Esquinas diferentes para a mesma história: Índio vive dois mundos com dois papéis opostos no mesmo dia
Por: Lorenzo Santiago
Esquina da Rua José Ranieri com a Capitão Alberto Mendes Junior. Um bar com a fachada meia azul meia branca. Um bar com quatro mesas na rua parece tomar conta do lugar no sábado 11 de setembro às 13h20. Na parede lateral, anexa a uma rua sem saída, está pintada a frase: “Sede Social do Cruzeiro F.C”. Umas 40 pessoas estão reunidas. Algumas bebem uma cerveja, outras conversam num tom calmo, outras jogam ideia fora enquanto fumam cigarro. Uma carro na esquina oposta está com uma bandeira de um 1 metro e meio por 1 e 20 cm também azul e branca, pendurada na janela. Quase todos ali estão com uma regata com o mesmo distintivo na frente. Uma moto passa a milhão e o motorista grita: “Óh o Cruzeiro aê!”.
Esquina da Avenida Orlando Ranieri com a Doutor Luiz Gonzaga Machado. A noite caiu à pouco e o movimento cresceu no mesmo sábado 11 de setembro. Uma placa meio desbotada traz o nome “Camflam Lanches”. Os carros vão chegando aos poucos e as 40 mesas vão ficando preenchidas a ponto de não ter mais lugares disponíveis. O movimento é intenso dentro do restaurante. Fora dele, as motos de entrega também não param. Saem e voltam a todo instante. Eram 19h10 e o movimento ficaria assim até as 22h30.
É nesses dois ambientes que Lucas Fabiano, o Índio, protagoniza sua vida e seu dia a dia. O mesmo personagem, mas duas vivências e participações totalmente diferentes. Quase que duas pessoas em uma só, no mesmo dia.
Índio acorda às 7h. Levanta da cama, vai pra cozinha, pega um pão, abre, recheia com manteiga e come enquanto passa o café. Serve sua esposa, Eunice, na cama, e dá uma olhada no quarto do filho Pedro Henrique, que tem 6 anos. Volta pro quarto, abre uma gaveta e puxa uma pasta. Vai pra sala e espalha os documentos dela. “Aqui tem a ficha de todos os jogadores que vão pra campo hoje. Infelizmente o Fabinho tá machucado e não vai”.
Lucas é presidente do Cruzeiro, clube da segunda divisão do futebol amador de Bauru. Quem não conhece definitivamente não sabe o que está em jogo no esporte da cidade.
“O Cruzeiro leva o nome não só do time, mas do bairro da Vila Cruzeiro. Eu falo pra eles toda vez, vocês podem não ganhar no campo, mas têm que representar a nossa quebrada lá dentro, dar a vida e sair de campo todo arrebentado se for preciso”.
Lucas Fabiano checa ficha por ficha e confere o RG de cada um dos 25 atletas. Pega a prancheta e esboça o time que vai a campo. “Se não ganhar hoje vai ficar foda pra passar pra próxima fase”.
O Cruzeiro Futebol Clube completa 50 anos em 2019 (imagem Facebook Cruzeiro)
São 12h e Lucas almoça com a esposa e o filho. Mesmo com 27 anos, ele já é pai de família e carrega várias responsabilidades nas costas junto com Eunice. Os dois conversam sobre como pagar as contas de luz e água naquele mês, quem faria o quê e quanto cada um tem em conta.
Depois do almoço os dois se levantam da mesa, cada um lava sua louça e Eunice, a do filho. O resto nas panelas vai pra geladeira. Todo mundo coloca o seu uniforme do Cruzeiro e entra no Uno MIlle 2005 rumo à sede que fica a 1 km da casa deles.
Ainda são 13h20 e o movimento na sede é tranquilo. Índio chega e cumprimenta um por um. O jogo é só às 15h30 no Mary Dota, mas os jogadores e a diretoria se mostram muito ansiosos. “Eu vou colocar o Bagagi no meio hoje. Se ele deitar a gente ganha esse jogo”, dispara o técnico Ricardo para Lucas, que ouve compenetrado e pensativo.
O primeiro rojão é lançado pro alto e 6 homens e 1 mulher entram no bar, pegam 2 surdos, 1 ripa, 1 caixa e vários artigos pirotécnicos. Começa a cantoria na sede. Quando dá 14h30, todos entram nos carros, sobem nas motos e seguem em carreata rumo ao Mary Dota.
“Hoje eu vou ficar no campo porque a gente precisa ganhar de qualquer jeito”, fala Índio para o zagueiro e capitão do time Dan Azevedo. “Eu fico no campo quando o jogo é muito nervoso, quando a gente precisa ganhar de qualquer jeito. Mesmo sendo presidente na arquibancada eu fico agoniado demais”.
O técnico é Ricardo, mas quem dá a letra sobre a escalação e a palavra final na preleção é Lucas. Ele pega a prancheta, orienta jogador por jogador, e fica muito enérgico na beira do campo durante o jogo todo. Ele é quem vai pro intervalo e motiva o time todo mesmo perdendo por 3 a 0 para o líder da competição.
Lucas se sente em casa nos jogos do Cruzeiro. Roda os quatro cantos de Bauru com o uniforme do time, discute com torcedores rivais e até briga defendendo as cores do time. Pela experiência e o tempo de rodagem no amador, tem respeito dos adversários mesmo com a pouca idade. Carlos Alberto é presidente do principal rival, Bauru 22, e tem o dobro da idade de Lucas. Ele é o primeiro a cumprimeitar Lucas ao término do jogo preliminar, que envolvia Bauru 22 e Nova Esperança. Dá um abraço e deseja boa sorte.
O presidente do Cruzeiro leva muito a sério o esporte. A família toda se envolve e o dia de Lucas muda completamente de acordo com o resultado. A semana muda. Prova disso é que depois da derrota por 4 a 0 para o Catadão, ele volta pra casa com um semblante todo diferente, bem mais quieto e observador. “Depois da merda que foi hoje a gente vai ter que arrumar tudo pra semana que vem. Ficou muito difícil passar de fase”. Ele volta com todos pra sede e ficam conversando sobre o resultado. Quase todos os jogadores param com Lucas, que vai falando com um por um, tranquilamente. São quase 18h15 e ele percebe que está atrasado para o trabalho. Corre pra casa com o carro, troca de roupa rapidamente, sobe na moto e parte para o Camflam.
Chega, conversa rapidamente com o dono da lanchonete, Fábio. Depois encosta no estacionamento com o outro motoboy da casa, Paulo. Lá ele espera até o movimento começar. Lucas roda a cidade inteira de moto. “Aqui a gente ganha por comissão de venda. Se vender muito, bom pra gente, se não a gente ganha menos, né”. Fábio sempre se dirige de forma direta, sem rodeios, com os dois motoboys. “Um vai pro Redentor e o outro pro Bela Vista. Sai em 10 minutos”.
Lucas sai e volta em 20 minutos. Lá ninguém chama ele por Índio. O único nome dele é Lucas Fabiano. “O foda de ser motoboy é que o chefe manda a gente agilizar e chegar o mais rápido possível. Se a gente corre, os lanches chegam virados e o cliente reclama. Se a gente não corre, o cliente reclama da demora. E ainda tem que ficar vendo notícia de que motoboy aumenta o índice de acidentes na rua. Além de ganhar pouco, todo mundo pesa na nossa cabeça”.
Lucas Fabiano tem até o ensino médio completo. Não fez ensino superior porque teve filho muito cedo e já tinha que trabalhar para ajudar em casa. “Tem poucas coisas que eu sei fazer. Motoboy eu faço bem mesmo, mas tem que lidar com um monte de cliente folgado, que fica te desrespeitando pela sua profissão”.
O trabalho segue na correria até as 23h30, quando termina o expediente. Foram ao todo 23 corridas só para o Índio. No final ele recebe de Fábio o dinheiro do dia. São R$ 20 fixos mais R$ 3 por corrida. Ele pega os R$ 89,00 do dia e volta pra casa.
Mesmo sendo uma lanchonete de bairro, o Camflam Lanches tem mais de 15 funcionários que trabalham diariamente (imagem Google Maps)
“A minha profissão é motoboy, mas a minha paixão é o Cruzeiro”. O dia a dia de Lucas se divide entre o trabalho remunerado e o não remunerado. Pelo Cruzeiro de dia, resolvendo burocracias, campanhas nas redes sociais para conseguir patrocínios e estudando o próximo jogo. À noite, a correria das entregas nas ruas de Bauru.
Defende o time como poucos. No futebol amador de Bauru são 76 clubes por quase todos os bairros acêntricos da cidade. Cada um com suas peculiaridades. Uns com mais, outros com menos torcida. Uns mais e outros menos históricos. Todos defendem suas cores e bairros em todos os espaços. “Pra mim é assim, a gente briga, discute e depende do dia, sai até na mão com gente que desrespeita e desmerece a nossa história. Tem gente que não entende a importância e acaba não dando valor. Mas a gente move muita gente nessa cidade”.
Lucas vive dois mundos diferentes. Em um tem cargo de liderança. Atrai muitas pessoas e exige uma atuação política, administrando a relação com outros clubes e com a Liga de Futebol Amadora. Tem também que gerir as relações internas do clube e reunir a torcida para mover a economia cruzeirense.
No outro tem um trabalho informal que completa o sustento de casa. A esposa é atendente de telemarketing e os dois precisam pagar as contas no final do mês. Durante 6 noites da semana ele é motoboy fixo da lanchonete no bairro do Jardim Marambá. Mas o que dá prazer e aquilo que move Índio é uma coisa só.
“Se me perguntam na rua, eu respondo que sou presidente do Cruzeiro”