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“O mestre pernambucano”

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De office-boy a professor, do sertão à selva de pedra, Alberto mostra como a cultura brasileira mudou sua vida

Passava das 21h, em uma noite chuvosa de sábado ao som dos bares de Bauru, quando um grupo de pessoas se reuniu para em silêncio apreciar o que seus colegas tinham a dizer. Foi em meio ao Sarau da Casa da Capoeira que Alberto me deu alguns de seus minutos para conversar.
Aos 54 anos, Alberto de Carvalho Pereira, pernambucano e sertanejo como faz questão de frisar, demonstra se sentir totalmente à vontade no lugar que construiu. Negro, com o sotaque já dissolvido após décadas em outro estado, suas sandálias e roupas confortáveis, aparenta ter uma expressão inicialmente severa que rapidamente dá lugar a uma postura gentil e acolhedora que mantém com todos que o cercam.
Formado em Educação Física na Unesp de Bauru, e natural de Afogados da Ingazeira, Alberto respeita e valoriza de forma genuína a cultura de seu povo e ressalta os benefícios de vivê-la.
Ao contar sua história, lembra como crescer no sertão há décadas atrás não era exatamente fácil. Para muitos, a busca por um espaço de melhores condições de vida e sobrevivência significava ter de juntar suas coisas e partir em direção ao Sudeste. Penúltimo filho de uma família com sete, o capoeirista troca a calma de Afogados pelo barulho e caos constante da Vila Gustavo em São Paulo aos 14 anos, com a pretensão de concluir seu ensino médio e trabalhar para ajudar os pais, começando como office-boy em uma construtora.
Logo ao chegar, a saudade dos folguedos, do Carnaval, da Folia de Reis e de todas as festividades de Pernambuco – um Estado onde a cultura popular, além de rica e presente -, o tomou. Ainda que de maneira parcial, Alberto encontrou na capoeira uma forma de suprir a falta que sentia das memórias de sua infância no Nordeste. Ele lembra que a arte da capoeira é de origem baiana, mas possui muitas ondas e vertentes, com as quais ele já havia tido um contato em sua cidade.
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Para ele, a prática regular dessa atividade começou com o então professor e atual mestre Paulo Carioca, que, por talvez uma coincidência do destino, ele voltaria a encontrar anos depois em Bauru, dando aulas na Pós-Graduação de Educação Física na FIB (Faculdades Integradas de Bauru). “O ‘ê vorta do mundo’ que cantamos na capoeira não é brincadeira” diz ele.
Os anos passavam e entre mudanças de emprego, o esporte seguia presente em sua vida, treinando com Paulo Carioca até 1986, um período de grandes mudanças. No mesmo ano, sua namorada engravida, levando-os à decisão de se casarem, não somente pelo bebê, mas por se amarem — amor que continua “firme e forte” até hoje. Vez ou outra, Alberto toma pausas para salivar e formular sua próxima frase, cumprimenta aqueles que passam e os lembra do ensaio no dia seguinte, sem perder o foco nas histórias que me conta.
O processo de mudança para Bauru seria a próxima etapa após a chegada de “Pedrão”, como ele carinhosamente chama seu filho. “São Paulo, crise econômica na década de 80, aquele desemprego terrível, a alternativa foi trabalhar [a mais]. Além de meu emprego fixo, fazia alguns trabalhos free, que acabaram consumindo o tempo que eu usava para praticar capoeira”, conta. Por volta do mesmo período, mais um acontecimento o marcaria, o assassinato do irmão mais novo. “Percebemos que morar na capital não era para nós, era hora de mudar para o interior. Pegamos então um mapa para decidirmos isso” completa.
Sua agora esposa sugeriu Tupã, sua cidade natal, mas ficar a 500 quilômetros de toda sua família materna não era viável. O acordo então foi ir para uma cidade grande que estivesse nesse caminho, e foi com o mapa na mão que escolheram Bauru. Ambos, trabalhando no extinto Banco Banespa, conseguiram suas transferências, organizaram tudo e então chegou a hora de voltar para a Capoeira.
A escolha foi criteriosa. “Percorri todas as capoeiras possíveis de Bauru até encontrar o Mestre Amaral, que tinha uma técnica mais parecida com a prática anterior que eu conhecia” afirma. Treinando como um dos mais velhos do grupo Ilha do Bonfim, sediado no Centro Comunitário do Geisel, junto ao Mestre Amaral ele conseguiu estruturar projetos, dando aulas em cidades como Duartina, Pirajuí, Presidente Alves, sempre com financiamento público. O grupo atingiu seu ápice no ano de 1998, realizando a graduação de 480 capoeiras no Sesi de Bauru.
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No entanto, após alguns anos juntos, intercorrências começaram a abalar o grupo. Em uma conversa com os membros, sem chegar a um acordo, uma parte dos alunos mais velhos resolveu se afastar do Mestre Amaral, surgindo então um novo problema: “Se a capoeira precisa de um mestre, que mestre iremos buscar?” O escolhido foi o Mestre Anapa, a quem acreditavam estar mais próximo da raiz do grupo, já que sua formação vinha do grupo Senhor do Bonfim, de onde se originara o Ilha do Bonfim, do Mestre Amaral.
Uma música começa no sarau ao nosso lado, e ele me explica um pouco sobre os diferentes tipos de capoeira. O Mestre Anapa atuava no momento em um trabalho de capoeira regional, que tem suas diferenças em relação à Capoeira Angola e à Contemporânea, configurando-se como uma prática mais sistematizada, conforme o próprio define. Essa novidade trouxe a atenção do grupo para a questão de preservação das tradições da Capoeira, uma postura bastante forte para os que praticam a Angola, mas que de certa forma se perde na Contemporânea.
Ao abraçar a regional, os treinos passaram a acontecer em um alpendre na casa de Alberto, ao passo que sua graduação chegava ao fim. Já formado, em 2005 ele adquire a então Academia Workout, renomeada de Academia Planet em sua direção. “Era uma academia bem estereotipada, só de marombeiros e jiujiteiros”, brinca, fazendo poses. O primeiro passo foi tentar uma transformação para trabalhar de maneira mais séria em relação a musculação, com avaliação física e prescrição de exercícios a partir de avaliações individuais. Infelizmente, após um ano, o negócio tornava-se inviável. Para Alberto, o mercado de trabalho de um professor de Educação Física é ingrato: “Muitas academias não pagam 13 º salário, férias, recolhem INSS. Pois a pessoa está lá todos os dias, mas é colocada como alguém informal. Isso precisa mudar, mas o CREF (Conselho Regional de Educação Física) não parece interessado em nada além de receber as mensalidades”. A necessidade de mais profissionais o fez perceber que a melhor escolha no sentido técnico não necessariamente era a melhor escolha no sentido empresarial. Antes que maiores prejuízos acontecessem, vendeu o estabelecimento e voltou para a garagem de casa.
Na mesma época, o Banespa, agora privatizado e englobado pelo Grupo Santander, o demite em um corte de gastos. Mas não houve tempo para se preocupar, pois Alberto passara em um concurso para um cargo efetivo como professor da rede pública no bairro Mary Dota. O ajuste de contas com seu antigo emprego, economias guardadas e um terreno recentemente adquirido deixavam o caminho livre para trazer um novo projeto a vida. Nascia, assim, a Casa da Capoeira. Mas o pernambucano ainda enfrentaria empecilhos.
“Capoeira é ‘coisa de preto’ e por isso não recebe o apoio necessário, muito pelo contrário”, conta. Logo no começo, a Associação de Moradores do bairro convocou uma reunião, se posicionando contra a construção do que chamaram de “barracão”. Ao fim da reunião, a tensão se instalou. “Falei que o terreno era meu, quem devia autorizar a construção era o poder público e eu já a possuía, não havia nada que pudessem fazer. Um deles me disse que eu podia continuar, mas tornariam minha vida um inferno. ‘Conheço o capeta e ele é meu chapa’ respondi”.
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Somos então brevemente interrompidos por um dos rapazes presentes no sarau, pedindo uma informação de como chegar em um lugar. Alberto não sabia a resposta, mais da maneira mais polida e solícita, disse que ao ajudaria. O aluno só tem elogios ao professor. “Ele é um mestre em vários sentidos para a Casa, ver o quanto ele gosta de fazer isso é inspirador para todos”.
Após uma fiscalização excessivamente exigente, a Casa foi finalmente inaugurada no dia 1º de agosto de 2006. Nesses nove anos de história muitos já passaram por ela, mas nem todos permaneceram. “Ela é uma manifestação cultural na forma de atividade física intensa. Costumo dizer que a Capoeira é para qualquer pessoa, mas não é qualquer pessoa que é para a Capoeira. ”
Alberto não sabe exatamente o porquê, mas há dois anos a saudade de Pernambuco voltou. Com um olhar nostálgico, relata a lembrança de “moleque”, na qual, junto com um amigo que se mudara de Recife para sua cidade, construía instrumentos para batucar, algo que a torcida do Sport, time de futebol pernambucano, faz até hoje. Tudo isso influenciado por uma nação de Maracatu que passara por Afogados da Ingazeira e o encantara.
Depois de trabalhar a vida inteira ele finalmente tinha a disponibilidade de pesquisar sobre a produção de alfaias e outros instrumentos associados ao maracatu, que podem ser construídos com macaíba, palmeira ou madeira de compensado. Alberto dedicou-se até dominar a técnica para passá-la adiante. Com a ajuda de mídias sociais, 18 pessoas compareceram para aprender sobre a produção dos tambores e como tocá-los. Foi quando ele partiu em busca da ajuda de batuqueiros da região.
O primeiro foi Tony, artista plástico de Piracicaba, também pernambucano e que comanda o bloco carnavalesco Bloco da Ema, além de um maracatu ligado à Nação Estrela Brilhante. Este circula pelas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, apresentando e ensinando sobre o assunto. O segundo foi “Nique” Dantas, da Nação Maracatu Porto Rico, que em uma viagem de Londrina a São José do Rio Preto passou por Bauru para uma oficina, após indicação de uma aluna da Unesp.
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O grupo então foi se firmando rapidamente. O Maracatu Abayomi, que conta com 24 batuqueiros, participa de eventos como o Saravá, realizado pela Unesp de Bauru para celebrar elementos da cultura negra, e participará do evento “Somos Todos Nagô”, primeira apresentação do grupo com cachê. A Casa da Capoeira também segue forte, e fará sua primeira formatura de quatro alunos no dia 21 de novembro desse ano, como parte das atividades na semana da Consciência Negra. Para Alberto, participar destes eventos não só de celebração, mas também de luta, é essencial, “É a Capoeira e o maracatu no fundamento”.
Mas a presença do Maracatu em outras partes do Brasil, que não o Nordeste, ainda é vista como uma surpresa. O processo de extensão dele ainda é bastante recente, ajudado pelo Mestre Chacon, que ministra oficinas em determinados locais e forma outros mestres. Com o tempo, os grupos criaram uma rede, chamada de Maracatu Caipira, apoiando-se no interior dos estados.
Alberto ressalta a todo momento os benefícios de participar e viver a cultura popular. “A cultura popular tem um peso muito grande. Todos os brincantes são influenciados positivamente e acabam achando nisso caminhos para buscar uma melhor formação. Conheço arquitetos que escolheram a profissão após o interesse em construir instrumentos. Um ótimo exemplo disso é o Alan Costa, de 18 anos, que conseguiu entrar no MIT (Massachussetts Institute of Technology), que atribui sua entrada à sua redação, que relata seu envolvimento com o Maracatu e a Capoeira. A formação cultural desse garoto é algo de interesse aos avaliadores de lá. Não entrarei em méritos de apropriação cultural dos americanos, mas é o tipo de pessoa que eles querem ter lá dentro”.
Já prestes a deixar o local, conversamos sobre como as tradições populares são tratadas no Brasil. Para ele, são dois lados da moeda. Ele menciona como a quantidade de festas juninas está diminuindo em escolas de forte influência evangélica, que não veem com bons olhos celebrar uma festa baseada em santos católicos. “Isso é algo muito ruim para aquelas crianças, mas não deixa de ser uma nova construção de tradições, que não pode ser evitada. Independentemente de ser prejudicial ou não, ela ainda é uma construção cultural”, complementa Pereira.
Voltando para o sarau, Alberto não é só um professor ou capoeirista, mas uma pessoa tranquila, que sabe buscar e manter lado a lado o bem-estar físico e intelectual dele e dos que o cercam. Modesto, pede que eu coloque “grandes aspas” ao chamá-lo de mestre, o que para ele significa muita responsabilidade. “Apenas tenho o apito e lidero o maracatu. Tudo o que construí foi com a ajuda de muitos, e ainda faremos muito mais”.

Redação

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