Escreva para pesquisar

O que significa morar em favela no Brasil

Compartilhe

Mais de 900 milhões de pessoas em todo o mundo vivem em favelas
Por Gabriela Ravazzi

As favelas surgiram no Brasil em meados do século XIX, no Rio de Janeiro, com a ocupação do Morro da Providência. O governo prometeu aos soldados fluminenses enviados à Canudos que, se saíssem vitoriosos da guerra, receberiam casas próprias. Ao ver que a promessa não foi cumprida, os soldados se apropriaram de uma região do morro – a “providência” vem da atitude dos soldados.

O termo favela faz alusão à construção da cidade de Canudos, batizada em virtude da planta presente naquela região, Cnidoscolus quercifolius, popularmente conhecida como favela.

Oswaldo_Cruz_passa_o_pente_fino_da_“Delegacia_da_Hygiene-_no_Morro_da_Favela

Oswaldo Cruz passa pente fino no Morro da Favela, 1907. Foto: Reprodução.

Em 1927, o urbanista francês Alfred Agache preparou um plano de “remoção” das favelas do Rio de Janeiro com o intuito de “embelezar” a então capital do Brasil. Agache sugeriu a remoção da população favelada que “criava sérios problemas sob o ponto de vista da ordem social e da segurança, como sob o ponto de vista da higiene geral da cidade, sem falar da estética” (ALVITO; ZALUAR, 2002).

Historicamente, a ocupação das favelas mais modernas (como as que conhecemos hoje), surgidas na década de 1970, se deram devido ao êxodo rural. Diversas pessoas vindas para as grandes capitais em busca de trabalho, sem ter onde morar, foram para as periferias. O acesso à moradia para a população de baixa renda no Brasil, geralmente sem amparo do governo, se deu das seguintes formas: por meio dos cortiços, as favelas e os loteamentos periféricos, todos caracterizados pela autoconstrução e pela falta de estrutura.

Até meados do século passado as favelas eram um fenômeno quase que exclusivo da cidade do Rio de Janeiro, mas dados do Censo de 2010 mostram que essa realidade mudou: o estado de São Paulo possui cerca de 23,2% de domicílios em favelas, enquanto que o estado do Rio de Janeiro possui 19,1%; sendo Belém (PA) a cidade com mais domicílios em favelas do país. O Censo também revela que as favelas deixaram de ser uma realidade apenas nas grandes metrópoles, estando presentes, também, nas médias cidades brasileiras.

Favela (1)

Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), favela ou aglomerado subnormal é todo conjunto “constituído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais (barracos, casas, etc.) carentes, em sua maioria de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e/ou densa”. É favela qualquer “ocupação e/ou construção em terrenos de propriedade alheia” com as seguintes características: “urbanização fora dos padrões vigentes” ou “precariedade de serviços públicos essenciais, tais quais energia elétrica, coleta de lixo e redes de água e esgoto”, aponta o Instituto.

11,4 milhões de brasileiros vivem em favelas

Atualmente, não podemos mais falar que o morador da favela é (apenas e majoritariamente) aquele que foi para a cidade em busca de emprego. A má distribuição de renda, o aumento do preço do aluguel, a dificuldade do Estado em criar e manter políticas públicas habitacionais decentes, somados ao desemprego, são os grandes fatores que levam o indivíduo a sair em retirada para as favelas. Em outras palavras, o “favelado” é um trabalhador pobre.

É o que acontece em São José do Rio Preto, interior de São Paulo, onde em menos de três anos duas favelas surgiram – e não param de crescer.

Dona Edineuza trabalhava como gari e, por causa de um problema na coluna, não tinha mais condições de continuar no emprego. Sem ter como pagar aluguel, foi morar na favela da Vila Itália. “Eu mesma tô aqui porque não tem outro jeito, porque se tivesse jeito eu não tava aqui”, resigna-se dona Edineuza.

O calor das três da tarde revelava ainda mais o desconforto de viver numa casa improvisada, um arranjo de madeira misturada com lonas e panos – era a casa de dona Edineuza. A porta azul, aberta, mostrava a senhora costurando panos de prato, “A única coisa que eu faço é esses tapetinho (sic), essas besteirinhas aí pra poder sobreviver”.

_MG_5654

Dona Edineuza, moradora da favela da Vila Itália. Foto: Gabriela Ravazzi.

A área começou a ser ocupada em 2014 quando algumas famílias vindas da Bahia e do Maranhão em busca de trabalho ficaram desempregadas e sem ter onde morar; no início, eram oito casas improvisadas. A notícia se espalhou e, desde então, a favela não parou de crescer – em menos de três meses, entre outubro de 2016 e janeiro deste ano, houve um aumento de 69% de moradores no local, de acordo com a Defensoria Pública de São José do Rio Preto. Segundo levantamento feito neste ano pela Defensoria, cerca de 300 famílias moram na favela, a maioria possui algum tipo de renda, mas não tem o suficiente para morar em outro lugar.

Atualmente, dona Edineuza vive de doações, “Um dia um me dá um quilo de arroz. Um dia um aparece e me dá um pacote de café, um quilo de açúcar… o que eu passo aqui é desse jeito”. Com ela moram a filha e o neto, “Se eu comer uma farinha seca eles têm que comer. Se for pra passar fome, todos os três passam fome”.

Segundo dados do Censo de 2010, a população das favelas no Brasil cresceu mais do que a da cidade: entre 1980 e 1991, os domicílios totais para o país cresceram a 3,08% ao ano, enquanto que domicílios em favelas cresceram a 8,18%. Durante um período de dez anos (2000 a 2010) a população subnormal aumentou em quase cinco milhões de pessoas em todo o país – o que equivale a, aproximadamente, toda a população da Noruega.

Wiki

A favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, possui cerca de 70 mil habitantes e é a maior do país. Foto: Reprodução.

As condições encontradas pelos pesquisadores do IBGE revelaram que apenas 56% dos domicílios nas favelas brasileiras estavam ligados à rede de esgotamento sanitário em 2010. Situação não muito diferente encontrada tanto na favela da Vila Itália quanto no Brejo Alegre, onde as condições são ainda mais precárias.

Uma das características dos locais ocupados é a de estarem numa área de domínio de ferrovias – cerca de 20 quilômetros de linha férrea cortam a cidade. Na favela do Brejo Alegre, onde vivem cerca de 75 famílias, os barracos foram construídos a cinco metros da linha do trem. Para a arquiteta Maria Helena Carvalho Rigitano, coordenadora do Plano Diretor Participativo da cidade de Bauru (SP), o problema não é apenas uma questão de planejamento urbano: “A questão da favela tem tudo a ver com o empobrecimento da população, falta de emprego, dificuldade econômica e o acesso à terra”, conta. Sobre as áreas ocupadas, Maria Helena comenta que, “Em geral, são áreas de beiras de córrego ou proximidade de córrego, baixada, morro… áreas que não têm muito valor econômico”. São espaços que não deveriam ter nenhum tipo de uso, especificamente o de moradias.

Em ambos os locais as ruas não possuem asfaltamento, o esgoto e o lixo estão a céu aberto, a rede elétrica é improvisada e feita por instalações clandestinas. Em outubro de 2016 o jornal Diário da Região noticiou um surto de diarreia e vômito na favela da Vila Itália, principalmente entre crianças. O Conselho Municipal de Saúde estimou que oito em cada dez crianças do local apresentaram algum dos sintomas. A impressão que passa é a de que a favela é um canteiro de obras permanente.

Foi realizada uma pesquisa no Facebook da página do Diário da Região, jornal de maior circulação da cidade, para saber o que pensavam os leitores acerca das duas favelas. Foram mapeados 79 comentários num total de 19 posts diversos que abordavam desde o surgimento das favelas até decisões judiciais sobre as áreas.

A pesquisa revelou que a maior parte dos indivíduos que comentaram nas postagens, 29%, acredita que pessoas moram em favelas porque não querem trabalhar – “Para quem tem coragem de trabalhar… não falta emprego”; “Trabalhar ninguém quer”. Pouco mais de 20% acredita que se retirar para a favela é uma oportunidade de ganhar uma casa do governo: “Ali é o meio mais rápido de conseguir uma casa”; (…) São profissionais para furar fila na distribuição de benefícios”. Em quatro comentários as pessoas ironizaram a situação: “Até eu vou montar um barraco lá e fingir que moro lá” [para ‘ganhar’ uma casa]; “Se soubesse que era fácil não teria me matado de trabalhar para pagar a minha”.

Cerca de 10% questiona a presença de bens materiais na favela: “Aqueles carros lá na favela são de quem?”; “Não tem dinheiro pra nada mas tem aparelho nos dentes”. Outra parcela (14%) acredita que “A única coisa que sabem produzir é filhos”; “Fazem 300 filhos pra gente cuidar e ainda nos roubam”. Uma pessoa sugeriu: “Deveria fazer vasectomia nesse povo” (treze pessoas curtiram este comentário).

Algumas pessoas acreditam que certos moradores já tiveram casas do governo, mas que venderam (3,80%). Uma parcela um pouco maior (6,32%) culpabiliza o governo do PT: “Esses favelados são as mesmas bestas que foram iludidas com as promessas dos bandidos do PT”. Para 5% dos comentários avaliados (…) foi só surgir notícias de mais construções de casas [que] apareceu um monte de favela”. Para este comentário específico a pessoa acredita que “Favela é igual barata, você mata uma aparece mais um monte”.

11,40% dos comentários indicam compaixão à situação dos moradores das favelas: “Muitos deles são pessoas trabalhadoras e honestas, mas por algum motivo não tiveram mais condições de pagar aluguel”.

De todos os comentários avaliados, treze incluíam duas ou mais opiniões. Algumas delas faziam alusão à (…) fazer esse povo sumir” e (…) voltar de onde não deveriam ter saído”. Quatro comentários apresentaram um viés meritocrático como este, por exemplo, onde essa pessoa não entende “O que esse povo estava dizendo sobre privilégios… Estou pagando muito caro por essa casa, e ninguém me deu nada”.

O Brasil é o décimo país mais desigual do mundo, segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) desenvolvido pelo PNUD Brasil e, de acordo com dados do governo, cerca de 8,5% da população vive abaixo da linha da pobreza.

Em Um Século de Favela, livro de Alba Zaluar e Marcos Alvito, é evidenciado que a favela “já começa a ser percebida como um ´problema´ praticamente no momento em que surge”. De maneira geral, para as instituições e governos, a favela é o local da desordem – “Ao longo deste século, a favela foi representada como um dos fantasmas prediletos do imaginário urbano: como foco de doenças, gerador de mortais epidemias; como sítio por excelência de malandros e ociosos, negros inimigos do trabalho duro e honesto; como amontoado promíscuo de populações sem moral”.

Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos declarou que o direito à moradia adequada é fundamental para a vida de todas as pessoas. Um relatório divulgado recentemente pela ONU estima que, atualmente, mais de 900 milhões de pessoas em todo o mundo vivem em favelas e que em 33 anos este número deve duplicar. Ou seja, há quase 70 anos governos e instituições de todo o mundo falham em implementar políticas públicas voltadas para um enorme contingente da população vítima da desigualdade social.

Tags::
Redação

Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit. Nam quis venenatis ligula, a venenatis ex. In ut ante vel eros rhoncus sollicitudin. Quisque tristique odio ipsum, id accumsan nisi faucibus at. Suspendisse fermentum, felis sed suscipit aliquet, quam massa aliquam nibh, vitae cursus magna metus a odio. Vestibulum convallis cursus leo, non dictum ipsum condimentum et. Duis rutrum felis nec faucibus feugiat. Nam dapibus quam magna, vel blandit purus dapibus in. Donec consequat eleifend porta. Etiam suscipit dolor non leo ullamcorper elementum. Orci varius natoque penatibus et magnis dis parturient montes, nascetur ridiculus mus. Mauris imperdiet arcu lacus, sit amet congue enim finibus eu. Morbi pharetra sodales maximus. Integer vitae risus vitae arcu mattis varius. Pellentesque massa nisl, blandit non leo eu, molestie auctor sapien.

    1

Deixe um comentário

Your email address will not be published. Required fields are marked *