médicos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros e psicólogos, além de técnicos e agentes comunitários de saúde”, explica Victor Moretti. Segundo ele, “a psicoterapia pode ajudar o paciente a identificar quando terá uma crise, como lidar com ela, ajudá-lo a desenvolver habilidades sociais, autocontrole, autoconhecimento, entre outras coisas indispensáveis para um bom prognóstico”.
Para casos mais graves, o uso de remédios se torna indispensável, porém, sua eficácia melhora quando acompanhada de outro recurso terapêutico. “Grupos de caminhada, grupo de dança, artesanato, aulas de artes e música, meditação, yôga e outros esportes são atividades de amplo potencial terapêutico, além da própria psicoterapia”, conclui. Por fim, Victor esclarece que, “a reinserção na comunidade também é um fator terapêutico importante, o trabalho, o estudo e a socialização são essenciais no desenvolvimento da autonomia e do potencial humano dos portadores de doenças mentais”.
As residências terapêuticas e os Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS) são outra alternativa de tratamentos para os transtornos psicológicos. Elas surgem como “serviços substitutivos de saúde da reforma psiquiátrica para dar conta de atender a parte da população que fazia uso dos hospitais psiquiátricos”, aponta o psicólogo Raphael Bernardes.
“Nas residências com as quais eu trabalhei em Bauru, estavam os pacientes que passaram por hospitais psiquiátricos da cidade e que não tinham mais vínculos familiares, em sua maioria idosos. As casas são próximas umas das outras e contam com um postinho de saúde para essas pessoas no mesmo bairro. Nesse postinho, elas têm acesso a enfermeiros, terapeutas ocupacionais e psicólogos que fazem parte da rede de saúde mental de Bauru”, conta.
Hoje as residências também recebem outros tipos de pacientes, não somente os que estavam nos hospitais psiquiátricos. Muitos desses novos pacientes possuem um vínculo fraco ou inexistente com a família e o trabalho da residência é sempre tentar resgatar esse laço familiar, porque a residência não é para ser algo permanente na vida dessas pessoas, é temporário, para que o sujeito consiga se reestruturar e seguir com sua vida.
O mercado de trabalho
Visto a importância da inclusão social das pessoas com transtornos mentais, outro aspecto importante é a retomada ou ingresso dessas pessoas ao mercado de trabalho. Historicamente, a primeira cooperativa de trabalho de pacientes psiquiátricos – Cooperativa dos Trabalhadores Unidos – foi criada em março de 1970, também por Franco Basaglia em Parma, na Itália, no âmbito de suas transformações como diretor do Hospital Psiquiátrico Provincial.
O trabalho neste caso foi visto como positivo, já que os pacientes começaram a receber um retorno financeiro em troca e, ao mesmo tempo, o trabalho também serviu como estratégia terapêutica na medida em que permitiu autonomia, reinserção e emancipação social dessas pessoas que começaram a se dedicar a limpeza não só do hospital, mas também de contratos externos. O psicólogo, Raphael Bernardes conta que ainda hoje, a exemplo dos primeiros hospitais que fizeram parte da reforma psiquiátrica “várias instituições que trabalham com saúde mental têm como política a reinserção social pelo mercado de trabalho e por isso incentivam os usuários a produzirem e venderem algumas coisas em oficinas”.
Já o estudante Victor Moretti (Unicamp), enfatiza a importância de se tomar cuidado para que este trabalho não acabe se tornando uma forma de exploração. “Inserir o doente mental no mercado de trabalho pode acarretar na exploração do trabalho assalariado, permitindo às empresas maiores lucros pagando menores salários a esses trabalhadores e, muitas vezes, descontos nos impostos”, pontua ele.
Lorivaldo Rodrigues de Oliveira, 43, recuperou-se com sucesso do transtorno bipolar desenvolvido pelo uso de álcool e drogas, a partir de tratamentos alternativos e de seu trabalho. Em outros tempos seu quadro clínico seria facilmente um motivo de encaminhamento aos antigos hospitais psiquiátricos e aos tratamentos abusivos. Porém há seis anos atrás, graças a reforma psiquiátrica, Lorivaldo passou por um tratamento em uma residência psiquiátrica por um curto período de duração que aliou o uso de medicamentos e outras atividades.
A parte mais importante do seu tratamento, segundo ele, aconteceu em seu dia-a-dia através do Grupo Terapêutico do município de Espírito Santo do Turvo. O grupo dá suporte aos pacientes que estão em tratamento psiquiátrico através de reuniões onde todos compartilham suas experiências e dificuldades buscando encontrar soluções conjuntas. “No grupo foi onde eu senti que precisava voltar a minha normal. É muito bom ter pessoas que vivem a mesma situação que você”, conta.
Depois de 3 anos em tratamento, Lorivaldo, que é funcionário público, voltou a trabalhar na Prefeitura Municipal em uma função readaptada e explica que o apoio foi essencial em seu processo de recuperação. “Voltei como agente de endemias e pra mim é muito bom ser útil para as pessoas. Com certeza, o trabalho foi o meu melhor tratamento”, enfatiza. Hoje, além de dedicar-se ao trabalho teve a restauração de seu amor próprio e deixa claro sua “vontade de melhorar a cada dia. Quero muito voltar a estudar. Sinto que preciso ser melhor pra mim mesmo”.
DICA DE LEITURA
Para conhecer mais sobre o assunto o veja o e-book “Inclusão da Pessoa com deficiência (PcD) no mercado de Trabalho” organizado pelos professores Mário Lázaro Camargo e Marianne Ramos Feijó do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências de Bauru e entenda como os transtornos mentais e deficiências influenciam na relação entre o homem e o trabalho.