O Brasil vem mostrando ao mundo como a moda pode se tornar acessível e inclusiva.
Por Bárbara Costa e Mariana Fernandes
Descrição da imagem #PraCegoVer: Três mulheres cadeirantes sorridentes. Estão com um vestido preto, maquiadas e com penteados no cabelo. Elas estão em um palco de Teatro, todas com o rosto voltado para o canto esquerdo. Ao lado delas, também à esquerda, há uma menina em pé. Ao fundo há um arco de bexigas. (Foto: Lu Gomes)
A inclusão vai muito além de calçadas acessíveis ou oportunidades no mercado de trabalho – medidas que são essenciais, mas não devem existir de maneira isolada. De acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas), na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (PcD) realizada em 2006, é dever da sociedade se tornar inclusiva. É necessário, portanto, deixar de olhar a deficiência através dos lugares comuns e entender que a inclusão está na garantia de um desempenho social pleno por parte das PcDs.
Todos devem, por exemplo, escolher, sem restrições, quais roupas desejam usar. No entanto, na maioria das vezes, as pessoas com deficiência são excluídas da indústria da moda. Não é comum vermos nas passarelas modelos cegas ou com mobilidade reduzida, por exemplo. No entanto, essas pessoas também possuem gostos, autoestima e preocupam-se com a aparência.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que 6,2% da população brasileira vive com algum tipo de deficiência. A Pesquisa Nacional de Saúde mais recente é de 2013, feita pelo IBGE em parceria com o Ministério da Saúde. Foram considerados quatro tipos de deficiências: auditiva, visual, física e intelectual. A visual é a mais comum e atinge 3,6% dos brasileiros, enquanto 1,3% da população possui algum tipo de deficiência física e quase a metade deste total (46,8%) têm grau intenso ou muito intenso de limitações, ou ainda não consegue realizar as atividades habituais.
Confira os principais dados sobre Pessoas com Deficiência na Pesquisa Nacional de Saúde de 2013 feita pelo IBGE no infográfico:
Ou seja, está mais do que na hora de a moda pensar nas pessoas com deficiência também como público-alvo. As roupas tradicionais do mercado corrente não são inclusivas e costumam apresentar inúmeras dificuldades para as PcDs. Ariani Queiroz, cadeirante, é membro efetiva do Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência (COMUDE) de Bauru (SP), de acordo com ela, simples atos do cotidiano podem ser duras tarefas para quem tem mobilidade reduzida: “A maior dificuldade é vestir, nem todas roupas são fáceis de abotoar. O zíper não facilita para quem não tem movimento de garra nas mãos”.
Ações como ir a uma loja escolher uma peça de roupa também podem se tornar complexas devido à falta de acessibilidade. Sidney Andrade é escritor e cego, para renovar seu guarda-roupa precisa da ajuda de terceiros: “Ir na loja ou comprar online são sempre experiências desagradáveis, já que esses ambientes não costumam oferecer acessibilidade de acesso. Não posso ir a uma loja comprar roupas sozinho, preciso sempre estar acompanhado para que me descrevam, mas acabo mesmo escolhendo pelo caimento e conforto ao vestir do que pela aparência”.
O pioneirismo brasileiro
A partir dessa demanda, surgiram iniciativas importantes como o Concurso Moda Inclusiva, realizado pela Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Governo do Estado de São Paulo. Projetos como este permitem que jovens estilistas possam trabalhar para facilitar e empoderar as pessoas com deficiência, já que são elas as protagonistas nas passarelas dos desfiles.
O Concurso foi o primeiro a ser realizado no Brasil, com início em 2009; segundo pesquisas, é também inédito no âmbito internacional nesse formato. O projeto surgiu de uma ideia conjunta de Daniela Auler, idealizadora e coordenadora do concurso, com a atual Secretária de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Dra. Linamara Rizzo Battistella. As pesquisas no hospital Rede de Reabilitação Lucy Montoro começaram para verificar como a moda poderia auxiliar na reabilitação dos pacientes.
A partir da terceira edição, o Concurso passou a ser internacional, colocando o Brasil como modelo a ser seguido pelo restante dos países: “Nós somos pioneiros na questão da moda inclusiva. Porque nas pesquisas que nós fizemos tinham algumas lojas em Londres, no Canadá… mas somente com roupas específicas, por exemplo, para o cadeirante. A moda inclusiva é um conceito que vem através do Desenho Universal, na qual é uma moda para todos”, explica Daniela Auler.
Iniciativas como a do Estado de São Paulo estão se espalhando pelo país. O Instituto Social Nação Brasil, uma entidade de direito privado com sede no estado de Santa Catarina, realiza, há quatro edições, o Prêmio Brasil Sul de Moda Inclusiva. Segundo a organização, o evento tem como objetivo “contribuir para promover, na sociedade brasileira, um amplo debate sobre moda diferenciada, e ao mesmo tempo incentivar para a criação e produção de soluções e propostas em relação ao vestuário para as pessoas com deficiência”.
Outro lugar que criou o próprio projeto foi a Secretaria Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida da Prefeitura de Campinas (SP) com o Concurso e Desfile Moda Inclusiva Campinas, hoje em sua segunda edição. Segundo a organização, a finalidade é “promover a divulgação e a discussão acerca do conceito de moda inclusiva, incentivando o fomento da moda acessível à pessoa com deficiência, numa abordagem que evidencia, além da acessibilidade, o conceito de moda e beleza”.
Em 2016, no Piauí, foi realizado o primeiro Desfile de Moda Inclusiva, desenvolvido pela Assessoria de Inclusão do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí (IFPI) com a participação dos alunos do curso técnico de vestuário do Campus Teresina Zona Sul e do curso superior de design de moda do Campus Piripiri. O evento teve como proposta celebrar o Dia Nacional de Luta da Pessoas com Deficiência, dia 21 de setembro.
Descrição da imagem #PraCegoVer: Mulher cadeirante desfilando no palco do Teatro Municipal de Bauru. Ela está com um vestido preto, maquiada, sorridente com o olhar para baixo. Sobre seu colo há um tecido roxo. Ao fundo há um arco de bexigas. (Foto: Lu Gomes)
Com os concursos se espalhando por todo o Brasil, jovens estilistas são estimulados a trabalhar com o tema e, dessa forma, há também um avanço nas pesquisas, como afirma Daniela: “Eu vejo as pesquisas em crescente, porque só esse ano eu tive participação e orientei mais de dez trabalhos de conclusão de curso referente à moda inclusiva, em que as pesquisas vêm de diversas áreas como de tecido, modelagem, ergonomia, aplicativos”. De acordo com ela, o incentivo do governo aos estudos vem por meio do próprio fomento aos concursos: “A ideia é justamente essa, estimular os pesquisadores a criarem soluções para facilitar o dia a dia da pessoa com deficiência através da moda”.
No Brasil, com a moda inclusiva ganhando espaço no universo acadêmico, aos poucos é possível enxergar também um avanço no mercado. Apesar de ainda muito pequeno e sem conseguir atender plenamente a demanda do público-alvo, Daniela é otimista em relação ao futuro: “O mercado agora está começando a despertar para a moda inclusiva. Tem várias novas marcas, ainda poucas, mas é uma crescente, são mais de dez de moda inclusiva. Há também muitos estudos dentro de loja de departamento. Eu acho que é um processo que veio com a luta da pessoa com deficiência, na conquista da acessibilidade, do trabalho, do lazer e a moda vem com tudo isso”.
A inclusão por meio do Desenho Universal
Tentando conquistar seu espaço no mercado, a empresa de Bauru (SP) Somos Todos Nós, voltada para a moda inclusiva é considerada pioneira na área. A organização faz pesquisas desde 2011 com pessoas com deficiência para colher as demandas em relação às roupas. De acordo com a instituição, algumas PcDs chegam a levar duas horas para conseguir se vestir sozinhas. Eduardo Marques é universitário e é cadeirante, de acordo com ele, algumas alterações nas roupas tradicionais já seriam suficientes: “Talvez o uso das roupas de alta costura sejam um problema devido aos seus comprimentos, porém, com algumas adaptações em sua confecção, pode ser resolvido”. Além disso, ele acredita que seria interessante estilistas preocupados com a acessibilidade: “Acharia de grande utilidade, afinal, seria importante ter alguém que se importe com nossas vestimentas”.
Essa realidade está se mostrando cada vez mais plausível: Drika Valério é designer, técnica em moda e CEO da Somos Todos Nós. Já no seu Trabalho de Conclusão de Curso, em 2011, começou a trabalhar com o tema, o que fez com que ela ganhasse vários prêmios durante sua carreira, inclusive o 1º Lugar no 4º Concurso de Moda Inclusiva – São Paulo 11/2012.
Descrição da imagem #PraCegoVer: Drika Valério segurando algumas peças de roupas com a mão direita e na esquerda prancheta, caderno e caneta. Ela está com um vestido florido preto e branco, de cabelo preso e esboça um sorriso. Drika é branca e tem o cabelo preto. (Foto: Acervo Somos Todos Nós)
Drika Valério também segue o conceito do Desenho Universal, trabalhando de uma forma com que as peças possam ser úteis para todos. A ideia, portanto, não é fazer uma roupa específica para pessoas com deficiência, é criar algo inclusivo: “Para uma peça se tornar acessível, é necessário adaptá-la de acordo com a necessidade do usuário, neste caso eu sugiro projetar a peça já para ser inclusiva, pois se todas as peças já viessem com esse pensamento, não seria necessário adaptá-las”, explica.
O conceito está de acordo com a própria luta das PcDs, que aspiram poder levar uma vida com as mesmas oportunidades que o restante da população, como pontua Sidney Andrade: “Eu não quero uma coleção de roupas para cegos. Eu quero poder escolher usar as mesmas roupas que videntes usam. Poder escolher entre as mesmas opções que pessoas sem deficiência escolhem é inclusivo”.
Uma peça inclusiva pode ter alterações como: etiqueta em braile, para que o cego tenha uma descrição de como é o produto; velcro no lugar do zíper; abertura no decote, para facilitar a passagem da cabeça; porta-almofada nas costas, para o conforto daqueles que passam muito tempo sentados; tecidos inteligentes, como o dri-fit que evita a retenção do suor; entre outras mudanças que mudam completamente o cotidiano de quem é PcD.
Um exemplo de peça de roupa que se tornou um pesadelo para as pessoas com mobilidade reduzida é a calça jeans: “É a campeã de reclamações, quase impossível de vestir para uma pessoa na cadeira de rodas”, aponta Drika. A solução encontrada pela designer foi a criação da Calça Jeans Inclusiva Adaptada STN: contém o mínimo de costuras para não incomodar quem fica sentado o dia inteiro, possui o fecho com velcro para facilitar a vestimenta, tem abertura total na parte da frente, além de dar conforto para aqueles que necessitam usar fraldas, pois contém forro impermeável.
Ariani Queiroz sempre desfila como modelo para o projeto de Drika, ela acredita que ações como os desfiles podem empoderar a autoestima da pessoa com deficiência: “Foi muito emocionante, eu desfilei pela primeira vez na REATECH/2013, é uma feira anual voltada para tecnologias que melhoram a vida da pessoa com deficiência, imagina gente do estado e Brasil todo, foi muito gratificante. Acredito que ações como essa, além de elevar a autoestima da pessoa com deficiência, faz com que a sociedade passe a ter outro olhar sobre nós”.
Iniciativas como essas ainda são pontuais e a moda tradicional de passarelas precisa ampliar a sua área de atuação e conceito de público. Para Sidney, além dos padrões determinados pela moda, muitos outros deveriam ser repensados: “Por ser pessoa com deficiência, obviamente, eu acho prejudicial qualquer tipo de padrão imposto, até porque sou visto como anormal justamente por causa de um padrão de corpo bonito e funcional que é exigido socialmente. Gostaria de viver num mundo onde não fosse um fator excludente escolher esta ou aquela peça de roupa”.
Para Ariani, ainda é preciso muita luta por parte das PcDs: “Na alta costura não tem espaço para as pessoas com deficiência, não se preocupam não, assim como em praticamente todos seguimentos da sociedade. Nós pessoas com deficiência ainda precisamos lutar muito para ter nosso espaço garantido na sociedade, tudo ainda é muito difícil”. No entanto, ela mantém o pensamento positivo e apoia mudanças como a que a moda inclusiva proporciona. Para ela, é com “ações de reconhecimento e respeito, que o preconceito deixará de existir!”.