Por Nayara Campos da Silva
Lá no início da pandemia no Brasil, começo de 2020, quando o coronavírus ganhou espaço na mídia e mostrou a que veio, muita gente falou por aí que “o coronavírus é um vírus democrático”, já que pode contaminar a todos “sem distinção”, sem olhar CEP, cor de pele ou conta bancária. Mas a história não é bem assim.
O presidente da república – assim, minúsculo mesmo -, Jair Bolsonaro fala em gripezinha e menospreza a gravidade do vírus. O coronavírus é questão de saúde pública e muito tem haver com política, uma política nacional que pouco tem feito pela vida dos cidadãos e anda muito mais alinhada a uma política de morte.
Essa é a conclusão a que chegaram os pesquisadores da Rede Metuia na pesquisa “Pandemia, desigualdade social e necropolítica no brasil: reflexões a partir da terapia ocupacional social”. A pesquisa foi realizada por pesquisadores da Rede Metuia das Universidades Federais do Espírito Santo, da Paraíba e de São Carlos e da Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas.
Segundo o estudo, “todo esse cenário de precarização e desinvestimento nas políticas sociais, somado aos discursos do presidente Jair Bolsonaro, vão caracterizando a chamada “necropolítica”, que tem sido a política do capitalismo em crise estrutural, pois se mostra como um modelo de gestão frente a questão social, que se intensifica diante de uma crise econômica e sanitária”.
Iara Falleiros integra a Rede Metuia, é umas das autoras da pesquisa e afirma que “a política de Bolsonaro é uma necropolítica. Nós vivemos o sucateamento das políticas públicas desde a época do golpe com a saída da Dilma, e isso se acentuou com a entrada de Bolsonaro. No próprio discurso ele deixa claro que não se importa com a vida das pessoas. Ele disse ‘tudo bem, algumas pessoas vão morrer mesmo com a pandemia’, mas tudo bem quais pessoas morrerem? Quanto mais gente pobre, negra e periférica morrer, para esse governo é melhor, para eles as vidas dessas pessoas não importam”.
Bolsonaro falha no combate ao vírus
Jair Bolsonaro age de forma a desconsiderar as orientações de autoridades da Saúde como a própria OMS. Enquanto o mundo todo esconde os sorrisos atrás das máscaras, Bolsonaro promove aglomerações e encoraja a população a abandonar o uso deste item de proteção. Sem comprovação científica, o Presidente da República fez até recomendações para o uso da Hidroxicloroquina como tratamento da Covid-19.
Não bastassem os exemplos perigosos de Bolsonaro na prevenção da contaminação, esta semana veio a público a notícia de que o Presidente havia desviado a quantia de R$7,5 milhões destinados ao combate do coronavírus para o programa Pátria Voluntária, comandado pela Primeira Dama Michelle Bolsonaro. O valor foi recebido pela União como doação da empresa Marfrig, que doou a verba para que fosse utilizada na compra de testes rápidos para Covid-19. O dinheiro, no entanto, foi embolsado pelo Pátria Voluntária e faz parte de um fundo que, sem edital de chamada, doa para instituições evangélicas aliadas à Ministra Damares Alves.
Desigualdade social aumentou durante a pandemia
Quando disseram, e quando ainda insistem em dizer, que o coronavírus é um vírus democrático as pessoas estão afirmando que a doença gera um mesmo impacto ao atingir ricos e pobres, é o clichê falacioso de que “estamos todos no mesmo barco”. Essa afirmação ignora toda a desigualdade historicamente construída no mundo, e, especificamente, no Brasil. A população pobre, moradora das periferias e das favelas do país sente o peso da perversidade de um sistema excludente e desigual em tempos de pandemia.
Uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas revelou que a renda da população mais pobre do país caiu 27,9% no segundo trimestre de 2020, enquanto os 10% mais ricos tiveram diminuição de 17,5%. O estudo aponta ainda que os mais atingidos foram os indígenas (-28.6%), os analfabetos (-27.4%) e os jovens entre 20 e 24 anos (-26%). Os números mostram o crescimento da desigualdade social no Brasil e impactam diretamente no Índice de Gini, um indicador que mede essa desigualdade. No segundo trimestre deste ano, o índice atingiu a marca de 0.8245, o número mais alto já registrado pela série desde 2012.
Um estudo do Instituto Locomotiva e do Data Favela ainda no início da pandemia apontou que no dia 23 de março deste ano, um dia antes do início oficial da quarentena no estado de São Paulo, 97% dos moradores de favela do Brasil já haviam mudado sua rotina por causa do novo coronavírus.
No dia 05 de abril, 13% dos moradores de favela tinham comida armazenada para menos de dois dias e 53% para menos de uma semana. Isso porque 47% desses moradores vivem como autônomos, e apenas 19% têm carteira assinada. 82% dos moradores de favela entrevistados afirmaram que sua renda diminuiu. 80% dessas pessoas disseram ter muito medo de não ter comida para dar para os filhos. 60% contaram que a qualidade da alimentação piorou.
56% dos moradores disseram que precisariam sair de casa dentro de uma semana para conseguir algum recurso, e entre estes, 60% disseram que pediriam socorro para amigos e parentes, 20% recorreriam a ONGs da comunidade onde moram e 26% disseram que procurariam um novo trabalho ou bico. Percebam: quando a coisa aperta, o Estado parece nunca ser a ajuda em que as pessoas pensam.
Esse cenário de intensificação da desigualdade social durante a pandemia é visto por Iara com preocupação. “Com a pandemia as pessoas têm ficado em situação de mais pobreza e a própria prevenção ao coronavírus intensifica isso. As periferias e favelas, por exemplo, são locais que em muitos casas não têm nem água potável, como vai ter álcool em gel? A pandemia tem duas faces: ela é uma para quem pode ficar em casa e é outra para quem tem que ir para rua buscar a comida para colocar na mesa de casa”.
A Revolução virá das periferias
A desigualdade perversa do sistema que ceifa vidas e defende com unhas e dentes a economia fez com que iniciativas cidadãs e independentes para o enfrentamento do coronavírus brotassem dentro das próprias favelas do Brasil. Para suprir o vazio deixado pelo poder público, os próprios moradores de favela se articularam para levantar recursos e distribuir cestas básicas para as pessoas das comunidades.
Entre estas iniciativas ganhou grande repercussão o projeto Mães da Favela, da Central Única das Favelas (CUFA), que entregou mais de 15 mil toneladas de alimentos e 80 mil vales-alimentação, ações que impactaram mais de 4,5 milhões de pessoas em 5 mil favelas do Brasil e mobilizaram mais de R$145 milhões e 65 mil voluntários. Assim como afirmava o intelectual e geógrafo brasileiro, Milton Santos, a revolução virá das periferias. Essas sim dão exemplo de solidariedade e articulação para vencer o vírus e as mazelas impostas por uma realidade desigual.
A pandemia mostrou que política se discute sim, jogou no ventilador as cartas que contam uma verdade que muitos brasileiros tentam ignorar: muito da nossa vida, desde que nos fizemos seres sociais, é influenciado pela política. Hoje caminhamos para o cenário que o ex-Ministro da Saúde – e aqui a especificação do nome é crucial, tamanha a dança das cadeiras nos Ministérios do governo Bolsonaro – Luiz Henrique Mandetta estimou ser o pior cenário para a pandemia no país.
Em livro autoral lançado no último dia 25, Mandetta relata que alertou Bolsonaro de que o pior cenário para o país previa 180 mil mortes causadas pela Covid-19, caso medidas eficazes não fossem tomadas. Hoje (02/10/2020), o Brasil tem 144.966 mortes, e Mandetta afirma ser possível atingir os 180 mil até que a vacina seja disponibilizada à população.
Pensando em saúde pública e direito à vida, a discussão deve ser para além de esquerda e direita. Em 2018 muita gente confirmou 17 nas urnas sonhando com a viagem para a Disney e com a baixa do dólar. Não tem Mickey, mas sobram famílias que choram a perda de gente querida enquanto a família do presidente vive uma vida sossegada, cheia de depósitos, suco de laranja, sombra e água fresca.