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O que existe de verdade e de balela por trás da polêmica do milho na cerveja

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Conversamos com uma engenheira de alimentos e com um mestre cervejeiro para desbravar a crescente controvérsia dos tais cereais não maltados nas nossas cervejas.

Por Adriana Kimura, Mariana Amud e Michael Barbosa

Há que se assumir uma certa simplicidade no conceito. Temos cereal fermentado em levedura, água e flores femininas de lúpulo – para amargura e corpo, a tal poesia. A bebida alcoólica mais consumida no mundo e a primeira criada pelo homem – salvo!, o vinho veio por um cacho de uvas abandonado no solo, fermentado em sol e fungos; pura natureza. Terceira opção líquida da gastronomia, atrás de água e chá, a cerveja é consideravelmente uma tradição.

Tradição é tradição e a da cerveja, parece, é amarga. Puro malte, aromatização de lúpulo, água da boa – e aqui muitas vezes está o segredo; a Brahma de Agudos – SP que o diga. Mas se gosto-cada-um-tem-o-seu, um país tropical haveria de transformar a tradição em algo de mais refrescante. À parte os delírios da Heineken e as tentativas de rememorar um quê de legado da parte de algumas cervejas fracassadamente embutidas de milho, as famigeradas garotas de biquíni das propagandas continuam a desfilar com cervejas cada vez mais aguadas pelo horário nobre, alegando ‘leveza geladíssima que desce redondo’.

Costuma ser tranquilo enfrentar os defensores da Original e da Budwiser em detrimento das Skols e Subzeros. Mesmo no milharal, tá liberado ter uma preferência. Eis que, não importa onde e nem com quais culpas assumidas, algo permanece ao pé do ouvido: beber cerveja, você está fazendo isso do jeito errado. Estamos bebendo porque faz calor, bebendo porque o semestre finalmente chegou ao fim, bebendo porque – quando o fôlego dura pouco – já é praticamente sexta-feira. A determinada altura da vida, a gente faz aquele amigo. O amigo que não tá afim de beber suco de milho – só de filosofar sobre o nada e palestrar sobre o desconhecido.

Antes que nos debrucemos sobre a questão do milho e do arroz, a esse amigo dedicamos a detalhada explicação que o mestre cervejeiro Victor Almeida e a engenheira de alimentos Natalia Poli compartilharam com esta reportagem, sobre como é feita, afinal, a cerveja:

A primeira etapa na produção das cervejas é a de moagem dos grãos, em que o malte (o tal) é moído. Conforme explica Victor Almeida, “o malte é a cevada que passou por um processo de germinação nas maltarias, importante para expor o endosperma do grão”. À diferença dos cereais não maltados, o malte apresenta seu “miolo”, o endosperma, rico em proteínas e enzimas, além do amido – aí é que está. Como esclarece o mestre cervejeiro, esses componentes fazem parte da produção da cerveja; e acrescenta: “uma moagem eficiente é aquela em que trituramos o endosperma e preservamos a casca, que será utilizada na etapa de filtração”.

Como nos esclarece Natalia Poli, seguem à moagem, simplificadamente, os momentos de mosturação, lavagem, fervura, resfriamento, fermentação, maturação e envase. É adicionado o malte em água e ocorre o seu “cozimento” em temperatura  controlada, obtendo-se os açúcares ideais para a fermentação – o líquido resultante é chamado de mosto -; após a lavagem e recirculação do mosto, o líquido é fervido por uma hora – momento em que se adiciona o lúpulo, responsável pelo amargor da cerveja. A inoculação da levedura é feita após o resfriamento do mosto e nesse momento ocorre a transformação do açúcar em álcool além da liberação de outras substâncias em menor quantidade. Segundo Natalia, o processo de fermentação leva de 7 a 14 dias em média, dependendo da cerveja.

Victor Almeida explica que na etapa de maturação a cerveja é submetida a temperaturas  de um negativo a zero grau celsius, a fim de sedimentar o restante de células de fermento e, assim, “limpar” a cerveja, tornando-a mais cristalina. Essa etapa pode durar dias ou meses, dependendo da cerveja produzida. Natalia Poli aponta que o envase das cervejas em garrafas pode ser acompanhado de um processo de pasteurização, para melhoramento da conservação.

Uma receita, portanto, pouco conhecida nos pormenores – especialmente por aqueles que poderíamos chamar, como explica brilhantemente o mestre cervejeiro Marcus Dapper, ‘cervechatos’. Enquanto receita, as etapas são passíveis de personalizações e de adaptações facilitadoras. Dediquemo-nos, então, ao que pode haver de pecaminoso e ao que permanece virtuoso em fazer de uma cerveja todo o necessário para que ela seja, por fim, uma cerveja.

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Arte e texto: Mariana Amud

Ao que tudo indica essa história de o que nós [brasileiros] bebemos é “suco de milho” pegou mesmo. Uma rápida pesquisa pelos mecanismos de busca de notícias do Google parece revelar a origem dessa polêmica. Uma notícia da Folha de São Paulo de outubro de 2012 descrevia um estudo conduzido pela pesquisadora – e na época doutoranda em ecologia –  Sílvia Fernanda Mardegan, sob orientação do professor Doutor Luiz Antonio Martinelli, pelo Centro de Energia Nuclear Aplicada da Universidade de São Paulo (USP). A pesquisa testou 77 rótulos diferentes disponíveis no país e constatou que cerca de um terço das cervejas tinham percentuais de milho e outros cereais não maltados próximos a 50% – ou seja, inclusive, em alguns casos, excedendo os 45% permitidos pela legislação nacional.

A pesquisa de Mardegan teve um boom de repercussão ao longo do ano de 2013 e continuou sendo referência desde então, ao passo que pipocaram matérias abordando o assunto, mas agora mais em blogs e veículos pretensamente especializados e menos na grande mídia. Se 2013 e 2014 nos conduziram a uma escalada colérica contra o milho, 2015 foi o ano do contra-ataque, do revide, do não-é-bem-assim, marcado pelo sintomático texto “O mimimi do milho”, escrito pelo cervejólogo Marcio Beck no blog Dois dedos de colarinho, do site d’O Globo. Lê-se: “O milho foi eleito pelos neo-cruzados da pureza cervejeira como o símbolo do que existe de errado com a cerveja. […] o milho, ou qualquer outro cereal não-maltado, não traz nada de ruim à cerveja. Repito: nada.”. Nem tão ao céu nem tão à terra. Se o que o milho (ou o arroz, ou outro entre incontáveis possíveis cereais não maltados) traz à cerveja é bom ou ruim, depende do objetivo, da perspectiva e do gosto do freguês.

Além disso, nós desejamos enfatizar que no futuro em todas as cidades, nos mercados e no país, os únicos ingredientes usados para fabricação da cerveja devem ser lúpulo, malte e água. Qualquer um que negligenciar, desrespeitar ou transgredir estas determinações, será punido pelas autoridades da corte que confiscarão tais barris de cerveja, sem falha. Reinheitsgebot, 1516

A repulsa ao milho costuma ser acompanhada do culto às ‘puro malte’, cervejas sem adição daquilo que mestres cervejeiros e cervejólogos chamam de adjuntos, e que, portanto, respeitam a Reinheitsgebot, a “lei da pureza da cerveja”, promulgada em 1516 na Baviera [atual território alemão] pelo Duque Guilherme IV, delimitando que a cerveja é uma bebida feita apenas com água, malte de cevada e lúpulo – e, mais tarde, adicionando à receita a levedura de cerveja.

Apesar de tanto purismo não ser praticado atualmente nem mesmo na Alemanha, tal lei ainda é uma marca forte e um ás sempre à manga contra os que ousam defender as cervejas – ou sucos de milho – populares em terras brasilis. Mas nem tudo que reluz é ouro – ser puro malte não é garantia de cerveja de qualidade – ou, melhor, nem tudo que não reluz “PURO MALTE” no rótulo é bijouteria. É o que explica Natalia Poli, “a Lei da Pureza garantiu a qualidade da cerveja por muitos séculos e muitas cervejarias hoje em dia ainda utilizam essa lei. Porém, existem muitos estilos que não seguem a Lei da Pureza e que apresentam sabores complexos e de extrema qualidade.”

Há uma amarga ironia nessa história. Em um mundo com acesso à informação praticamente ilimitado e com a cerveja se tornando cada vez mais item de culto e estudo por não-profissionais, muita gente acaba tropeçando nos argumentos quando brada por ai seu amor às puro maltes e saca o super trunfo da Lei de Pureza para, noutro dia qualquer, ser fino e gourmet com uma taça de uma das muitas cervejas artesanais que recebem adição de uma infinidade de outros ingredientes, de frutas e mandioca chegando a café e cacau. Ou mesmo elogiando as famosíssimas cervejas belgas, tradicionalmente aditivadas com cereais não maltados.

Mas, voltando ao cerne da questão, e já tendo passado pelas explicações mais detalhadas sobre o processo de produção da cerveja, coloca-se milho em nossas cervejas por dois motivos: barateamento e o que Victor Almeida chamou de “drinkability”, ou seja, quão fácil a cerveja é de se beber.

De um lado, o milho e o arroz não passam pelo mesmo caminho que a cevada e entram no curso de produção já na terceira etapa – a mostura – adicionando ao mosto amido e, consequentemente, açúcares fermentáveis, isto é, álcool fácil e barato.

Distintivamente dos não maltados, a cevada é rica em proteína, diferente do milho e do arroz que são, basicamente, carboidrato e, portanto, de digestão mais fácil. Logo, para as grandes cervejarias – ou A Grande Cervejaria, no nosso caso – a adição de milho é uma jogada dupla, não só se barateia o processo produtivo como também se consegue uma bebida mais leve, menos encorpada, teoricamente mais condizente com o clima do país e com o gosto médio do brasileiro, e mais fácil de se consumir em maiores quantidades (nos levando de volta à questão econômica, ad infinitum).

Chegamos à moral da história: aqui as intenções importam mais que os ingredientes. Cervejarias adicionam milho ou arroz na sua cerveja por uma série de motivos mais ou menos nobres, o que resta é saber o que você está bebendo e deixar que o seu paladar seja seu Senhor – e não algum ‘cervechato’.


 

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