Por Ana Carolina Brandão, Juliana Oba, Larissa Zapata, Lucas Janini e Tito Silva
O Movimento da Luta Antimanicomial, no Brasil, nasceu dos próprios profissionais responsáveis por lidar com a saúde mental. Esse levante mudou o país e trouxe uma nova visão sobre os estigmas dos transtornos da mente.
O início das ações efetivas e da estruturação desse movimento, começaram em 1987 por parte dos profissionais de saúde que tinham conhecimento das barbaridades cometidas nos manicômios país afora, assim como da ineficácia dos tratamentos oferecidos. Dessa forma, 87 foi marcado por grandes conquistas, como o II Encontro de Trabalhadores da Saúde Mental, sediado em Bauru. A partir dessa mobilização foi definido o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, instituído no 18 de maio, com o lema: “Por uma sociedade sem manicômios”.
Já em 2001, aconteceu a aprovação da Lei 10.216, escrita por Paulo Delgado, na época Deputado Federal. A medida visava melhorar os cuidados com a saúde mental, oferecendo serviços e tratamentos mais elaborados na área, inclusive com medidas sociais.
Atualmente, o Movimento incentiva o fechamento dos hospitais psiquiátricos e luta pela melhoria dos serviços oferecidos pelo Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), assim como o aumento de suas unidades pelo Brasil. Baseado em alguns pilares, como: a democracia, os pacientes, familiares e profissionais que lidam de alguma forma com os transtornos mentais; o Movimento completou 30 anos, em 2017, e segue buscando uma forma humanizada de tratamento para quem sofre com algum tipo de transtorno.
Um dos exemplos mais marcantes que demonstraram a urgência com que a luta precisou ser travada, se encontra no livro Holocausto Brasileiro, escrito pela jornalista Daniela Arbex. Na narrativa, a autora reconstruiu a história do Hospício de Barbacena, de Minas Gerais, onde eram praticados diversos atos de violência, inclusive com pessoas que não possuíam nenhum transtorno mental, totalizando mais de 60 mil mortes. De certa forma, os manicômios e hospícios, eram socialmente uma espécie de prisão, onde as pessoas que enfrentavam algum sofrimento eram colocadas para não serem vistas pela sociedade, em uma clara segregação que buscava eliminar aqueles que por algum motivo não se encaixavam no mecanismo social vigente.
O modelo de atenção à saúde mental que vigorou por quase dois séculos no Brasil foi o modelo manicomial, centrado nos hospitais psiquiátricos e na internação compulsória. Trazido ao país no início do século XIX pela Família Real Portuguesa, o modelo baseava-se nos preceitos da psiquiatria clássica, e caracterizava-se pelo uso de medicamentos, pela sedação, encarceramento e isolamento.
Já no século XX, o decreto 1.132 de 1903 define juridicamente os manicômios como os únicos lugares adequados ao tratamento de pacientes com transtornos mentais. Três décadas depois, em 1934, o governo de Getúlio Vargas revoga o decreto 1.132 e promulga o decreto 24. 559. O dispositivo jurídico assinado por Vargas foi objeto de diversos abusos, pois permitiu que apenas suspeitas de doença mental e acusações de terceiros fossem suficientes para a internação compulsória de pessoas em hospitais psiquiátricos.
O decreto de Vargas possibilitou a ascensão da chamada “indústria da loucura” durante o Regime Militar. Com o auxílio do Estado, peruas de diversas prefeituras atravessavam as cidades recolhendo pessoas em situação de rua e as levavam para internação em hospitais psiquiátricos particulares, muitos dos quais submetiam os pacientes à condições degradantes.
O cerceamento dos direitos civis decorrentes da internação compulsória nos manicômios, que chegava a durar 60 anos para alguns pacientes, além das péssimas condições de boa parte manicômios públicos e particulares no Brasil mobilizou vários segmentos da sociedade, sobretudo os trabalhadores em saúde mental, a lutar contra o modelo manicomial de atenção à saúde mental. A visita ao Brasil, em 1978, do psiquiatra italiano Franco Basaglia, fundador do Movimento da Psiquiatria Democrática foi um marco na luta antimanicomial no país. Outro momento importante foi em 1987 na cidade de Bauru (SP), com a realização do II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental, onde houve a elaboração do manifesto que ficou conhecido como Carta de Bauru, primeiro documento oficial que pedia uma sociedade livre de manicômios.
“O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos
de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de
adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios,
mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa
incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde,
justiça e melhores condições de vida.” – trecho da Carta de Bauru
Durante a década de 1990, a rede de assistência passa a substituir, de forma gradativa, os hospitais psiquiátricos como modelo de atenção à saúde mental. Baseada na garantia dos direitos civis dos portadores de transtornos mentais, este novo modelo prevê o fim dos hospitais psiquiátricos e das internações compulsórias, tendo como fundamento a inserção plena do paciente na comunidade.
A transição do modelo manicomial hospitalar para o modelo de assistência extra-hospitalar só foi possível com a aprovação da Lei 10.216 em 2001, que revogou o decreto 24. 559 assinado por Getúlio Vargas na década de 1930. Conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, a legislação de 2001 foi um avanço na atenção à saúde mental no país, mas é considerada por profissionais da área da saúde e também do Direito apenas como uma “ponte” para um futuro sem manicômios. A lei ainda prevê a existência dos hospitais psiquiátricos e também das internações forçadas.
Segundo dados da Associação Brasileira de Psiquiatria, o Brasil ainda possui mais de 20 mil leitos psiquiátricos, e a infraestrutura de espaços terapêuticos extra-hospitalares, como os CAPS e as residências terapêuticas, ainda é insuficiente. Para a psiquiatra Maria Cristina Lima, professora da Faculdade de Medicina de Botucatu da Unesp, o fim dos hospitais psiquiátricos no Brasil ainda é uma realidade distante. “Eu entendo que o ideal seria que a gente tivesse hospitais gerais com leitos psiquiátricos para todo mundo, que a gente tivesse muitos CAPS, de diferentes níveis. Mas se alguém, por decreto, fechasse todos os hospitais psiquiátricos hoje, causaria uma desorganização no sistema, porque não temos leitos psiquiátricos suficientes nos hospitais gerais”, diz.
Para Rafael Gomes Teixeira, de 38 anos, mais do que ter leitos psiquiátricos suficientes, é necessário outras alternativas. “Eu acho que o melhor mesmo é a família participar junto ao CAPS. Deixa a pessoa em casa, cuida dela, dá medicação e a estimula a fazer algumas atividades como trabalhos manuais. Isso ajuda bastante”, diz.
Rafael foi diagnosticado há aproximadamente 16 anos com esquizofrenia, que tem como sintomas ver e ouvir coisas que não existem. Ele descobriu a doença logo após o primeiro ano de graduação em História, na Unesp em Assis, e por isso voltou para a casa.
“Eu usei bastante droga no primeiro ano de faculdade, depois que voltei para Bauru em 2001 e durante dois anos eu não usei nenhuma droga. Durante esse tempo, eu ficava meio perturbado e tinha algumas alucinações. Não procurei ajuda porque eu achava que era normal, eu não percebia a diferença entre o que era real ou não”, explica.
A busca por ajuda se deu quando a doença se agravou e ele foi parar no hospital após tentar suicídio. Rafael foi encaminhado para o CAPS e começou a fazer o tratamento. Ele retornou aos estudos, transferindo a graduação para a Universidade do Sagrado Coração, em Bauru, e se formou em História em 2005.
No final desse mesmo ano, Rafael teve uma crise que durou seis anos. “Foi um problema que eu não conseguia resolver e só acabou em 2011, então eu voltei a sair de casa. Eu comprei um computador e comecei a fazer um Ensino à Distância (EAD), pela Unesp”, relata. O historiador se considera estudioso e, hoje em dia, ele faz especialização pela USC e trabalha no Núcleo de Pesquisa e História (NUPHIS) como voluntário.
Mesmo se sentindo deslocado por ter 38 anos e nada de experiência no currículo, ele acredita no velho ditado “antes tarde do que nunca”. Rafael ainda percorre as escolas da cidade em busca de um lugar que o aceite apesar do diagnóstico.
“Existe muito preconceito. Quando eu vou entregar currículo, algumas pessoas dão conselhos como ‘não fala que você tem esquizofrenia, fala que você tem deficit’. Mas eu gosto de falar porque assim eu mostro que não é uma coisa anormal e que as pessoas com a doença podem levar uma vida normal”, diz Rafael.
Novos modelos de tratamento
Uma das diretrizes da reforma psiquiátrica é a instauração de um novo modelo de tratamento que permita o pleno convívio familiar e comunitário.
As atividades artísticas oferecidas nos centros de atendimento psicossocial cumprem o papel de possibilitar um maior convívio social, situação que ocorre no CAPS I da cidade de Bauru.
No final de 2014 foi criado no CAPS I o grupo musical formado por usuários do serviço, chamado Batucaps. A fonoaudióloga e umas das coordenadoras do projeto, Anecy Fátima Bertoni, explica que o grupo começou através de uma oficina de memória.
Devido a queixas recorrentes dos usuários relacionadas a problemas de falta de memória foi instituída no CAPS I uma oficina que realizava atividades lúdicas, como atividades que envolviam música. O interesse dos usuários pelas músicas foi tamanho que as responsáveis pela oficina decidiram mudar o foco do grupo, surgindo assim o Batucaps. Poucos meses depois do seu surgimento, o Batucaps realizou a sua primeira apresentação na confraternização de Natal do CAPS I.
A partir daí, o grupo começou a ser convidado para se apresentar em diferentes eventos, em comemorações internas do CAPS I e em eventos externos. Uma apresentação considerada importante pelas coordenadoras do projeto aconteceu em 2015 na Praça Rui Barbosa em comemoração ao Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Neste ano, o grupo já participou de eventos em universidades, unidades de saúde da família e na passeata que integrou a programação em Bauru do movimento conhecido como “Setembro Amarelo”.
Atualmente participam do Batucaps 15 pacientes do CAPS I. Segundo a psicóloga e coordenadora do projeto, Juliana Peixoto Pizano, foi possível perceber uma melhora expressiva em todos os integrantes do grupo. “É possível notar diferenças significativas, desenvolvimento de autonomia, melhora da auto estima, desenvolvimento de vínculos com outras pessoas, formação de uma rede de amigos, uma rede de apoio. Cada um tem a sua história, suas limitações, mas identificamos melhora em todos os pacientes”.
Um exemplo expressivo de melhora no tratamento, citado pelas coordenadoras do projeto, é de um jovem que chegou no CAPS I em crise, não interagia com outras pessoas e que saía de casa apenas acompanhado pelos pais. O jovem contou para uma das coordenadoras que gostaria de participar de atividades artistas e há aproximadamente dois meses faz parte do grupo Batucaps. A psicóloga relata que o comportamento do jovem mudou expressivamente. Em uma apresentação ocorrida na Universidade Estadual Paulista (Unesp), o jovem se prontificou a dar o seu depoimento e falou para uma sala cheia de pessoas.
O exemplo citado ilustra um dos principais objetivos do Batucaps, que é promover a inclusão social. A fonoaudióloga comenta que alguns integrantes do grupo não estão acompanhando os ensaios por estarem estudando ou realizando estágios em empresas, uma prova, segundo ela, de que o grupo está contribuindo para uma inclusão social mais efetiva.
O CAPS I conta também com outras atividades artísticas que auxiliam no tratamento das doenças, como uma oficina de expressão corporal. “As atividades artísticas são muito importantes, temos uma oficina de expressão corporal que trabalha atividades artísticas, com corpo, com música e vemos também um resultado importante, é uma forma de se expressar. Nos grupos terapêuticos utilizamos muito o recurso da fala, da escuta, esse é o modelo mais comum, mas tem os seus limites. Quando trabalhamos com atividades artísticas, com o corpo, com a música alcançamos outros resultados que apenas com a fala não é possível”, ressalta a psicóloga.
O tratamento através de atividades artísticas está surtindo efeito no CAPS I. As coordenadoras do projeto Batucaps comentam que desde o surgimento do grupo, apesar dos integrantes terem apresentado crises, nenhuma internação psiquiátrica foi realizada.