Lucas César Ramos e Vítor Bittencourt Peruch
Grupo de teatro formado apenas por atores cegos mostra a importância da arte teatral e as possibilidades lúdicas para o deficiente visual
“O Teatro e a arte nos fazem viajar. Quando estamos atuando ou assistindo a nossa vida é deixada de lado e passa a ser aquilo que acontece ali, em cima do palco”. A frase é de Cristiano Donato Alves, ou o Pipoca, quando sobe aos palcos, cego e integrante do grupo de Teatro Nova Vida do Lar Escola Santa Luzia para Cegos de Bauru. O grupo de Teatro Nova Vida completou 21 anos em 2015 e passou por transformações ao longo dos anos. Inicialmente o grupo contava com oito atores cegos e seis voluntários. Mais de 20 anos depois, agora é formado por seis atores cegos e três voluntários.
Além de Cristiano (Pipoca), 39, Jerônimo (Enroladinho), 49, Ricardo (Pedro), 37, Osvaldo (Afrânio), 52, Firmina (Judite), 50, e Josiane (Penélope), 22, apresentam a peça “Casa de Consertos” normalmente em escolas públicas da região de Bauru, com o apoio de voluntários, como a psicóloga Edy Yoshiko Izumi Yamamoto e a artista plástica Rosa Maria Riccó Plácido da Silva. “O nosso objetivo principal é promover a inserção social do deficiente visual através da luta por novas perspectivas e possibilidades. Diante da escuridão, nós buscamos desenvolver intensamente a sensibilidade de ver com o coração”, afirma Rosa Maria Riccó.
Grupo ensina noções de sustentabilidade a crianças do ensino fundamental. Foto: Vitor Peruch
Casa de Consertos é encenada pelos seis atores cegos e é destinada à crianças, que terminam a peça surpresas e de acordo com Ricardo, o Pedro na peça, sempre perguntam: “Mas vocês não enxergam nada?”. Segundo Ricardo, as crianças não acreditam que todos são totalmente cegos. As personagens sentam em uma mesa e de forma carismática e didática dão noções e lições de sustentabilidade e ensinam as palavras mágicas para os presentes.
Mas além dos ensinamentos ao público-alvo, crianças do ensino fundamental, o aprendizado e a transformação ocorre na vida desses atores. Josiane, a mais nova do atual elenco, conta que ao perder a visão teve problemas com a autoestima e passava dias e noites dentro de casa chorando. Alguns anos depois, ao entrar para o grupo de teatro, sua vida passou por uma transfiguração e que ela reencontrou a alegria de viver. “Conheci meu marido na Escola Santa Luzia. Eu sofria muito. Mas aí cheguei no grupo, bem tímida, na escuridão, com medo e hoje consigo atuar, representar e acredito que esteja ensinando coisas boas. Eu perdi o medo”, conta enquanto sorri.
A perda de visão não atinge somente os olhos. Ela é destrutiva em outros aspectos como a coordenação motora, a perda da sensibilidade tátil, apontados no livro “No palco com os deficientes visuais”, de Rosa Maria Riccó. Além disso, problemas emocionais e doenças como a depressão são comuns em deficientes visuais que adquiriram a doença ao longo da vida. A superproteção de familiares, que o torna dependente e sem iniciativa também atrapalham durante a sua caminhada.
Neste contexto, a arte cênica é utilizada como forma de expressão e criação. Segundo Riccó, ela ajuda o deficiente a desenvolver o controle corporal, a autopercepção, aumenta a autoestima, melhora o desempenho físico e estimula a criatividade. “O teatro é uma manifestação artística que pode agregar artes plásticas, música, dança, esculturas e outras formas de expressão. Para eles, é libertador, para nós, renovador”, comenta Riccó.
Grupo é formado por deficientes visuais. Foto: Vitor Peruch
Riccó conta que a preparação de uma peça que é encenada por deficientes visuais tem diferenças e particularidades. Após o texto estar pronto, é realizada uma leitura explicativa com as características dos personagens. Nos ensaios, cada cego tem um voluntário, que lê as falas e repete até serem decoradas. Marcações no chão são necessárias e todos os movimentos dos atores são explicados nas rubricas do texto, evitando acidentes. Os objetos usados, o cenário e a sonoplastia já devem estar prontos, pois são de fundamental importância para o ator cego se localizar no ambiente e em cada tempo certo de fala durante a peça. Os móveis e objetos devem estar sempre no mesmo lugar.
Estando o que Riccó chama de “marcação cênica” pronta, todo o texto é gravado com as rubricas em um áudio, explicando com detalhes as posições dos personagens, as trocas dos figurinos e todos os momentos da cena. No CD com o áudio, são expostas as entonações necessárias para que os cegos entendam as emoções das falas. Entretanto, assim como nos grandes espetáculos, fugir do roteiro não é algo inesperado. De acordo com os atores, isso acontece quase sempre, normalmente quando um deles esquece uma fala e o improviso sai na hora.
Em um bate-papo muito bem humorado antes de entrarem em cena, os atores mostraram esta alegria. Após um pouco de insistência, até falaram sobre preconceito, dificuldades para conseguir um emprego e em como as pessoas agem de forma errada e atrasada com o deficiente. Entretanto, enquanto comiam em torno da mesa, os deficientes visuais faziam piadas sobre romance, falavam de novelas e de seus atores preferidos. “Selton Mello e Denzel Washington”, arriscou Ricardo.
Após subirem ao palco, as risadas foram multiplicadas e as crianças da Escola Estadual Professor Morais Pacheco, localizada no bairro do Bela Vista, em Bauru, puderam se divertir e aprender com os visionários da arte. Seis atores que enxergam o teatro como ele deve ser visto, de acordo com Bertolt Brecht, um dos mais importantes dramaturgos do século XX. “A arte deve dar alegria e prazer. Um teatro em que não se pode é um teatro do qual se deve rir. As pessoas sem senso de humor são ridículas”.