A ideologia e o ativismo pela liberdade para além do mundo digital
“A gente brinca que o que você chuta é hardware. O que você xinga é software. Ele funciona como um bolo. Existe uma receita e um procedimento no qual esta receita, e os ingredientes, irão dar origem ao produto final: o bolo, ou o software. É importante esclarecer esses pontos porque a liberdade gira em torno principalmente da receita do bolo, isto é, do código-fonte”. Envolvido com o movimento pelo software livre há mais de dez anos, Marcel Ribeiro Dantas tenta encontrar palavras simples para explicar coisas complicadas em nossa conversa. Pesquisador em engenharia biomédica, usuário, ativista e palestrante pelo movimento software livre, Marcel também lidera projetos de desenvolvimento de softwares para o Ministério da Saúde.
A Fundação do Software Livre define como um software livre aquele que respeita as quatro liberdades essenciais. A primeira delas é liberdade de uso, isto é, o usuário que detém uma cópia do software deve ter a liberdade de usar esta cópia para qualquer propósito. A segunda liberdade garante total acesso do usuário ao código-fonte do software, a “receita do bolo”. A terceira liberdade de um software livre é a de poder redistribuir cópias do software, enquanto que a quarta liberdade diz respeito às possibilidades de mudanças e melhoramentos do software por meio do código-fonte. “Foi descoberto que o firmware, um software que conversa com hardware, do microfone de um modelo da Samsung tinha autonomia para ler os e-mails no celular. Por que um software para controlar o microfone lê meu e-mail?! Por todo o lado os fabricantes estão dizendo vender uma coisa, e vendendo outra. O acesso ao código-fonte poderia nos proteger desse tipo de coisa”, defende Marcel.
O causo que deu início a tudo isso foi nos anos 1980. Houve um problema na máquina de xerox do programador Richard Stallman, na época funcionário do Laboratório de Inteligência Artificial do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), que ele não pôde resolver por si mesmo devido às restrições de acesso ao código-fonte. Tal acontecimento o levou a refletir as questões éticas que envolvem o desenvolvimento de softwares. Por que não poderia acessar o código para resolver o problema? Não seria mais vantajoso, tanto para o usuário como para o próprio aprimoramento do software, que ele tivesse seu código-fonte disponível? Veja bem, nos anos 1960, na época daquelas enormes máquinas computadoras de números e códigos, os softwares eram muitas vezes distribuídos apenas em seu código-fonte, raras vezes eram entregues completos, mas sempre, pelo menos, vinha o código-fonte. O que mudou?
O ano de 1983 é marcado pelo início do movimento do software livre, a partir de duas iniciativas de Stallman: o projeto GNU e a fundação que institucionaliza esse projeto, a Free Software Foundation (FSF, ou Fundação do Software Livre). A proposta do projeto GNU é a de desenvolver um sistema operacional inteiramente baseado em software livre. O novo sistema deveria ser compatível com o Unix, mas não se utilizar do código-fonte dele. Assim, em poucos anos, Stallman conseguiu a aderência de diversos programadores à causa e em 1992 o GNU ficou pronto, fato que se consolidou com o núcleo – a base para que os programas do GNU se associassem – criado por Linus Tavords, um programador finlandês que alterou a licença do código-fonte de seu núcleo de sistemas operacionais, que ficou conhecido como Linux (contração de Linus e Unix) para a General Public License (GPL). Nasceu assim o sistema operacional GNU/Linux. O nome GNU tanto se refere ao mamífero Gnu quanto é um acrônimo para GNU is Not Unix (em português: GNU Não é o Linux).
Este é o início do movimento que se chama software livre. Nota-se que é um movimento apoiado em instituições e regras que delimitam uma ética e uma liberdade através das quais os softwares devem ser desenvolvidos. Ou seja, se você é usuário de um sistema baseado no GNU/Linux, então você está atrelado a 4 liberdades essenciais: a liberdade de executar os programas como bem entender; a de copiá-los e distribuí-los a quem quiser; a de modificá-los como desejar por ter acesso ao código-fonte; e a de distribuir a cópia modificada dos programas a quem e como você quiser, cobrando uma taxa ou não.
Contudo, neste ponto referente às questões técnicas do software, há de se fazer uma outra diferenciação. O movimento pelo software livre é apoiado também em um outro movimento, o do Open Source. Esses dois costumam se confundir nas discussões porque suas diferenças residem, aparentemente, no discurso. Como foi apontado, o software livre possui bases éticas para desenvolvimento. O Open Source, por outro lado, se limita à dimensão técnica dos softwares. O termo foi cunhado justamente para melhor introduzir a ideia entre as grandes empresas do ramo da informática. O movimento não é anticapitalista ou anarquista, mas, essencialmente uma alternativa ao modo de produção de softwares, um novo paradigma para o direito autoral, baseado na produção colaborativa de propriedade intelectual. Atualmente, empresas como IBM, Intel, HP e Dell têm investido nos softwares de código aberto e reunem esforços na criação do Open Source Development Lab (OSDL), instituição voltada para o desenvolvimento de tecnologias de código-fonte aberto.
De acordo com o pesquisador Marcel Ribeiro Dantas, o software livre avançou muito nos últimos trinta anos. Entre 2008 e 2012 a Red Hat Inc., empresa líder de softwares livres no mundo, cresceu muito mais que outras empresas de softwares como a IBM e a Microsoft, que trabalham com softwares majoritariamente proprietários, em questão de share-hold value, o crescimento baseado nos resultados positivos para os acionistas da empresa.
No Brasil e no mundo a rede de usuários interessados cresce cada vez mais, e o ativismo dos que já conhecem a filosofia do software livre é crucial nesse sentido. “Desde 2013 eu sou um dos 53 embaixadores do Projeto Fedora espalhados pelo Brasil. O nosso trabalho é promover a comunidade, promover o software e organizar eventos com esse objetivo”, nos conta Fernando dos Santos, ex-presidente da Associação de Software Livre de Santa Catarina, palestrante e entusiasta pelo software livre.
O Projeto Fedora é um dos diversos softwares de sistemas operacionais para computadores, como o Windows e o Macintosh, que são abertos e gratuitos, patrocinados pela maior empresa de software livre do mundo, a Red Hat Incorporation. “O Linux, que é bem conhecido, se origina em uma família que vem da raiz chamada Unix. Dentro do Linux, podem ter braços diferentes de sistemas que mudam a interface gráfica, mudam uma coisa ou outra, e por aí vão se alterando e modificando as características. Existem vários sistemas operacionais disponíveis com software livre”, explica Diego Pessoa, instrutor de Tecnologias e Artes no Sesc de Bauru, no interior do estado de São Paulo.
Saindo do automático
Usar um computador ou notebook aos moldes do software livre pode parecer uma dor de cabeça: afinal, como é que vou fazer isso sem saber nada de programação? Os softwares proprietários, aqueles pelos quais pagamos ou simplesmente não temos acesso aos códigos-fonte, muito menos o direito de compartilhá-los livremente, são majoritariamente conhecidos por já virem instalados nas máquinas quando compramos um computador novo. Se eu comprei um notebook e ele já está com a última versão do Windows instalada, por que vou “jogar meu dinheiro fora” e instalar outro sistema operacional? Poucos sabem, mas algumas empresas fabricantes de computadores, como a Dell, oferecem a opção de descontar da máquina o valor que seria destinado à Microsoft – algo em torno de 700 reais.
“Muitas vezes as pessoas acham difícil algum software livre simplesmente por ele ser diferente do que ela já estava acostumada. No meu caso, eu entrei em contato com algumas áreas já com software livre de início, como o Blender, na área de Computação Gráfica, então não foi difícil. Mas outros eu tive que me adaptar um pouco, como o GIMP [editor de imagens], pois eu já vinha de outro software. Mas foi questão de alguns dias vendo tutoriais e eu já estava totalmente familiarizado com o programa. Documentação boa e de fácil compreensão é chave nesse quesito! Hoje em dia eu faço coisas muito mais fácil e rapidamente no GIMP do que em outros softwares, foi questão de dar uma chance”, conta Hyuri Pimentel, usuário adepto do software livre.
Ferramenta ao alcance de todos
É para desmascarar os mitos sobre software livre e motivar as pessoas a conhecerem outras formas de usarem seus computadores, com a mesma ou melhor qualidade, que existem pequenos cursos espalhados pelas mais variadas cidades. O conhecimento de forma presencial, para quem tem a oportunidade de frequentar cursos, ou não presencial, muita gente também aprende sobre software livre na internet, se estende para uma verdadeira rede de proteção dos dados que colocamos em nossos computadores e em nossas redes online.
Dentre oficinas e projetos esporádicos, a rede Sesc é uma grande incentivadora de projetos de software livre e sempre apresenta em suas sedes espaços para o aprendizado nesse sentido. “Temos duas áreas de trabalho aqui, que são cursos de inclusão digital para ensinar as pessoas a usar e realizar tarefas básicas no computador, e também temos os cursos que são mais técnicos, de programação e de criação artística com tecnologia. Aqui no Sesc utilizamos somente máquinas com software livre e qualquer pessoa que venha dar um curso aqui também damos essa preferência ao software livre”, conta Diego Pessoa.
Saindo do interior do estado para o extremo sul da capital São Paulo, conhecemos o coletivo Actantes que milita pela comunicação livre na internet e oferece cursos de iniciação ao software livre. “Tecnologias são criadas e utilizadas para divertir e para oprimir, mas também para salvar e para libertar. Por isso, exploramos sua ambivalência e toda a dimensão ideológica dos plugins, dos protocolos e dos softwares”, argumentam em sua página no Facebook.
Edu Graja – de Grajaú – é um dos ativistas que colaboram no Actantes com cursos de software livre. “Hoje os softwares proprietários são de grandes empresas que só visam lucro, e esse lucro é somente para o crescimento da empresa, não é algo que vá beneficiar o usuário. A gente acaba ficando na mão dessas empresas que desenvolvem tecnologia e não compartilham”, defende. Edu atende públicos das mais variadas idades e conta que muitas pessoas ficam assustadas em saber que seus dados pessoais acabam sendo utilizados por softwares espiões que usam a atividade no computador, que site entramos, o que pesquisamos na internet, que música ouvimos, para oferecer propagandas mais atraentes, por exemplo.
O movimento de midialivrismo na periferia atua basicamente com softwares livres, já que os custos de um pacote Adobe, por exemplo, que oferece diversos programas de edição, estão fora da realidade da maioria das pessoas – cerca de 165 reais ao mês. “Desenvolvemos parcerias com o Periferia em Movimento, o Repórter da Quebrada e diversos outros coletivos. A partir disso necessitamos de computador, dos softwares, e é onde tentamos introduzir a utilização do software livre nessas atividades”, complementa o ativista Edu Graja.
Para além da questão da liberdade de uso, existe outro fator que é fortalece bastante a defesa dos softwares livres: a maioria deles são gratuitos. Nos coletivos e movimentos sociais os usuários aprendem a editar vídeos, imagens, fazer qualquer coisa no computador sem precisar pagar por um programa específico ou fazer um download pirata. “É importante esclarecer que o software livre não é a favor da pirataria. Eu, como ativista, reconheço que a pirataria é um suspiro de uma sociedade aglutinada pela falta de liberdade e abusos por parte da indústria” explica o pesquisador e desenvolvedor Marcel Ribeiro Dantas.
Liberdade, gratuidade, compartilhamento de informações são peças chave que impulsionam o software livre não só para dentro dos movimentos sociais, mas para as pessoas que não tenham os recursos financeiros para pagar por aplicativos e softwares e que se dispõem a tomar rumos diferentes no mundo digital. “O software livre tem muitos benefícios. Só cabe à pessoa se abrir, embarcar nesse mundo maravilhoso para aprender e conhecer muita coisa legal”, declara o embaixador do Projeto Fedora, Fernando dos Santos.
Diferentes, desiguais, mas conectados
Qual é preço do conhecimento e da liberdade no uso de computadores? Nossos dados, nossas informações pessoais? A ideologia do software livre cumpre a promessa de nos apresentar os mesmos serviços, os que já estamos acostumados em sistemas operacionais convencionais, sem, no entanto, manter um banco de dados de todos os usuários no planeta. “Quem utiliza Windows hoje, a máquina envia o perfil da pessoa para a Microsoft. Tirando os vírus que são em quantidade muito maior para os computadores com Windows”, explica Edu Graja do coletivo Actantes.
A reeducação digital, nome que o ativista Edu Graja dá ao aprendizado do software livre, abre as portas para novas perspectivas dentro e fora dos computadores. Uma vez que dominada a prática básica de um sistema operacional não convencional, fora da “zona de conforto”, bem como outros programas e aplicativos, estamos livres para os utilizar sem custos, sem contratos, sem restrições. Estaremos assim, livres também das amarras que nos prendem às grandes empresas e seus interesses mercadológicos, que são vendidos ao público como melhorias na personalização da experiência de usuário – sabemos o que você gosta, então vamos vender de um jeito mais fácil para você.
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