Faz bem ou faz mal? Legalizar ou não? A maconha medicinal tem travado discussões profundas pelo mundo envolvendo fatores políticos, sociais e científicos
Por Camila Trindade, Daniela Leite, Gabriel Dos Ouros
Tráfico. Crime. Ilegalidade. Vício. Essas são, provavelmente, as primeiras palavras que se ligam quando falamos sobre: maconha. E se alguém dissesse que esta planta pode significar muito além disso? Mais: que a maconha pode ser usada para curar? A Cannabis não se trata apenas de uma substância com efeitos psicoativos – estudos têm provado sua eficácia em tratamentos de diversas doenças como epilepsia, esclerose, aids e câncer.
Atualmente, dentro da estrutura legal do Brasil, o plantio, cultivo, porte, consumo e venda da substância são proibidos e considerados crime. Isso influencia o que a população pensa sobre a maconha – que frequentemente a reduz apenas aos seus efeitos psicoativos. Em contrapartida, muitas famílias têm pressionado a discussão sobre a legalização da planta, considerando seus efeitos medicinais. Analisar este aspecto, então, significa adentrar num campo profundo de estudos científicos e, ao mesmo tempo, refletir todos os entraves políticos, sociais e culturais que uma possível legalização sucederia.
Apesar de conhecida por seus efeitos terapêuticos há muito tempo, a comunidade científica só passou a estudar a maconha mais a sério em 1964. Foi com o pesquisador Raphael Mechoulam, da Universidade de Tel Aviv, em Israel, que se conseguiu extrair da erva uma substância denominada como delta-9-tetraidrocanabidiol – popularmente conhecido como THC e o principal responsável pelos efeitos da Cannabis. Mechoulam conseguiu sintetizar tal elemento e, dessa forma, facilitou os estudos sobre a sua ação no corpo humano.
Com esta grande descoberta, a indústria farmacêutica empenhou-se – e logo conseguiu – na produção de remédios à base de THC sintético. Pacientes com câncer e aids foram contemplados com a possibilidade de tê-la como recurso terapêutico. No caso de pacientes com Aids, a maconha ajuda a aumentar o apetite de seus pacientes – uma grande contribuição, visto que a perda de peso nesses casos é tão grave que pode desencadear quadros de desnutrição.
Aumentando ainda mais o espectro de sua utilidade medicinal, em 1973, um estudo realizado no Brasil revelou o efeito anticonvulsionante do canabidiol (CBD), substância também extraída da erva. Sete anos depois, o primeiro estudo com humanos é realizado no país, sob direção do Professor Elisaldo Carlini, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Em entrevista ao IG, Carlini ressalta que legalizar o uso da erva significa mais um recurso para pacientes que sofrem com doenças como epilepsia, câncer, esclerose – visto que “o alcance dos remédios para combater a dor é limitado”.
Em 1981, nos EUA, é aprovado o primeiro remédio à base de uma substância análoga ao THC, o Cesamet (nabilone), utilizado contra náuseas e vômitos. Quatro anos depois, também entra no mercado americano o Marinol, com THC sintético, utilizado nas mesmas circunstâncias.
Os estudos crescem – tanto sobre o THC como sobre o Canabidiol – e a efetividade da maconha na medicina torna-se ainda mais evidente. O maior entrave, na maioria dos países, é sua ilegalidade – obstáculo que interfere no desenvolvimento de estudos sobre o tema e na produção de remédios para os pacientes necessitados – e este é um dos propulsores de uma intensa discussão que cerca famílias e até mesmo a estrutura legislativa do Brasil e de outros países.
A MACONHA NO MUNDO
O primeiro registro que se tem sobre a Cannabis data de 2700 a.C (segundo dados do jornal O Globo). O imperador chinês, Shen Nung, foi quem teria descoberto e, a partir de então, a planta passa a ser usada com diversas funções. Mil anos depois, a cannabis medicinal é mencionada no papiro Ramesseum II, no Antigo Egito. Na Índia também foram encontradas menções à planta no livro medicinal Atharva Veda. De qualquer forma, sabe-se que a Cannabis era utilizada devido às suas virtudes terapêuticas, contra complicações advindas da asma, cólicas menstruais e inflamações na pele.
Na América do Sul, a maconha foi trazida por colonizadores e as primeiras plantações dela se localizaram no Chile, realizadas por espanhóis. No Brasil, ela era trazida especialmente por escravos africanos e eram muito utilizadas em rituais do Candomblé – fato que não extingue a possibilidade da planta também ter sido trazida por portugueses.
Desde muito tempo, então, a maconha tem seus efeitos terapêuticos reconhecidos, mas sua manipulação vai além de provas científicas. O principal embaraço nessa trajetória foi a proibição de seu uso. Segundo Tiago Magalhães Ribeiro, filósofo e autor de um livro sobre drogas, “a proibição à maconha se constituiu a partir da confluência histórica de uma série de fatores, que variam um pouco conforme o país ou região que se analisa”.
1930 foi a década em que teve início uma luta para a proibição da maconha e seus usos – tanto espirituais, medicinais ou sociais, segundo conta o advogado Fernando da Silva, ou “Profeta Verde” (personagem que foi inventado pelo ativista para “levar a palavra” da descriminalização das drogas pelo país). “A proibição teve um jogo de interesses muito forte de indústrias, de setores econômicos com setores políticos. As drogas que foram proibidas são drogas de populações minoritárias”, afirma o advogado. Complementando essa visão, Ribeiro também ressalta que, no Brasil, a repressão à erva também esteve muito ligada a preconceitos em relação à população que fazia uso da erva – especialmente negros e pobres.
Para o Profeta, que é um dos organizadores da Marcha da Maconha, o processo de proibição teve como base uma política de medo, “uma política de que quem fizesse uso, quem se aproximasse dessa planta, estaria correndo o risco de ser possuído por forças super poderosas, do mal, demoníacas, que os levariam a cometer assassinatos, realizar estupros, se prostituir”, evidencia o advogado.
A LEGALIZAÇÃO
Apesar de a Anvisa ter aprovado, em janeiro deste ano, o registro do primeiro medicamento à base de maconha no Brasil, esse ainda é um pequeno passo se comparado a todo o cenário que envolve a legalização completa da substância – incluindo seu uso para fins recreativos e a produção nacional dos medicamentos.
O medicamento legalizado recentemente se trata do Mevatyl, que é composto por dois princípios ativos da cannabis – o THC e o CBD, em solução oral, vendida somente a maiores de 18 anos e com receita médica.
O neurofarmacologista Francisco Silveira Guimarães explica que a planta da cannabis sativa contém mais de 100 compostos com estrutura química semelhante chamados de canabinoides. O CBD é uma delas, assim como o THC (o composto responsável por boa parte dos efeitos da maconha). Guimarães explica que, em várias situações, o CBD e o THC podem ter efeitos opostos, mas que, com a “liberação” da Anvisa dos princípios ativos da maconha, particularmente o canabidiol, tornou-se possível a aquisição e manipulação de compostos purificados e de fonte confiável para que a pesquisa sobre os efeitos destes compostos seja facilitada.
Apesar de existirem medicamentos à base da erva para casos de epilepsia em outros países, o Mevatyl é contraindicado em tais circunstâncias pois o THC pode agravar as crises epiléticas. Portanto, o medicamento legalizado no país não resolve o problema para pessoas com essa doença – que continuam à espera da legalização. O único caminho para que elas consigam o remédio (à base de CBD) é por meio de uma autorização especial que a Anvisa concede em alguns casos.
“Está muito longe do que se esperaria de um país civilizado e de fato preocupado com a saúde de sua população. Os medicamentos cuja importação é autorizada são muito caros, o que restringe o acesso e acaba provocando uma corrida ao poder judiciário para que obrigue o Estado a financiar esses produtos”, afirma Ribeiro.
A liberação da importação apenas de um medicamento específico divide opiniões. Por um lado, é um primeiro passo para outras concessões, e significa que a Anvisa, extremamente criteriosa, já começa a enxergar nestes compostos possibilidades de melhoria de vida para pacientes, o que pode “abrir a mente” e reduzir os preconceitos da população quanto aos méritos e propriedades da planta; por outro, como afirma o cientista social e antropólogo Fabiano Cunha dos Santos, “é um avanço sem muita significância, porque, o acesso [ao medicamento autorizado] é muito difícil; as famílias de baixa renda não podem, não tem dinheiro para importar medicamento dos EUA ou de outro país, porque o custo é muito alto. A burocracia é também bastante dificultosa, porque os remédios ficam presos na Polícia Federal, nos próprios aeroportos, a família tem que se deslocar”.
Segundo ele, mais de 700 mil famílias precisam do remédio, mas a maioria não está conseguindo acesso à importação, seja por ausência de condições financeiras, por burocracia ou por dificuldade de conseguir receita médica, pois muitos médicos ainda resistem a conhecer e aceitar as propriedades medicinais da maconha. Os custos podem chegar a US$1500,00 por mês. A solução para isso, quase unânime entre os especialistas entrevistados, seria a legalização do plantio pelas famílias que precisam.
A proibição prejudica o avanço. Além de ser amplamente mais barato e acessível – podendo sanar a necessidade nacional – o plantio é interessante para a população pois desvincula a terapia da indústria farmacêutica, que tem e terá ainda mais lucro caso exerça monopólio sobre a substância.
Ribeiro ressalta que há um interesse da indústria farmacêutica para que o plantio em território nacional não seja legalizado, mesmo em caso de uso medicinal para epilepsia. “O que eles [indústria] querem, na verdade, é sintetizar os princípios ativos e vender medicamentos químicos, como fazem com uma série de outras moléculas que se transformam em comprimidos para que possamos acessar seus benefícios medicinais”, analisa ele. Porém ressalta que, no caso da maconha, os melhores resultados terapêuticos são obtidos com o uso da planta in natura. Assim, ele defende que não sejam legalizados apenas alguns componentes da planta, mas sua totalidade, incluindo a autorização para que as pessoas possam cultivá-la.
Algumas famílias estão conseguindo autorização judicial para plantar. É o caso, por exemplo da advogada carioca Margarete Santos de Brito, 44, mãe de Sofia, de 7 anos, portadora de doença que causa crises de epilepsia. Desde março de 2016, Margarete vem plantando a erva para extração de uma solução usada pela filha. Ela passou um tempo desprotegida, sem autorização, mas recentemente recebeu um habeas corpus preventivo (“salvo conduto”), que não permite que ela ou seu marido sejam presos e nem tenham seu cultivo apreendido pela polícia, já que ele é mantido para os cuidados com Sofia.
“Sempre senti que plantar o remédio da minha filha era um direito legítimo. Por que vou esconder? É para poder fazer o remédio para a minha família”, afirma ela em entrevista para o HuffPost. “E conseguir falar de maconha dentro de um braço do Ministério da Saúde é um passo muito grande”. Ela, hoje, é presidente da Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), luta pelo direito ao acesso aos extratos de cannabis, e acredita que é importante a participação da sociedade civil junto à pesquisa para a conquista de direitos.
As muitas associações que surgiram em 2015 e 2016 no Brasil estão pedindo a produção nacional, porque só assim as famílias terão um acesso melhor, mais barato, menos burocrático e de maior qualidade. O processo caseiro de extração do CBD pode ser tão eficiente, ou mais, que um processo de industrialização da substância. Há vários métodos para a extração do óleo artesanal.
“Esse é o ponto em que se encontra esse enfrentamento. Sob que forma a população que precisa terá acesso ao seu medicamento: cultivando em seu jardim ou comprando pílulas farmacêuticas?”, questiona o filósofo.
INDO ALÉM
Além de criminalizar o cultivo, a Lei de Drogas também considera crime o porte, o consumo e a venda de drogas. Ela estabelece as penas para esses casos, mas não dá informação suficiente para ser possível distinguir consumo próprio de tráfico, o que é bastante problemático, já que essa definição acaba ficando por conta da arbitrariedade policial.
Santos explica que a primeira política de proibição no Brasil se deu no RJ em 1832 e foi a proibição do “pito do pango” – que era uma nomenclatura que se dava ao fumar um “baseado” (cigarro de maconha), ou então num “bong”, ou uma “marica”, uma espécie de charuto da maconha. Segundo ele, essa proibição foi muito clara para impedir os negros de usarem a maconha. “Foi muito ligado ao racismo”, afirma. “Havia a ideia de que o uso de drogas levava à criminalidade, mas também havia outro motivo implícito, que era o controle social. Proibir as drogas era um motivo para reprimir determinadas camadas sociais”.
Ele cita o pesquisador Julio Cesar Adiala, que fala dos “vícios elegantes”: “existia uma distinção entre os vícios dos mais pobres e os vícios da classe mais poderosa. Os vícios dos mais pobres eram muito mais reprimidos e muito mais atacados, que é o que a gente vê hoje em dia: os pobres, os negros e os jovens das camadas periféricas sofrem muito mais, e os brancos ficam mais liberados da repressão policial”, conclui o antropólogo.
O raciocínio histórico vem ao encontro do que afirma a ativista negra Juliana Borges, da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (INNPD), que quem decide quem é traficante ou usuário é a PM. Assim, determinados perfis como o de jovens negros, de capuz, são geralmente muito perseguidos e condenados injustamente, enquanto que jovens brancos com a mesma quantidade de substância podem ser inocentados.
Com todas as proibições que ainda existem acerca da maconha, pessoas continuam a ser presas e mortas por causa das drogas nos morros, usuários não podem plantá-la para seu consumo próprio, o tráfico lucra com a alta demanda e não há qualquer regulação sobre o assunto.
É preciso transpor o debate do uso medicinal para todo este contexto. “A política brasileira tenta dissociar ao máximo do uso medicinal do uso recreativo. Muitos políticos não aceitam o uso recreativo porque associam ainda à criminalidade, ao vício, à perda de consciência, à irresponsabilidade”, afirma Santos.
O antropólogo explica que quando o relator Cristovam Buarque aceitou o projeto de lei Sugestão nº 8/2014, de iniciativa popular de regulamentação do uso, produção, distribuição e comércio da maconha de uma forma geral, “Buarque mesmo deixou claro que o que é mais urgente é o uso medicinal, e os políticos que discutiam na época também aceitaram essa ideia, porque as crianças que apareciam na mídia eram brancas, de famílias de classe média, e é muito chocante ver essas crianças de olhos claros convulsionarem”, observa ele.
Santos não define como menos urgente a legalização do medicamento para as crianças epiléticas, mas afirma que tão urgente quanto isso é pensar na guerra às drogas, nas mortes de jovens na favela devido ao tráfico, no encarceramento em massa. “Muito mais gente sofre com a proibição do uso recreativo, e menos gente morre ou tem problemas com a proibição do uso medicinal”, ele analisa.
As duas frentes não são uma disputa: ambas são importantes, mas a luta pela legalização medicinal não pode tapar questões tão ou mais importantes quanto a legalização total da maconha para usuários.
O Profeta Verde também aponta para a mesma linha: a dos prejuízos da guerra às drogas. Em suas palavras, “a questão das drogas é muito mais ampla que o simples direito desses pacientes de usarem maconha medicinal. O debate das drogas envolve uma discriminação étnica, racial, de classes”.
A lotação dos presídios está aí para provar. O ativista reafirma uma realidade, considerando que “essa proibição das drogas é o que leva a gente a lotar a cadeia com esses pequenos traficantes, varejistas, aviõezinhos, os vapores que entregam as drogas, que são a ponta de lança do tráfico de drogas. A crise penitenciária que a gente está vendo nos jornais tem estreita relação com a questão”. No cárcere, eles estão se enfileirando nos exércitos das facções criminosas, como PCC, Comando Vermelho, Família do Norte.
Para ele, a proibição das drogas causa mais danos que o uso em si. “A gente tem que aprender a lidar com essas drogas, como a gente tem aprendido a lidar com o tabaco, como a gente tem aprendido a lidar com o álcool”, opina. O Brasil enfrenta muito conservadorismo e resistência política, o que, segundo Santos, tem atrasado muito a votação da descriminalização. O antropólogo acredita que, “com a legalização nos EUA – agora a maioria dos estados tem acesso ao uso medicinal -, a gente está vendo que não está sendo um ‘bicho de sete cabeças’”.
No Uruguai temos o caso da legalização completa da maconha, e lá vem se provando diminuição da criminalidade, as mortes zeraram em relação ao tráfico. Na América Latina quase toda, a maconha é descriminalizada. Então são todos esses fatores vão ajudando o Brasil a repensar esse modelo de política. Eu acredito que por nós vivermos num mundo capitalista, esse viés da economia vai ajudar bastante a legalização das drogas como um todo”. Um exemplo de arrecadação surpreendente de impostos é o caso do estado norte-americano Colorado, que legalizou o uso recreativo da maconha e conseguiu reduzir a atuação do tráfico. O negócio parece prosperar.