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Todo dia ela faz tudo sempre igual

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Mais conhecida como dona Guida, Margarida Porangaba concilia dupla jornada de trabalho como faxineira e dona de casa de segunda a segunda

 
Por Michel F. Amâncio e Victória Linard
 

Me sacode às seis horas da manhã

 A limpeza, a faxina e a organização dos lares a fazem levantar cedo. São seis da manhã e o trabalho doméstico precisa ser feito por alguém. No Brasil esse alguém é, na maior parte das vezes, uma mulher, negra, que teve pouco ou nenhum acesso à educação. Pesquisas da Organização Internacional do Trabalho apontam que nosso país abriga a maior população de domésticas do mundo: 7 milhões de pessoas, sendo 5,7 milhões mulheres. Dessa parcela feminina, 65% são negras.

– Branca eu não me considero (risos). Acho que parda? Sei lá, eu sou morena, né?

É assim que a zeladora, faxineira e doméstica Margarida Porangaba se declara. Mulher de 59 anos, tem o cabelo crespo e muito escuro. A idade e a baixa estatura de dona Guida – apelido afável pelo qual é conhecida – escondem uma força de trabalho praticamente inabalável pra quem a entrevista. Neste caso, jornalistas desacostumados ao trabalho pesado diário são alvos facilmente impressionáveis.

Das oito ao meio-dia faz o serviço de limpeza, retirada do lixo, entrega de correspondências e zeladoria do edifício Camburé, na vila Cidade Universitária. Às 13h dona Guida repete o mesmo serviço no edifício Pousada Aurora, ali no mesmo bairro. Permanece no prédio até as 17h, com exceção de alguns dias da semana em que divide o turno da tarde com outro condomínio na rua de baixo. Aos sábados trabalha até o meio-dia também no Pousada Aurora.

Na Inglaterra do século XIX os trabalhadores criaram um lema que reivindicava, diariamente, oito horas de trabalho, oito horas de lazer e oito horas de sono. Aparentemente, dona Guida não precisa de tanto pra renovar as próprias forças.

– A senhora dorme tarde, dona Guida?

– Durmo. Fico acordada até uma, duas horas, depende.

– E não sente sono? Mesmo dormindo tão pouco?

– Eu chego depois do serviço e vou fazer o serviço de casa, né? Varrer o quintal, tirar o lixo… aí vou tomar banho, fazer janta. Então, esse é o horário que eu tenho pra deitar na cama, ligar a TV e fazer meus “crochezinho” até mais tarde (risos).

Só no edifício Pousada Aurora dona Guida trabalha há 17 anos. Ama seguramente o que faz e agradece a Deus por ter saúde para as tarefas cotidianas.

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Foto: Victória Linard

– Eu nem pego férias (risos)! Pra pegar e ficar em casa? E a gente se acostuma com essa rotina de levantar cedo e trabalhar. É cansativo? É, mas é gostoso!

– A senhora fez muita amizade nesses anos de trabalho?

– Nossa, fiz uma amizade tremenda. Eu tenho o contato de pessoas que já passaram pelos prédios até hoje. Tem gente da Tailândia, do Peru… tenho eles no Facebook e no WhatsApp e a gente conversa, acredita? Eu amo o meu trabalho.

Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar

Dona Guida vive numa casa de terreno grande na Vila Tecnológica. A rotina é solitária e quem a acompanha de segunda a sexta são o crochê e o som da televisão. O marido é caminhoneiro e faz o trajeto semanal até o estado de Mato Grosso, retornando para Bauru todo sábado. Os dois filhos, já grandes e criados, têm suas casas e famílias. O fim de semana, no entanto, é agitado. Marido, filhos, netos e bisnetos se reúnem na casa da matriarca, que se encarrega de agradar a todos com o tradicional almoço em família.

O cansaço é maior, justamente, aos finais de semana. O amor da família e o reencontro com o marido são valiosos, e a felicidade não se esconde ao falar dos filhos e netos. dona Guida é parte, entretanto, de um grupo majoritário de mulheres no Brasil que exerce aquilo que é conhecido como dupla jornada de trabalho. Mais de 90% da população feminina é responsável pelos serviços domésticos da própria casa. Entre os homens esse índice gira em torno dos 50%.

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Foto: Victória Linard

Esses dados são do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgados em 2017. Na prática isso significa que o trabalho de dona Guida não termina nos prédios onde faxina: a casa precisa ser cuidada e a família espera sua orientação. A inevitável sobrecarga de trabalho já ocasionou, há alguns anos, um sério acidente doméstico. Dona Guida não soube explicar exatamente como tudo aconteceu, mas enquanto limpava o quintal caiu do alpendre e quebrou a perna. Foram necessários seis pinos, uma placa e alguns meses afastada do trabalho pra que pudesse se recuperar.

Por sorte o marido estava em casa e a socorreu na ocasião. Antonio Roberto, que tem 62 anos, é natural de Maringá. Dona Guida o conheceu quando saiu de Presidente Prudente e se mudou para o Paraná, ainda em sua adolescência. Lá os dois se casaram e vieram para Bauru. A partir desse momento dona Guida se torna mãe aos 17 anos. Após cinco anos o casal tem o caçula, que viria a seguir o caminho do pai e se tornar caminhoneiro. Conforme os filhos crescem a família aumenta, até chegar o momento em que aparecem os netos e bisnetos.

Meia-noite ela jura eterno amor

A proximidade de dona Guida em relação aos familiares é mais que ocasional. Todos aqueles que vieram do seu matrimônio são entes fundamentais para a satisfação como bisavó, avó e mãe. Um dos membros dos Porangaba, contudo, ocupa um lugar especial:

– Essa tatuagem é o seguinte: eu perdi um bisnetinho com dois aninhos, o Biel. E aqui é o nome dele, uma coisa pra ficar gravada pro resto da vida.

Além de estar registrado no braço direito da bisavó, a criança está presente nas redes sociais de muitos familiares – especialmente da própria mãe que, segundo dona Guida, nunca se recuperou completamente de uma dor tão grande. Ela nos mostra uma série de fotos do bebê reforçando que, ainda que tenha outros bisnetos, o Gabriel é inesquecível e único.

– Meu marido falou: “cê vai mesmo fazer a tatuagem?” E eu falei: “vou”. Perguntam se eu me arrependo, e eu falo que não.

– Faria outra?

– Não, só essa. Foi a única e a última, por causa do falecimento dele. E daqui a pouco já não tem mais jeito, porque começa a enrugar tudo, né (risos)?

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Foto: Victória Linard

Os familiares não sabem ao certo a causa da morte de Gabriel. De acordo com a bisavó, todos os exames tinham sido feitos e nada foi detectado. O único exame que não foi realizado foi o do coração. Diante disso, muitos acham que aí estava o problema, que passou despercebido pelos médicos da Unimed de Bauru:

– A primeira vez que ele ficou ruim foi quando ele tava brincando e, de repente, ficou molinho. Levou ele na Unimed e o médico disse que ele tinha tomado medicamento. Esses médicos também, né? Tudo mentira. Mas aí recebeu alta e voltou pra casa.

Depois de alguns meses em casa o menino voltou a apresentar o mesmo sintoma de fraqueza e retornou a Unimed. Ficou em observação durante alguns dias e foi submetido a outros exames. Como não foi detectado nenhum problema, Gabriel recebeu alta e pôde voltar pra casa, aparentando bons sinais de saúde. Três dias depois a criança falecia inesperadamente. A família preferiu não entrar em conflito com o hospital pra não reviver a dor daquela perda. Mas o sentimento de impotência e possível negligência por parte da Unimed perduram no imaginário dos pais e avós de Gabriel.

Na família enxergam o Biel como um anjo que teve que partir mais cedo. Por ser um menino muito inteligente e à frente das outras crianças, dona Guida crê que era a hora.

– A senhora é religiosa?

– Nasci na católica. Meus filhos todos nasceram na católica. Ultimamente eu tô meio balanceada, porque eu frequento a católica, e o mais velho é evangélico e me chama às vezes pra ir na igreja dele. E não tem nada a ver, o Deus é um só, não é verdade?

Ela pega e me espera no portão

Além da influência na religiosidade da mãe, os filhos e o marido também marcam presença quando o assunto é política. Dona Guida costuma acompanhar, principalmente, o Jornal Nacional, e sempre ouve os homens da casa declarando voto no deputado Jair Bolsonaro. Dona Guida e a família representam uma grande parcela de brasileiros que estão insatisfeitos com as escolhas da classe política.

A solução para os problemas do país estaria, para dona Guida, no endurecimento das punições e na escolha de um presidente de garra.

– De menor não pode trabalhar, mas pode usar droga, pode fazer isso, fazer aquilo, roubar, matar… Não acontece nada. Não é verdade? Na nossa época trabalhava na roça, obedecia aos pais. Mas hoje em dia a gente vê na televisão, é um desrespeito com os pais, com os mais velhos. A gente tem medo de tudo hoje.

Embora a entrevistada tenha saudade de uma época em que supostamente o Brasil era melhor pra se viver, admite que muitas coisas mudaram pra melhor. Dentre elas, a água encanada, o sistema de esgoto, rede elétrica e várias outras que tornaram a vida mais fácil – especialmente em vista do que era a vida no campo.

– Teve algum presidente ou governo na história do Brasil de quem a senhora gostou mais?

– Olha, eu falo… (risos) Todo mundo fala, né, não sei por quê… Mas é que na época do Lula a vida era mais fácil, confessa dona Guida, como se estivesse admitindo um pecado.

– E a senhora gostava dele?

– Ah, antes de descobrir as coisas erradas eu gostava (risos).

Nessas eleições tem ouvido falar muito sobre um candidato que promete resolver a crise no Brasil. Mas não esconde certo receio, mesmo com a campanha gratuita feita pelos filhos e marido:

– Todo mundo fala que vai votar no Bolso… É Bolsonaro que chama? É, né? Pelo menos na minha casa, meus filhos, os amigos dos meus filhos, só escuto isso. Então, eu vou com eles também. Espero que quando ele assumir não faça as mesmas coisas que os outros, vamo ver.

As considerações sobre política feitas por dona Guida representam a complexidade de um país de instituições desacreditadas. Em 2013 Bolsonaro foi um dos poucos deputados que se posicionaram contra a PEC das domésticas, proposta de emenda na lei brasileira que visava garantir direitos trabalhistas à população que, assim como dona Margarida, exerce um tipo de trabalho historicamente desvalorizado no país.

Bolsonaro também é o candidato daqueles que pregam, além do resgate do respeito às autoridades, uma maior liberdade de atuação para policiais militares.

– A senhora se sente segura aqui em Bauru?

– Eu me sinto. Ali pra cima da minha casa tem uma boca de fumo, essa semana que passou tava cheio de polícia lá, não dava nem pra passar na rua. Mas eu não posso falar que eles mexem com a gente. Pelo menos ali eles não mexem com ninguém. Eu ando lá e não tenho medo.

– A senhora se sente segura com a polícia militar?

– Nem com todos, viu, tem uns que passam mais medo.

Foi a resposta curta de dona Guida, que só veio depois de um longo silêncio.

Seis da tarde como era de se esperar

Margarida trabalhou por muito tempo na COHAB de Bauru e traz de lá boas lembranças das companheiras de limpeza. A memória mais marcante de todo o tempo em que trabalhou com faxina, no entanto, lhe causa tristeza. Fez uma amizade muito grande com uma das faxineiras que, àquela época, era muito pobre.

– Ela veio do Mato Grosso grávida. Tinha dois filhos e na terceira gravidez o marido mandou ela vir pra Bauru na frente. Depois ele viria com o enxoval do bebê. A gente trabalhou juntas por oito anos e o marido nunca apareceu. Teve um dia que ela ficou muito doente, faleceu e o menino ficou com a irmã mais velha. Isso foi uma coisa que me marcou muito.

A maior lembrança é de como a amiga era trabalhadeira. A falecida se desdobrava pelo filho caçula e tinha mais de dois empregos. Se esforço fosse critério pra riqueza a história de privação nem existiria. É claro que dona Guida preserva outras memórias além do trabalho, pela grande amiga que foi e pelos momentos juntas. A impressão que fica, todavia, é que o trabalho de faxina se sobrepõe a tudo na vida de quem o desempenha. Dona Guida e a amiga que perdeu são, acima de tudo, as mulheres da limpeza.

Além do trabalho de faxina e zeladoria nos edifícios da vila Cidade Universitária, dona Guida exerce outras atividades que complementam sua renda. Limpa casas e apartamentos, lava e passa roupa e faz consertos de costura, dentre outros bicos. Em consequência do trabalho já perdeu consultas médicas importantes. A saúde é forte, mas a dependência do cigarro, que dura mais de 30 anos, também.

A aposentadoria está pra sair no início do próximo ano, quando completa 60 anos. A intenção é continuar trabalhando, mas não sabe como vai estar sua saúde. A aposentadoria seria justamente a garantia de uma renda nos próximos anos, caso as coisas deem errado e não consiga mais dar conta das mesmas atividades de hoje. Quando indagada sobre planos para o futuro de aposentada – talvez viajar para outros lugares –, dona Guida expressa uma naturalidade desconcertante:

– Filho, pobre não quer conhecer lugar (risos)!

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Foto: Victória Linard

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Redação

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