Brigadeiro gourmet, comida saudável, sustentável, alimentos orgânicos… Num mar de escolhas, o que realmente temos colocado em nossas mesas?
Camila Trindade, Daniela Leite e Gabriel dos Ouros
Fila de espera para comer. O prato chega. Os ingredientes? Bem, não dá para dizer ao certo. Eles parecem comuns, mas a aparência é realmente muito boa. Diferente do usual. Vale uma foto para as redes sociais. Um check-in… Será mesmo que toda a aparência vale mais que o processo de produção?
O apelo ao público parece vir da oferta do que é “diferente” – novos modos de preparo de velhos conhecidos da gastronomia, adaptações de pratos estrangeiros, combinações inusitadas de ingredientes, novas roupagens e nomenclaturas do trivial – e o que mais o chef inventar. E nem os doces passaram impunes: o bom e velho brigadeiro, por exemplo, recebeu novas coberturas e sabores – e seu preço? mais que quadruplicou!, o picolé virou paleta mexicana e recebeu diversas possibilidades de recheios, a pipoca doce chegou a preços exorbitantes, e até o cafezinho sentiu de novo as glórias de outros séculos, quando era produto caro e de luxo.
Muito disso esbarra no “diferente pelo diferente”, como afirma em sua coluna no blog do empreendedor do Estadão Ivan Bornes, fundador do restaurante Pastificio Primo, em São Paulo, cuja filosofia é “comida simples por um preço justo”. O chef afirma em seu texto que o fenômeno da gourmetização “escancarou a eficiência de uma das grandes ferramentas de marketing, que é a diferenciação forçada, ou seja, a procura do diferente apenas para ser diferente. Nem sempre com uma necessidade real de consumo ou de capacidade qualitativa do produto”.
Isto quer dizer que sofre-se engodo quando estes produtos são vendidos a alguém. O consumidor é levado a crer que aquele produto realmente vale mais que o comum por causa de seus aparentes diferenciais. Assim, além de pagar mais, ele se fideliza àquele serviço e também passa a “ostentá-lo” como, por exemplo, tirando fotos do que se está consumindo e publicando nas redes sociais – o que funciona como uma espécie de marketing que fortalece ainda mais as companhias.
Uma pesquisa realizada pela empresa dunnhumby aponta que as classes A e B têm suportado melhor a crise em relação às classes C e D, porém, ambas desenvolvem a mesma postura – poupam em artigos básicos para que possam manter certos luxos. Segundo o presidente da AVG (Associação Gaúcha para o Desenvolvimento do Varejo), Vilson Noer, “consumir produtos que satisfaçam a autoestima, em um cenário de crise, é um mecanismo de defesa”.
O termo gourmet, na verdade, foi difundido pelo gastrônomo Jean Anthelme Brillat-Savarin, com seu livro “Filosofia Do Gosto” em 1825, na intenção de designar o “paladar apurado”, o verdadeiro conhecimento da gastronomia. Hoje, no entanto, o termo liga-se a representação de “alta qualidade”, “sofisticação” e tem crescido muito no Brasil. De acordo com a consultora e professora da ESPM, Gabriela Otto, “vinte e um por cento dos produtos em geral, no Brasil, já se voltaram a esse conceito. É uma forma das empresas se diferenciarem no mercado e atingirem a grande massa compradora, que nos últimos anos teve mais acesso ao consumo e à informação”.
O desenvolvimento da tecnologia foi essencial para o empoderamento do consumidor. Como explica o diretor geral da dunnhumby Brasil, Adriano Araújo, “hoje existe uma transparência que permite ao cliente analisar valores”. A gourmetização está muito ligada, então, ao consequente desenvolvimento das mídias e redes sociais, visto que se agrega em grande medida ao marketing – o consumo (restrito a um grupo seleto de pessoas) de produtos desse campo e sua divulgação ocasiona a popularização tanto dos consumidores quanto dos serviços e seus produtores. “Esta foi uma forma do mercado publicitário aproveitar o momento de espetáculo midiático vivenciado pela área da gastronomia, no qual chefs se tornaram estrelas, para vender produtos”, esclarece Rodrigo Maranhão, coordenador do Centro de Pesquisas em Gastronomia Brasileira da Universidade Anhembi Morumbi.
Os efeitos colaterais dessa relação, porém, rendem críticas como o alto valor cobrado e até mesmo a qualidade e eficácia da atividade, como ressalta Maranhão, que atenta para o fato de que “as experiências são válidas e fazem parte da gastronomia, mas boa parte desaparece no turbilhão da incompetência”.
Não por menos, a apreciação pelo gourmet acaba perdendo adeptos – tanto consumidores quanto chefs. O chef Ivan, que vende massas, é um deles. Ele afirma que chegou a entrar na “onda da gourmetização”, mas que, por preocupação em relação à facilidade com que as pessoas consumiam aqueles produtos corriqueiros a preços caros, interrompeu essa forma de produzir. Na opinião dele, “[a gourmetização] já vai tarde”.
MESA SUSTENTÁVEL
Pensando além do produto final, muitos chefs e donos de estabelecimentos gastronômicos têm lutado em contraposição ao encarecimento e gourmetização dos pratos e, assim, têm procurado aplicar princípios da sustentabilidade nas rotinas de seus empreendimentos.
Daniel Coelho de Oliveira, doutor em sociologia e professor da Universidade Estadual de Montes Claros, acredita que “um dos maiores avanços da gastronomia e dos chefs é a aproximação com os produtores”, fazendo com que exista uma relação mais sustentável no processo alimentar como um todo. Maria Celia Martins de Souza é pesquisadora científica do IEA (Instituto de Economia Agrícola da Secretaria de Agricultura e Abastecimento de São Paulo) compartilha da mesma visão. “Isso tudo ajuda o produtor a ter garantia de compra”, observa.
O Brasil é um dos países que mais desperdiçam alimentos no mundo. Segundo Viviane Romeiro, da instituição de pesquisa World Resources Institute Brasil, o país desperdiça 41 mil toneladas de alimentos por ano. Apesar de uma significativa melhora nas últimas décadas, 7 milhões de brasileiros ainda convivem com a fome, segundo dados do IBGE.
Diante desse cenário, outras formas de produção precisam ser elaboradas, como o bom uso da terra, redução ou eliminação do desperdício e da utilização dos adubos químicos, valorizando os pequenos produtores e a produção local.
Maria Henriqueta Gimenes é doutora e professora das áreas de Gastronomia e Hospitalidade na Universidade Anhembi Morumbi e destaca que “a sustentabilidade precisa ser pensada em todas as etapas, desde a produção, distribuição, preparo e consumo de alimentos, incorporando preocupações ambientais, mas também sociais e culturais”.
O controle do desperdício é um dos pontos importantes na sustentabilidade e é necessário para pautas como o combate à fome. A falta de informação pode ser o principal agravante. Souza conta que muita gente descarta a folha de beterraba ou de cenoura, que contém muitos nutrientes. “Você pode fazer sopa, caldo, tempurá e diversos pratos”, recomenda.
Verônica Cortez Ginani, doutora em Nutrição Humana e professora da Universidade de Brasília, observa que o uso adequado do alimento pode reduzir seu desperdício, e isso “abrange desde o planejamento das quantidades que serão consumidas e como serão consumidas, ou seja, conservação apropriada durante o armazenamento e distribuição, além de outros aspectos, até o aproveitamento integral das partes comestíveis”.
Essa perda de alimentos pode acontecer de diversas formas, como por exemplo ao cair o caminhão durante o transporte, ou mesmo ficando em estoque. Cerca de 1,3 bilhão de toneladas de alimento são desperdiçados no mundo, quase um terço de tudo o que é produzido, causando impacto significativo na economia e no meio ambiente, segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação).
Eduardo Mazzaferro Ehlers, doutor em ciência ambiental e professor do Master em Gestão de Sustentabilidade, da Fundação Getúlio Vargas, realça que “além de evitar desperdícios, uma gastronomia mais sustentável valoriza cada vez mais os alimentos cujo processo produtivo minimiza ou elimina os impactos ambientais e sociais”, destacando a necessidade de uma mudança em nossos padrões de consumo, “pois estamos acostumados a avaliar o sabor e a aparência de um prato, mas numa gastronomia mais sustentável temos que olhar não só para o que está servido, e sim para todo o processo de produção, do campo à mesa, considerando os aspectos sociais, ambientais e econômicos”.
Souza chama atenção para o Festival Disco Xepa, iniciativa criada pelo movimento Slow Food – existente no mundo todo para a conscientização sobre um consumo responsável de alimentos – para estimular o uso de alimentos que ainda estão bons mas que, por uma aparência não tão agradável, são descartados. “Eles fazem festas na rua, com djs, convidam alguns chefes e pegam xepas, justamente para alertar as pessoas. Pegam as folhas que são descartadas e fazem um sopão, procuram dar uma aparência boa, é uma forma de informar e reduzir o desperdício”, explica.
O movimento Slow Food é apenas um dentre inúmeros outros que buscam alternativas sustentáveis e ecologicamente corretas dentro da gastronomia. Aqui no Brasil, chefs e empreendedores tem se empenhado e se destacado na área, exemplo de Teresa Corção e os Ecochefs.
CONTRA A MARÉ
Teresa Corção, designer de formação e cozinheira por paixão, é a fundadora do grupo Ecochefs – cozinheiros profissionais, donos de restaurantes, professores e consultores que “desejam transformar a cadeia alimentar atual”, afirma ela. “A gastronomia sustentável é uma meta a ser atingida, não exatamente já alcançada. Por isso, não julgamos nem controlamos”, declara. O projeto é filho do instituto Maniva, da mesma fundadora, que em 2007 começou suas atividades.
O Maniva trabalha com a valorização dos produtos e subprodutos da mandioca que, segundo a chef, é um alimento ancestralmente ligado ao povo brasileiro, pois era a base da alimentação dos índios antes da colonização europeia, porém carece de destaque no interesse gastronômico, atualmente, apesar de ser o produto de maior cultivo de agricultores familiares no Brasil.
Corção tem consciência de seu papel de influenciadora, sob os vários aspectos que pode exercer. “Comida é energia, o modo de nos alimentarmos influencia o uso energético do planeta, no presente e futuro. Os chefs, como porta vozes dessas escolhas, são peças fundamentais nessa conscientização”, afirma ela. Primeiro, a responsabilidade para com o agricultor e sua sobrevivência. A chef acredita na importância dos alimentos orgânicos e critica a falta de investimento na logística e distribuição para que os produtos da agricultura familiar agroecológica ou orgânica cheguem ao grande público a preços razoáveis.
Oliveira diz que os alimentos classificados como orgânicos possuem um preço mais elevado porque “isso envolve um processo de certificação extremamente caro para o produtor e isso é transferido automaticamente para o preço do produto”. Outro motivo é a “incipiência do conhecimento prático e científico sobre a agricultura sustentável”, aponta Ehlers.
O sociólogo destaca que há formas mais baratas de garantia que o alimento em questão seja provindo da produção orgânica, como o circuito de feiras agroecológicas no Rio de Janeiro, que acontece cada dia da semana em um ponto da cidade, com um acompanhamento da prefeitura. “Essa ideia de construir circuitos curtos de compras de pequenos agricultores ou produzir parte da sua alimentação nos locais próximos do consumo permite três questões, baratear o preço, diminuir a pegada ecológica e garantir a qualidade para o consumidor”, conta.
Outra questão que vem ganhando destaque é a agricultura urbana. “A criação de hortas, particulares ou comunitárias, é uma iniciativa que precisa ser incentivada”, aponta Gimenes. Além disso, Daniel Coelho lembra que “há prefeituras que estão apresentando projetos alternativos de incentivar a produção em áreas domiciliares”.
Ginani aponta que “espaços públicos também podem ser usados para a produção orgânica de alguns insumos, principalmente em populações mais carentes”
Incentivos para a agricultura familiar são essenciais nesse processo. Cerca de 70% dos alimentos consumidos no Brasil são provindos da agricultura familiar, pois “boa parte da nossa produção agrícola de larga escala é destinada ao mercado externo, e, além disso, a maioria da produção da agricultura familiar é de natureza orgânica ou agroecológica”, acrescenta Oliveira.
A agricultura recebe diversos incentivos, diretos ou indiretos, do governo. A redução na tributação e na taxa de importação de determinados setores acarreta no estímulo dessas áreas. “Uma das práticas de viabilizar o crescimento da produção de orgânicos no Brasil é uma intervenção direta do estado através de políticas de subsídio”, constata Daniel.
No Brasil, existe o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Desenvolvimento Social de Combate à Fome, criado no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da SIlva, que é ligado a ações de distribuição de alimentos agropecuários provenientes de agricultores familiares, assentados da reforma agrária, comunidades indígenas e demais comunidades tradicionais. O governo adquire parte de sua produção, que compreende frutas, hortigranjeiros, grãos e oleaginosas, laticínios, carnes, pescados e outros, e a distribui para uma rede socioassistencial, formada por pessoas em situação de vulnerabilidade social.
Concomitantemente, o programa garante e regulamenta vendas diretas da agricultura familiar em pólos de compras instalados próximos aos locais de produção.
Há ameaças advindas do posicionamento do atual governo de Michel Miguel Elias Temer Lulias sobre programas como esse. Um indício é a extinção, em outubro de 2016, por meio do decreto 8889, do Departamento de Geração de Renda e Agregação de Valor da Secretaria de Agricultura Familiar, que foi fundamental na criação e implementação do PAA. O corte de verba para a reforma agrária para 2017, protagonizado também por este governo, coloca mais sombras a frágil sustentação da agricultura familiar, juntamente à redução de verba direto ao PAA – de R$478 milhões para R$294 milhões, segundo reportagem da Folha. Isso levará a eliminação de 50 mil famílias atendidas pelo Programa.
Teresa enfatiza que “os bons programas PAA e PNAE estão em risco no momento”, mas continua ciente da responsabilidade ambiental que os restaurantes possuem, mesmo mediante a falta de incentivo para o acesso aos produtos orgânicos. Ela destaca a importância da autoavaliação dos chefs e da dedicação às práticas sustentáveis – uso total dos alimentos, com desenvolvimento de receitas que ajudem a diminuir o desperdício, uso de ingredientes de acordo com suas sazonalidades e de plantas alimentícias não convencionais (as PANCS).
Uma reforma agrária pode ser uma boa alternativa, mas junto da política de distribuição de terras deve existir um planejamento do Estado, além da criação de uma estrutura necessária para a produção. “A questão não é só dividir terras, porque pode ser feito um assentamento numa área distante do mercado consumidor, e se o Estado não oferece nenhum apoio específico para a produção, certamente num período curto esses assentamentos vão ser esvaziados e não serão viáveis”, pondera Oliveira.
Mesmo com o preço ainda elevado dos alimentos orgânicos, Souza acredita que vale a pena consumí-los e que o valor desses produtos é “o custo real de se produzir em uma escala menor, sem tanto veneno, sem tanto adubo químico” e que um gasto maior com alimentos valerá a pena, e indaga: “Qual é o custo de você não desenvolver câncer?”
Gimenes sugere que uma alternativa ao preço alto dos alimentos orgânicos é “se concentrar na compra de alimentos que tendem a receber mais agrotóxicos ou intervenções hormonais, como o morango e o frango”. A opinião generalizada é que a informação é parte fundamental na construção de uma gastronomia mais sustentável, mas há grandes interesses para enfrentar.
Uma polêmica recente no congresso foi o fim da rotulagem de alimentos transgênicos, o que fere o poder de decisão do consumidor. É necessário que esse tipo de informação seja pública e transparente, informando não só o modo de produção proveniente, mas também quais são os impactos desses produtos no organismo humano e no ambiente.
“A política de informação é essencial, e o estado tem um papel importante nesse processo, de oferecer ao consumidor o maior número de informações possíveis para que ele tome a decisão e os riscos que ele achar conveniente”, argumenta o sociólogo. Segundo Gimenes, “a chave é a informação e conscientização dos diferentes agentes envolvidos nesse processo, desde produtores, representantes da indústria alimentícia e também consumidores”.
Além das políticas de incentivo governamentais e do acesso à informação, Souza também destaca que é necessária uma “mudança nas escolas de agronomia e incentivo à pesquisa, pois as formas e as técnicas de cultivo orgânico precisam de muita pesquisa e divulgação para os produtores e principalmente para o consumidor”.
Uma gastronomia sustentável necessita de participação, mobilização, informação, incentivos, políticas públicas e de uma maior aproximação entre produtor e consumidor. A alimentação precisa ser (e tem sido) pensada com muito mais carinho e sagacidade. Alimentar o corpo e a alma – equilíbrio, equidade. Um grande passo na libertação do homem de suas correntes hostis.