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Mãe, isso não é algo que vai passar, é quem eu sou

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POR ÂNGELO CHERUBINI E MARINA KAISER

O cigarro dançava entre seus dedos indicador e médio, ainda não aceso. Ia para a direita e para a esquerda, em um ritmo quase que frenético. A música Techno soava em nossos ouvidos.

“Não sei por onde começar”, fala finalmente.

E antes que pudéssemos dar alguma sugestão, ele corta. “Na verdade, sei. Posso começar desde o começo?”, pede.

“`Pode”.
MURI
É assim que se inicia nossa entrevista com Murillo Rosa, universitário quase formado em Design. O quase é porque ainda falta o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), ele explica, ao mesmo tempo em que lamenta sua despedida de Bauru. E ela na verdade já aconteceu.

Murillo deixou a “cidade lanche” (fisicamente, pois seu “coração ainda está por aqui”, como ele diz) semana passada, devido à falta de dinheiro para pagar aluguel. Ele estava em férias do estágio quando recebeu uma mensagem da sua então chefe avisando que ele não precisava voltar para o trabalho – o negócio foi à falência.
Acende o cigarro.

“É complicado. Ao mesmo tempo em que gostaria de continuar aqui, porque é onde fiz amigos e lembranças que vou levar durante a vida toda, além de ter aprendido tanto, não apenas em termos de conhecimento acadêmico, mas também a respeito da vida, percebo agora que foi necessário”, ele conta. “Eu não estava conseguindo me concentrar para fazer o TCC, é a única coisa que falta para eu pegar meu diploma. Foi só chegar a Santa Rosa (do Viterbo) que comecei a desenhar; na verdade já acabei, praticamente. Daqui a pouco começo a passar para o computador e animar”, completa, entusiasmado.

Originário de Santa Rosa do Viterbo (SP), Murillo nasceu no dia 25 janeiro de 1994, signo de Aquário. Dia de São Paulo, ele afirma, porém assegura não ser são-paulino. “Minha mãe falava que eu chorava muito grosso e que eu quebrava o berço dando chute. Eu chutava o berço. Eu era muito revoltado… desde criança”, ele conta, rindo. Não é filho único. Sua irmã mais velha, Tauane, nasceu 4 anos antes.

Murillo relata que na casa em que ele e sua família moravam, durante sua infância, uma edícula no fundo de algum quintal, era infestada de escorpiões – mas, curiosamente, ninguém chegou a ser picado. “Minha mãe tinha um jarro de álcool em cima da geladeira com um monte de escorpião morto. Não sei porque ela tinha aquilo, acho que era um cemitério para tentar afastar os outros de casa”, relembra. Atualmente, o escorpião é o bicho do qual mais tem medo: “acho ele muito violento, bravo”.

É neste momento que Giovana, sua antiga colega de apartamento e amiga desde o primeiro ano de faculdade – apesar de serem de cursos diferentes – entra no quarto.
“Senti o cheiro de cigarro, posso pegar um?”, ela pede.

“Amiga, é claro. Senta aí, estou dando uma entrevista sobre a minha vida!”, ele fala rindo.

Giovana pergunta se tudo bem ficar ali com a gente. Respondemos que é claro que sim. Ela se senta, pega um cigarro e acende.

“Posso continuar?”, Murillo pergunta.

“Sim”.
E então mergulhamos de volta dentro do seu universo.

“Eu acho que tipo, desde esse momento, essa época, eu já me interessava por coisas de ‘menina’. Assim, eu também gostava de coisas de ‘meninos’, vamos colocar uma aspas aí, então tipo, video game, desenho animado, dragon ball e coisas assim, mas futebol eu não gostava. Mas de ‘menina’, eu lembro de gostar de bonecas, saias e botas. Eu gostava muito de bota. E aí eu comecei assim, não sabendo o que que era e tal, e tinha muita repressão da família. Criança pequena né, criança viada na família, já era foda”, relata.

Um momento que o marcou muito sua infância, de forma negativa, foi quando a tia dele o bateu. “Eu estava vestido só de camiseta, cueca e meia até joelho e eu estava falando que eu era a Patrícia, ela me bateu falando que eu era homem, que deveria ser homem e me comportar como homem”.

Murillo também conta que sua mãe não gostava que ele brincasse com as bonecas da sua irmã, Tauane, chegando até a escondê-las para que ele não pudesse encontrá-las. Porém, ele relembra, sua vizinha da frente, muito amiga de sua irmã, o deixava brincar quando sua mãe não estava.

Brincar de boneca, então, só escondido. Ele também gostava de passar batom. “Até comia, de tanto que gostava”, ele ri. Relembrando todas essas coisas, brincadeiras de infância, Murillo conta que um dos motivos pelo qual gostava tanto das bonecas, principalmente da Barbie, era porque ele achava que, de todos os brinquedos que tinha com sua irmã, ela era a que tinha maior conectividade com a realidade.

“A Barbie tinha toda essa verossimilhança com o nosso mundo. Ela tinha casa, ela tinha pet, ela tinha profissão, vestir roupas diferentes. Eu achava isso muito dinâmico e muito legal na hora de brincar”, conta.

Essa repressão que ele sofria impactou o seu jeito de ser. Murillo acha que por causa desse comportamento da sua família ele foi uma criança muito tímida. “Eu acho que eu tinha muito insegurança nessas coisas de relações sociais porque eu chorava muito, eu era muito chorão, qualquer coisa me ofendia”, ele relembra.

Isso melhorou quando ele começou a fazer kung-fu, por volta dos 7 anos, porque, em suas palavras, ele tinha um lugar para focar e direcionar sua raiva. Pouco tempo depois sua família se mudou para Mato Grosso, porém ali ele não chegou “a ter mais episódios”, como ele diz, aprendeu a reprimir tanto a frustração quanto o comportamento da família.

Por um período, até encontrarem uma casa, eles ficaram na casa de um tio, que tinha três filhos adotados e de quem a mãe de Murillo gostava muito, por ser muito bom para toda a família. Mas mesmo nesse ambiente acolhedor ele não se sentia muito confortável.

“Eu sempre sentia que eu não me encaixava assim, de certa forma. Eu sempre me sentia por baixo e eu não sei porquê. Alguma coisa eu tinha que eu continuava inseguro nas minhas relações”, relata.

Não muito tempo depois, retornaram a Santa Rosa. As coisas continuaram como eram, mas na escola Murillo passou a sofrer bullying “não muito pesado”, por brincar mais com as meninas do que com os meninos. “Sofri um pouco com essas perseguições, mas nunca cheguei a apanhar por causa disso na escola. Nunca ninguém me fez nada, mas era uma situação muito ruim”, um comportamento que, de certa forma, não vinha somente dos colegas. “Minha mãe falava que eu passava muito tempo com as meninas, que os outros iriam me chamar de viado, coisas desse tipo”, completa.

Nessa época, sua mãe também não gostava muito da relação do filho com o melhor amigo. Por ela achar que o amigo de Murillo era gay, ela temia o que as pessoas iriam falar ou já falavam e se preocupava muito com a alta frequência com que os dois se visitavam.

Por volta dos 12 anos sua família se mudou para Jaboticabal e lá Murillo se apaixonou pela escola e pela estrutura de todo o lugar. Ao invés de sair para brincar no intervalo, ele e alguns colegas ficavam passeando e desbravando o lugar, como se fosse uma aventura.

Lá também foi o lugar onde ele se apaixonou pela primeira vez. “No intervalo ele estava na 7ª e eu na 6ª, ele sentava sozinho e não conversava o intervalo inteiro — às vezes sim, mas na maioria das vezes não. Eu achava isso muito peculiar, porque se você olhasse para ele, parecia que era aquele tipo de pessoa que se encaixava em qualquer lugar. Eu queria muito falar com ele, a primeira vez que eu o vi parecia que eu já o conhecia, mas eu nunca consegui”, fala.

Murillo faz uma pausa para respirar e acende um novo cigarro. Estamos todos atentos.
“Eu tinha muito medo de ser julgado, e eu também era muito tímido, não sabia me interagir dessas maneiras. Acabou que um ano se passou e eu ainda não tinha falado com ele. Mas eu estava sofrendo tanto, que foi nessa época que eu comecei a ficar um pouco deprimido sabe, ficar um pouco ‘blue’”, compartilha.

Apesar de dividir com os amigos a vontade de conversar com o garoto, vivia afirmando que não era gay, que queria apenas realmente fazer uma nova amizade, mas sabia que no fundo tinha uma certa questão sentimental. Nessa época ele fugia das meninas que queriam ficar com ele. Murillo nunca chegou a conseguir conversar com o garoto e diz que isso é algo que o marcou muito em termos de sua formação e personalidade.

Alguns anos depois, em 2007, voltou para Santa Rosa e reencontrou antigos amigos e fez novas amizades. “Eu acho que foi muito tranquila a minha volta, até porque eu não estava mais conseguindo lidar com a minha sexualidade reprimida. Cada período que ia passando, ela se ia desenvolvendo mais e com o advento da internet eu comecei a me desbravar e falar ‘foda-se’, eu vou pesquisar e ver o que acontece”, ele relembra, adicionando que a internet ajudou também ele a procurar por figuras masculinas para poder se satisfazer visualmente.

No período de seus 15/16 anos ele quase namorou uma garota, que é sua amiga até hoje. “Eu gostava muito dela, mas eu não conseguia levar isso adiante, eu me forçava muito e não era algo que estava me fazendo muito bem. A gente ficava às vezes nos rolês, e eu gostava porque ela me dava uma segurança, ela me conhecia desde a 3ª série”.

Aos 17 anos, Murillo não estava mais conseguindo manter sua sexualidade em segredo. Durante uma festa, contou chorando para uma amiga que era gay. “Desse ponto em diante eu comecei a falar para os meus amigos. Isso ficou entre eles e quando eu vim para a faculdade eu ainda não tinha contado para os meus pais. Foi aqui que comecei a realmente me assumir perante a sociedade e ficar com outros homens. Depois de um tempo eu acabei contando para os meus pais, novamente em uma crise de choro”, relembra.

Murillo pede uma pausa para buscar água na cozinha – ir contando tudo isso, junto com os cigarros fumados, começou a dar sede.

Volta com uma garrafa cheia e uma cerveja para Giovana, que havia pedido uma e já continua de onde havia parado.

“Contei primeiro para a minha irmã. Os meus pais já estavam percebendo que tinha alguma coisa acontecendo – na verdade, eles já sabiam desde muito tempo, mas é aquela coisa né, de insistir que não era, negar. Eles entraram no quarto e viram eu chorando no colo da minha irmã e perguntaram o que estava acontecendo e eu falei, ‘gente, eu sou gay, e tem me corrompido muito estar nessas situações assim constrangedoras e opressoras’. Meu pai saiu do quarto sem falar nada, com uma cara de negação total, e minha mãe disse que ela rezava para que isso fosse só uma fase, para que isso passasse eu disse ‘mãe, isso não é algo que vai passar, é quem eu sou’”, conta.

Ver a quantidade de pessoas que são iguais a ele, ou diferentes, mas que passam por coisas semelhantes, fez com que ele passasse a se aceitar ainda mais e lutar para que isso não seja visto como algo anormal, como ele mesmo disse, “seja visto como normal – não só comum, normal”.

“Como eu consegui me aceitar e consegui colocar a minha cara, eu preciso ajudar para que outras pessoas também consigam. Não que eu vá mudar alguma situação, mas o que eu posso fazer para ajudar alguém”, ele afirma.

Lembranças
“Ele se lembra mais do que eu”, diz Giovana, sobre o momento em que se conheceram. “Foi depois de uma reunião do movimento estudantil”, completou Murillo, enquanto a música Techno continuava ao fundo. A sonoplastia escolhida por ele tocava desde o início da entrevista, e remonta a algumas memórias da amiga. Porém, além de um grande fã de música eletrônica, tem entre suas bandas preferidas Auldioslave, Coldplay, 30 Seconds to Mars e a cantora Katy Perry, que acompanha desde 2008.
Quando moravam junto, Murillo fez uma animação para a faculdade. Na oportunidade, o estudante de Design uniu duas paixões: a música e o desenho, hábitos que cultiva desde a infância. “Eu dormia no carro pra ficar ouvindo música no rádio até três da manhã”, conta.
Ao mesmo tempo, o pequeno aluno do ensino fundamental tirava da aula um tempo para desenhar, habilidade que hoje domina. Com um chapéu rosa na cabeça, ele se levanta e trás uma pequena mostra de seus esboços. Aquela série de quadros colocados em sequência montavam ali uma narrativa curiosa.
Tentamos desvendá-la por um tempo – não conseguimos -, e, percebendo que havíamos nos distraído muito, retornamos à entrevista. Os cenários de Murillo, mesmo os que já sumiram, estarão sempre gravados na memória de seus amigos. Um dia, no meio de um “rolê” na antiga república onde moravam, Murillo tirou a caneta do bolso e desenhou detalhadamente um pequeno rosto de uma mulher.
“Toda vez que eu entrava na sala dava de cara com o desenho. Chegou um momento em que já estava tão fixado na cabeça que eu até parei de reparar”, conta Thomás, colega de casa da época.
A república não existe mais, tampouco a ilustração – ninguém nunca tirou uma foto -, mas os pequenos detalhes sempre ficam. A casa onde moraram, há algumas quadras do local onde acontecia a entrevista, foi a segunda república do estudante em Bauru. A primeira, a Botafogo, marcou pela vasta vivência, que chegou a acontecer entre 14 moradores, durante a segunda metade de 2015.
Murillo por lá ficou até o fim de 2016, quando se mudou pra república Leda, onde viria a morar por um ano. A escolha do curso veio naturalmente, pela própria afinidade com artes gráficas. A princípio, almejava fazer Imagem e Som na Unicamp, mas não “era estudioso o suficiente”, constata, com um sorriso.
Apesar da mudança de planos, o estudante dá o saldo da graduação: “Eu achava que Design era fazer cartão de visita e flyer, não imaginava a expansão que eu ia ter na universidade, ver tudo o que eu vi”. Entre um cigarro e outro, Murillo transparece uma serenidade que, a cada trago de alívio, parece se despertar em meio a algumas angústias.
“Durante o tempo que moramos junto, posso me lembrar claramente de reflexões que tive com ele. Desde nossa constante luta para parar de fumar, até a possibilidade de hecatombes, desastres naturais, mundos diferentes. De uma forma ou de outra, me sentia livre para trocar das ideias de qualquer tipo com ele”, explica Thomás.
“Hecatombe?”, perguntamos, sem entender muito.
A reflexão dizia respeito aos conflitos da Coréia do Norte com os EUA, em 2017. Longe de querer dizer que a possibilidade de um hecatombe fosse impossível naquele contexto, mas os relatos denotam uma imaginação aflorada, e consequentemente uma capacidade de criar e imaginar cenários, dos mais absurdos aos mais cotidianos.
Uma relação, que, para nós, de fora, também se apresentava no interesse pelos jogos de videogame. Um fã de carteirinha das sagas de terror Resident Evil e Silent Hill, Murillo já zerou algumas das edições várias vezes.
A experiência sobrenatural que presenciara quando criança, e que nos viria a contar mais tarde naquele sábado – Murillo chegou a ver vultos (onde não havia ninguém) mais de uma vez em sua infância -, não afastou o estudante das histórias de terror de ficção, muito menos fez despertar qualquer trauma à ideia de metafísica – apesar de não demonstrar mais vínculos com a Igreja Católica, meio em que foi batizado, catequizado e crismado.
“Gente, desculpa interromper a entrevista, mas eu preciso começar a me arrumar”, diz. “A parada vai começar as 14 horas e eu ainda nem tomei banho”, completa rindo.
Giovana então pergunta que horas ele pretendia ir – às 16 horas – e se podia ir junto (é claro!). Começamos a guardar nossas coisas para irmos embora, assim como Murillo foi de Bauru. Para voltar para casa.
Para a cidade em que nasceu, cresceu, se descobriu e se assumiu. Para as pessoas que o criaram, educaram e amaram, mas que ainda não o aceitaram. A volta à casa não é apenas uma viagem de ônibus para um lugar, é uma viagem espiritual de volta à si. De volta à toda sua história – mas não ao fim dela.
Toda pessoa tem uma história a contar, não importa quem seja. Passar uma tarde conversando com alguém pode aumentar nossa percepção sobre as diferenças na vida de cada um, e como essas diferenças fazem de fato que somos, além de trazer mais consciência para a humanidade do outro. Como diz aquela frase, “Todo mundo que você encontra está lutando uma batalha sobre a qual você não sabe nada a respeito. Seja gentil, sempre”.

Redação

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