Por Guilherme Reis Mantovani
Lúcia Moratto estica um pano alvo bordado com detalhes rubros, macio feito algodão, sobre a mesa de centro. Delicadamente, mas com experiência nas mãos ágeis, repousa uma pequena taça dourada, coberta também com um pano. Ao lado, descansa outra taça, gêmea à anterior; esta, por sua vez, preenchida de água. Por fim, acende uma vela solenemente.
As gotículas de suor em sua testa fazem jus ao ambiente abafado: uma sala pequena, cujas estantes de pinho estão abarrotadas de quadros grandes e pequenos, obsoletos e modernos, empoeirados e decorados. Após preparar a mesa, Lúcia dedilha sua jaqueta branca de botões, com um broche dourado preso à gola. Defronte a Lúcia, está Cícera, uma senhora de 74 anos: parda, de cabelos negros e crespos, e rugas salientes. Sua postura é rígida, suas feições gentis, mas o semblante exausto. Ela se lamenta a mim, que assistia à cena em silêncio, sobre o quão ruim é ser incapaz de ir à missa por conta própria. “Não se martirize, Dona Cícera… é um luxo receber a comunhão na própria casa!”, repreende Lúcia: sua entonação animada e o sorriso fugaz de Cícera em resposta me garantiram que não era a primeira vez que aquele diálogo acontecia entre ambas.
“Podemos começar?”, pergunta Lúcia a uma Cícera ansiosa pouco depois, enquanto alisa o folheto trazido da missa anterior. Após o consentimento da senhora, Lúcia dá início à leitura de um Evangelho. Umedece os lábios enquanto lê pausadamente, aplicando uma entonação baixa. Quando enfim encerra, Cícera questiona com ousadia o sentido daquela leitura repleta de metáforas e Lúcia, mesmo como Ministra, mostra dificuldade na resposta ao franzir a testa e reler apressadamente alguns trechos. “Acho… acho que quer dizer que Deus está nas pequenas coisas, Cícera. Que age de maneira simples”.
Lúcia Moratto é uma senhora de 52 anos de aparência afável, porém frágil. Roliça e levemente voluptuosa, traz em seus cabelos grisalhos e hirsutos um sereno sinal de experiência; seu nariz é adunco, os lábios pálidos e os olhos – ligeiramente escondidos por um óculos oval – são da cor do mel. Tornou-se Ministra da Paróquia São Benedito em 2016. “Eu já frequentava a São Benedito há algum tempo. O convite veio do próprio padre sendo que, aos poucos, notei uma vocação para a atividade”. Seu objetivo é levar comunhão – a hóstia, abençoada pelo padre, sagrada perante os dogmas católicos – às pessoas cuja incapacidade de saúde os impede de locomover-se até a igreja. Lúcia atende três “pacientes”, mas quando entrei em contato com ela pela primeira vez para fazer o pedido de acompanhá-la durante um encontro, a Ministra cravou sem hesitar: “Pode vir comigo à casa da Dona Cícera.”
Quarta filha dentre cinco irmãos, Lúcia mudou-se para Bauru aos 16 anos. Oriunda de Santa Izabel – pequeno distrito adjacente a Bauru –, não esconde a saudade da terra natal, mesmo que jamais omita a exigência que a vida rural impunha. “Eu passei toda a juventude na roça. Junto com meus irmãos, trabalhava a tarde inteira: as meninas cuidavam das galinhas, lavavam a roupa e ajudavam Célia, nossa mãe, na cozinha. Os meninos auxiliavam meu pai, João, com tarefas ‘mais braçais.’ Tirávamos somente os domingos para descansar. Quando não montava no Relâmpago, nosso velho e querido burro, com Clarice – minha irmã mais velha e querida –, gostava de correr pelo sítio escalando pés de jabuticaba”, conta-me ela três dias antes do encontro na casa de Cícera, enquanto caminhávamos pela Praça Portugal. Ela aceitara veementemente meu convite. Um lugar calmo, para discorrer seu passado.
Tinha 9 anos quando a mãe ficou grávida novamente. A situação financeira, que já era alarmante, agravou-se ainda mais. “Lembro que aquela foi a época mais difícil da minha infância: o Relâmpago havia morrido de uma infecção, o dinheiro estava em falta e minha mãe pouco podia ajudar em casa”. Os meses seguintes se arrastaram numa penúria aterradora, ao menos até o dia em que Célia começou a reclamar de dores abdominais. Ela estava de oito meses. A criança se apressava a vir ao mundo.
Ou melhor, as crianças.
Levaram Célia para o quintal. Dona Maria, vizinha de longa data da família Moratto, seria a parteira. A algazarra era generalizada. Lúcia, que nunca havia visto um parto antes, se empertigou. Choro. Sangue. Choro. Este último de alegria. “Eram gêmeos!”, disse-me Lúcia com um sorriso resplandecente, enquanto caminhávamos quase que mecanicamente pela praça tranquila. “A dificuldade seria ainda maior, mas naquele momento ninguém se importou… eram gêmeos!”
“Rubens e Renato.”, sussurrara Célia ao ver seus pequenos rostos rosados pela primeira vez. Apesar de gêmeos, eram completamente diferentes em seu primeiro suspiro de vida: “Renato era saudável. Não parava de chorar! Rubens estava bem quieto. Adentrei o semicírculo que meus irmãos formavam ao redor de minha mãe para vê-los melhor e vi que Rubens não estava nada bem. As pontas de seus dedos estavam pretos e sua magreza chegava a assustar. Cinco minutos depois, estava morto. Bem ali, nos braços da mãe. Foi tudo muito rápido.”
No começo, Lúcia não entendeu ao certo o que estava acontecendo. Esticou o pescoço sobre os ombros dos irmãos e questionou a esmo o que se passava. “O bebê morreu, idiota!”, respondera-lhe justamente Clarice, sua irmã mais adorada (como sempre frisava). Entre lágrimas, Clarice continuava a jogar as palavras: “Está morto! Morto para sempre!”
O enterro seria no dia seguinte. O cemitério, porém, era um tanto longe da velha casa dos Moratto. Abalada, Lúcia correu para esconder-se no interior dos pomares que erguiam-se a alguns metros da casa. Encostou-se num deles e chorou. Não queria ver o caixão do irmão deixar a casa – jamais havia visto sequer um caixão, de modo que a ideia chegava a assustar. “Ouvi as vozes de meus irmãos me chamando lá nos pomares, falando para eu ver o corpo de meu irmãozinho falecido antes de ser enterrado. Procuraram-me por um bom tempo, até desistirem e voltarem”. Lúcia suspirou ao relatar este momento; sua voz fraquejou e uma veia salientou-se em seu pescoço. Por entre os pomares, um bem-te-vi aguçado, cuja pelugem parecia resplandecer, surgiu batendo suas asas freneticamente, planando ao redor da jovem Lúcia. Ela tentou espantá-lo, mas o pássaro era insistente. Entre tapas e xingamentos, Lúcia tropeçou em um dos pomares e caiu de costas na orla dos arvoredos conjuntos. Quando ergueu os olhos para o horizonte, viu uma penosa caminhada. “Meu pai e irmão mais velho carregavam um pequeníssimo caixão branco ao longe, seguido por vários outros familiares e amigos, todos cabisbaixos. Acho que aquele bem-te-vi era Deus, querendo que eu visse uma última vez o irmão que nunca conheci. Só sei que seria uma mulher arrependida até hoje se tivesse deixado passar aquele momento.”
“Acho… acho que quer dizer que Deus está nas pequenas coisas, Cícera. Que age de maneira simples.”
Fora ali que Lúcia “conheceu” Deus. E ali que iniciara sua jornada para tornar-se Ministra. O interessante acerca deste momento de catarse é que se tratou de um paradoxo: a família de Lúcia afastou-se de qualquer tipo de religião ao experimentar a crueldade do mundo em uma instância aterradora, num momento em que a urgência da saudade, a melancolia da tristeza e o sofrimento do pesar se confundem num mesmo sentimento barulhento perante a inexorabilidade da morte. Lúcia, entretanto, agarrou-se a uma explicação que regeu sua vida a partir de então. “Depois, quando cheguei em Bauru, passei a frequentar a missa toda semana, primeiro na paróquia Santo Antônio e depois na São Benedito”. A religião, portanto, era o alicerce de sua atividade como Ministra. Mas seria o único?
O segundo encontro desenrolou-se como o primeiro: Lúcia preparou a mesa de centro, leu o folheto da última missa e, após molhar a ponta dos dedos na água, concedeu a hóstia a Cícera. “Onde posso jogar a água, Cícera?”, pergunta Lúcia, como da primeira vez; entendi que tal água não podia ser descartada futilmente. A resposta da senhora também foi a mesma: “Na orquídea da área.”
Lúcia sai para a área transportando cuidadosamente a taça de água. Em sua ausência, questiono Cícera sobre sua relação com a Ministra. “Ela é educada, sabe. Sempre chega todos os domingos na hora marcada. Depois da comunhão nós ficamos conversando, de tudo um pouco”, conta-me, após maravilhar-se quando confidenciei que tal relato faria parte de uma entrevista. “Ela me atura melhor do que meu marido, que não sai do terreno!”, acrescenta entre gargalhadas: Seu Francisco, marido de Cícera, de fato, estava no formoso terreno em frente à casa durante ambos os encontros. Cultivava de tudo, desde limões até melancias.
Após Lúcia retornar nos reunimos na copa, onde ambas servem-se de uma xícara de café, enquanto restrinjo-me a água. As duas se davam realmente muito bem: falaram sobre o preço dos alimentos na feira, o clima, o terreno de Seu Francisco, a ousada invasão de um gato na casa de Cícera na noite anterior, sobre Manoel Antônio – marido de Lúcia – e seu novo emprego.
“Já contou para ao menino sobre a cartomante?” – indaga Cícera. Lúcia enrugou a testa, mas segundos depois sorriu com a lembrança lhe vindo à tona. Após hesitar, põe-se a narrar: em sua juventude, quando já morava em Bauru, foi convencida por uma prima a visitar uma cartomante no centro da cidade. Após as intermináveis análises de cartas e búzios, a cartomante cravou que Lúcia, naquela época uma “jovem sonhadora” – como ela própria se autoreferiu –, se casaria com um estrangeiro e seria muito rica. “Espero a riqueza até hoje”, ri ela, antes de dar um gole considerável em seu café. “Mas meu marido é português. Nisso ela acertou”. Cícera garante que Lúcia esperava por um homem galante, mas que, no final das contas, se dá muito bem com Manoel, findando 22 anos de união. Foi curioso o modo como Dona Cícera mostrou-se integrada tanto ao passado de Lúcia como às suas relações pessoais, sobretudo quando citou, além de Manoel, os dois filhos da Ministra, Leandro e Luana.
A vida de Lúcia Moratto tornou-se uma montanha-russa a partir de 1979, ano em que finalmente chegou a Bauru acompanhada pela mãe, o pai, o irmão Renato e as irmãs Clarice e Alzira. O outro irmão, Helder, por sua vez, optou por permanecer em Santa Izabel, onde vive até hoje. Os primeiros meses foram uma aventura: “Estava acostumada com a vida no sítio, mas foi muito bom ver todos aqueles carros, aquele movimento, ir à escola”. Enquanto isso, o pai, a mãe e Clarice começaram a trabalhar para bancar o aluguel da casa – o primeiro no comércio e as duas como costureiras.
A situação se agravou com a morte do pai, João, cinco anos depois, vítima de câncer pulmonar. Com o dinheiro minguante, Lúcia teve de começar a trabalhar. Conseguiu o primeiro emprego na Tilibra, famosa fábrica de materiais escolares. O salário era considerável, mas manter-se lá fora um sacrifício, uma vez que teria de conciliar o emprego com a faculdade, sendo que sua educação, consequência da baixa escolaridade recebida em Santa Izabel, era precária. Pouco depois, viu Alzira se mudar para o Paraná por conta de um relacionamento amoroso. Com o passar do tempo sentiu-se mais sozinha: a timidez, característica marcante em sua personalidade, a inibiu de fazer muitos amigos.
Lúcia teve de batalhar pelo diploma de administração, mas o fez sem pestanejar. Pouco meses depois da formatura conheceu Manoel Antônio e, após superar um concorrido concurso público, conseguiu um emprego na Secretaria da Fazenda Estadual. O carrinho da montanha russa atingira as nuvens. Quanto mais alto, porém, sobe-se, mais violenta é a descida.
Em 1993, semanas antes do casamento de Lúcia e Manoel, Dona Célia sofreu um derrame cerebral. Os preparativos do casamento e a exigência do novo emprego a impediram de dedicar-se com o empenho necessário para cuidar de sua mãe. “Foi o maior arrependimento da minha vida. Devia ter deixado tudo de lado, largado o emprego, se necessário”. Na última visita de Lúcia à mãe, Clarice estava na cozinha, preparando uma sopa de legumes, enquanto Célia descansava no quarto dos fundos. Lúcia conversou com ela por alguns segundos antes de girar os calcanhares para sair. Mal havia cruzado a porta quando ouviu a voz rouca e amolecida da mãe chamando-a, pelo que seria a última vez: “Volte mais tarde, filha… vai sobrar sopa. Se não quiser jantar, pode guardar para amanhã”. Mesmo perante a morte em seu último momento, fora Célia quem deixara um último vestígio de proteção e carinho. No velório, Renato quebrou ainda mais o coração da irmã ao acusá-la de displicência nos cuidados da mãe enquanto estivera viva.
De volta à casa e às xícaras de café, numa calmaria contrastante às lembranças tumultuadas, Lúcia levanta-se e se despede de Dona Cícera. “Deus lhe abençoe, Cícera. Até domingo que vem”, diz ela. Tal qual Lúcia, despeço-me de Cícera e, juntos, saímos para a área. Enquanto no primeiro encontro o sol escaldante tornara o ambiente abafado, neste segundo o céu resumia-se a uma imensidão sólida e encoberta; os raios de sol não penetravam as nuvens cinzentas e o vento soprava forte. “Por que Cícera não pode ir na missa, Lúcia?”, pergunto enfim, desconfiando da resposta já a algum tempo. “Ela sofreu um derrame”, responde-me de maneira singela.
Despedimo-nos na esquina, onde nossos caminhos se separaram. A reflexão veio tão naturalmente como os primeiros pingos de chuva: o segundo alicerce havia se revelado. O amor incondicional pela mãe jamais libertou Lúcia, que buscou em Cícera uma remediação do amargor que o arrependimento lhe causara, provavelmente de forma inconsciente. Talvez seja ingenuidade – ou mesmo uma prepotência inócua – desvendar a complexidade de uma pessoa em dois dias de conversas e observações, mas a tentativa é plausível. Lúcia Moratto revelou-se uma mulher que já espelhou a alma confundida a um abismo vago, assustador e cheio de lugubridade; assim como já a refletiu num entoar alegre e jubiloso. Contudo, consequências de ambos os momentos ainda a marcavam. A sustentação de sua atividade como Ministra curiosamente baseava-se em simplicidade: o bem-te-vi e a sopa de legumes. A crença em Deus e a busca pessoal por uma redenção. Coisas que para algumas pessoas não significariam muita coisa, mas que, para Lúcia, sustentavam a essência de sua vocação.