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O corpo se volta contra nós – Relatos de Tortura

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Eu cuido não prendo

Cartaz Luta Antimanicomial. FOTO: Reprodução

A frase do psicanalista Hélio Pellegrino relata como funcionavam os sistemas manicomiais no Brasil

Por Bruna Moura, José Miguel Toledo, Stephany Mello e Yara Lombardi

Em 1874, o romancista e poeta Victor Hugo afirmava que “a tortura deixou, para sempre, de existir”. Infelizmente, o século XX e XXI ainda carregam traços da crueldade de torturadores. Segundo dados da Anistia Internacional, a tortura física, moral e psicológica é, ainda hoje, sistematicamente aplicada e aceita por governos de 60 países. A tortura foi comumente aplicada em como parte substancial de métodos de interrogatórios da polícia e forças militares, sendo praticada para a obtenção de informações, além da crueldade em humilhar, intimidar, aterrorizar e punir prisioneiros. O que pouco se discute é que, em alguns períodos da história a tortura foi utilizada como método de cura.

O falecido poeta e psicanalista Hélio Pellegrino, que em 1983 integrou a Comissão Teotônio Vilela para as Prisões, do grupo Tortura Nunca Mais, fez ensaios interessantes sobre como a tortura afeta a mente e o corpo da vítima. Segundo Hélio, a tortura busca, por meio do sofrimento corporal, semear a discórdia entre o corpo e mente.

“É através da tortura que o corpo volta-se contra nós”

 Hélio Pellegrino, psicanalista.

Nos comovemos ao escutarmos histórias de presos políticos em épocas de ditadura militar, sobre como as torturas atingiam corpo e alma das vítimas mas, muitas vezes, apagamos da mente e da memória a história vivida por muitas vítimas em manicômios.

O termo manicômio surge a partir do século XIX, remetendo ao hospital psiquiátrico, com a função de dar um atendimento médico sistemático e especializado. Essas instituições acolhiam e assistiam aos chamados “loucos” – pessoas que, de alguma forma, se diferenciavam na sociedade.

As primeiras instituições foram as europeias, criadas no século XV. Já no século XVII, foi quando houve a proliferação dos manicômios e até mesmo pessoas marginalizadas passaram a frequentar o local. Com uma lotação cada vez maior, os tratamentos desumanos passaram a ser mais frequentes.

É assim que surgem os depoimentos de estudiosos da época, como o francês Jean-Étienne Esquirol, que retrata o quadro em que se vivia nessas instituições:

“Eles são mais maltratados que os criminosos; eu os vi nus, ou vestidos de trapos, estirados no chão, defendidos da umidade do pavimento apenas por um pouco de palha. Eu os vi privados de ar para respirar, de água para matar a sede, e das coisas indispensáveis à vida” revela Esquirol.

Diversos depoimentos como o de Esquirol, um importante estudioso destas instituições no século XIX, retratam este quadro:

“Eu os vi entregues às mãos de verdadeiros carcereiros, abandonados à vigilância brutal destes. Eu os vi em ambientes estreitos, sujos, com falta de ar, de luz, acorrentados em lugares nos quais se hesitaria até em guardar bestas ferozes, que os governos, por luxo e com grandes despesas, mantêm nas capitais”, afirma Esquirol.

O Brasil, infelizmente, não foi um bom exemplo no que tange o tratamento de pessoas com distúrbios mentais. Em 1961, acontece uma das primeiras denúncias de maus tratos de pacientes no Brasil, no hospital psiquiátrico de Barbacena, em Minas Gerais. Ainda que seja um fato recente, a história macabra do manicômio permanece desconhecido pela maioria dos brasileiros. Inspirada por isso, a jornalista Daniela Arbex abriu um caixão – há muito tempo enterrado – e desvendou os abusos e absurdos que acontecem no hospital no livro Holocausto Brasileiro, lançado em 2013.

A escrita pesada e densa conta qual era a rotina dos internos e estima a morte de 60 mil deles ao longo dos anos no hospital, por maus tratos e torturas, de uma vida em condição sub humana. Esse número foi divulgado apenas em 2008, em uma publicação editada pelo Governo de Minas Gerais chamada Colônia.

Em alguns momentos, o livro revela que os internos eram jogados em pátios, nus, em meio ao frio congelante das montanhas mineiras e passavam ali o dia todo.

Essas atrocidades começaram a diminuir quando, finalmente, a reforma psiquiátrica ganhou voz dentro de Minas Gerais e no Brasil, em 1979. Mas ainda assim sabemos que as mudanças tardaram a aparecer e ainda existem resquícios dessa realidade em muitas instituições. 

 

O choque de outra realidade

Relatos de uma estagiária que trabalhou por um ano e meio em um hospital psiquiátrico no interior de São Paulo em 1998

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Hospital Psiquiátrico nos dias de hoje. FOTO: Mauricio Lobo Rojas Cid

O ano era 1998, eu tinha mais dois anos para me formar em Psicologia quando consegui meu primeiro estágio da vida em um hospital psiquiátrico. Como minha mãe já era assistente social e me indicou a vaga, o presidente da instituição, mesmo um pouco contrariado, concordou em me contratar mesmo depois de uma entrevista cheia de arrogância e atemorização. Ainda me lembro que, para ele, eu era muito “patricinha” para aguentar qualquer coisa naquele lugar.

A primeira vez que entrei na instituição tive as piores impressões: o cheiro era muito ruim e o visual era péssimo. Ver aquelas pessoas daquele jeito… a ala feminina era muito chocante, um dos locais onde apanhei muito e até os enfermeiros tinham medo de entrar lá. Para eu chegar na ala masculina tinha que passar pela feminina, no caminho haviam vários portões de ferro, chaves e grades, e todos tinham que ficar bem espertos porque dependendo da forma e se não fossemos rápido nos pegavam e nos agrediam. Tudo era bem complicado.

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Corredor Hospital Psiquiátrico. FOTO: Mauricio Lobo Rojas Cid

Nessa ala várias pessoas ficavam nuas e sujas, não posso afirmar se não limpavam, mas era fato que defecavam ali e o cheiro era horroroso toda vez que passávamos lá, era angustiante.

Eu fui trabalhar na ala masculina, na época eles eram nomeados como os psicóticos e os adictos. Eu e o psicólogo da instituição tínhamos como uma de nossas metas fazer uma divisão entre eles. Pois os adictos após passarem pelo processo de limpeza das substâncias e pela fase abstinência, não tinham nenhuma questão cognitiva e, depois de um tempo, eles começavam a abusar pessoas que tinham outras condições.

O projeto era separar as alas, começar trabalhar a laborterapia e, assim, sair um pouco da institucionalização. Os adictos, nesse processo, podiam trabalhar com hortas, pinturas e desenvolver habilidades que o hospital não oferecia. Um fato a ser pensado é que eu era a única mulher trabalhando e fazendo laborterapia com eles, isso porque eram vistos com preconceito. 

A própria intervenção do ócio se fazia importante para não haver mais violência do que já tinha nas relações dentro do hospital. Mas como sempre a questão da instituição tornava muito difícil implantar coisas novas, mesmo sendo algo positivo. Vários técnicos tentavam algo novo e eu também, porém como estagiária recém chegada eu ainda estava tentando conquistar meu espaço. No período de um ano e meio em que estagiei, sei que nós conseguimos umas tintas para eles começarem a se expressar através da pintura e também individualizamos alguns espaços comuns como, sala de leitura e quartos.

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Área externa Hospital Psiquiátrico. FOTO: Mauricio Lobo Rojas Cid

Lembro-me de ver muitas pessoas com machucados no rosto e dos pátios enormes onde eles, principalmente os adictos, tratavam tudo bem de modo assistencialista, a base da troca, o cigarro era uma das moedas mais utilizadas, pois independente da idade quase todos fumavam para baixar a ansiedade.

Havia um moço – uma figura bem grande – que se batia muito, em todos os lugares, e quando o psicólogo falava “pode parar que você quer um cigarro!” ele parava no ato, isso só para perceberem o poder do tabaco entre eles.

E eram camisetas e coisas novas que apareciam com pessoas que não tinham da onde ganhar a não ser dali, era a relação de troca de favores. Mas se havia algo que me deixava bem triste era o fato de alguns trabalhadores do hospital usarem dessa relação e seus poderes para se favorecerem no aspecto sexual com quem não podia se defender.

Uma das minhas funções era observar um deles, ele achava que ele era quem me ajudava, mas quem estava o tempo todo em cima era eu. Era minha orientação ver essa questão dos tratos e ele tinha um certo “Q” por um psicótico residente sem condições de se proteger. Mesmo com algumas intervenções, o hospital não podia tirar o enfermeiro, isso era uma questão bem difícil.

São muitas histórias para contar, mas a questão da sexualidade e as mulheres internas são dois destaques da minha vivência na instituição. Havia casos delas se despirem e irem para cima do pênis a ponto do homem que estava passando ter que deitar de barriga para baixo para não ser molestado e quando isso ocorria tinham que fazer as contenções.

Um fato interessante é que me diziam que a sexualidade dos homens era regulada pela medicação e para as mulheres não havia medicamento que baixasse a libido. Até uma vez havia acabado a medicação para os homens e eles tinham comido banana na janta e foi a festa da banana a noite e no outro dia era banana para todo os lugares imagináveis, seria cômico se não fosse trágico.

Em nosso hospital a questão feminina era bem mais forte mesmo, antes de eu entrar trabalhar lá, uma menina da ala das mulheres atacou, feriu e chegou a matar um dos enfermeiros, foi algo muito pesado e velado.

Para conter atitudes de violência havia as contenções e medicamentos. Mas sei de histórias que me contaram do uso de eletrochoque e algum outro método com água que ficavam escondidos e foram utilizados mesmo depois de proibidos.

Sobre esses cuidados específicos, lembro de um senhor que estava delirando muito na ala dos adictos e eu estava sozinha com ele, fui buscar ajuda e depois vi a questão da contenção, ele ficou, por dias, todo amarrado na cama tomando soro.

E outro dia, pela manhã, aconteceu uma cena que nunca sairá da minha memória das coisas mais complexas que eu vi. Um senhor tinha acabado de tomar café estava com um ratinho na mão e ele comeu o ratinho, simples assim. Foram vários enfermeiros para tirar o rato dele e ele o estava incorporando nele mesmo, foi horrível.

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Refeitório. FOTO: Mauricio Lobo Rojas Cid

De certo modo em um primeiro momento é muito impactante você entrar em contato com essa realidade e depois você vai conseguindo lidar aos poucos, mas de qualquer forma é sempre chocante ver o ser humano nessas situações. Essa foi a primeira vez que me deparei com pessoas realmente sem expectativa e aprendi que em lugar de muita dor as pessoas criam algo bom para superar… a Resiliência! 

Esse foi o relato da psicóloga Cláudia Hoffman sobre suas vivências em um manicômio brasileiro, por Stephany Mello.

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FOTO: Mauricio Lobo Rojas Cid

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