Imagine um conjunto de pessoas que se reúnem e se organizem para criar um produto, qualquer um. Elas investem em equipamentos, trabalham em algum processo da criação deste produto. Vendem a um preço justo sua mão de obra e dividem o lucro entre si igualmente, ou o usam para investir em seu pequeno negócio. Imagine não competir com o mercado, não ter patrão ou meta a cumprir. Imagine um ambiente de trabalho baseado na amizade e na colaboração, onde todas as decisões são tomadas em conjunto. Tudo baseado no interesse e nos objetivos do grupo. Isso é economia solidária.
Para entender esse novo jeito de produzir e gerar renda é preciso entender alguns conceitos. O primeiro é o da autogestão, que é quando não há um dono, não há um empregado, todos são responsáveis e participam nas decisões. É a maior necessidade para se ter um empreendimento dentro da economia solidária. Mas ela também se baseia na coletividade e na autonomia. Promover um desenvolvimento sustentável, com divisão de tarefas e de lucros. É uma forma de incentivar o consumo dos produtos locais e gerar renda.
A economia solidária surge a partir das mudanças sociais que ocorrem no período de emergência do neoliberalismo que chega na América Latina nos anos 1990. Em um cenário de crise econômica, o aumento das desigualdades gera alta quantidade de desemprego. É aí que os empreendimentos de economia solidária (EES) emergem como uma maneira de driblar a crise. Combatendo o lucro, a competição, a desigualdade, a exploração e o desemprego, os membros de uma cooperativa ou associação podem gerar inclusão social, democrática e difusão de conhecimento e cultura.
A ideologia da economia solidária, tal como produzida pelo economista e professor Paul Singer, se fortalece a partir dos novos governos neopopulistas. É durante o Governo Lula, em 2003, que surge a Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), com o objetivo de incentivar a geração de renda por meio dessa nova forma de organização do trabalho. Porém, já nos anos 1980 ocorreram algumas recuperações de empresas, além do crescente debate sobre a globalização. Singer trabalhou 13 anos na Secretaria Nacional de Economia Solidária e contribuiu para que o governo brasileiro criasse formas de incentivo e apoio com Fóruns, Institutos, Secretarias Municipais e Universidades.
Entre 2003 e 2005 surgiu a Associação Brasileira de Pesquisadores de Economia Solidária (ABPES), com a mobilização de alunos da pós-graduação de diferentes cursos da USP em interlocução com Paul Singer. Atualmente são 84 pesquisadores de 13 unidades de Federação, além de mais três países: Bélgica, França e Portugal.
É comum buscar comparações com o passado para tentar entender a economia solidária. Rafael Antunes, mestre em História pela Unesp, conta que alternativas aos sistemas econômicos vigentes, por exemplo, sempre existiram. É o caso do feudalismo europeu, em que os camponeses, sendo explorados pelos detentores da terra, praticavam trocas de produtos e mercadorias. Durante o período colonial no Brasil também havia um considerável número de pessoas que praticavam diversas atividades econômicas complementares e alternativas ao modelo vigente na época.
O sociólogo e filósofo Nildo Viana afirma que apesar dos modelos apresentarem semelhanças, a economia solidária é um produto do modelo vigente, o capitalismo neoliberal, por isso não pode ser comparada com as formas de organização econômica do passado.
O modo de produção capitalista surge na Europa ocidental e hoje é predominante no mundo inteiro. Ele transforma tudo em mercadoria e assim impõe o processo de mercantilização e monetarização a todos os indivíduos e formas de produção, uma vez que todos passam a necessitar de dinheiro.
Sendo assim, o modo de produção cooperativista também está submetido ao capitalismo, ao mercado e à burocracia. É importante lembrar que a produção camponesa, artesã e cooperativa é voltada principalmente para venda. Dessa forma, reproduz as relações de produção capitalista: manufaturação de mercadorias, trabalho assalariado, submissão ao mercado e ao aparato estatal capitalista. Viana afirma que “no plano da existência concreta, o que se chama de ‘economia solidária’ é o velho cooperativismo, só que apoiado pelo aparato estatal e renovado por uma nova ideologia. É apenas a partir da ideologia que ela se propõe a romper com o capitalismo.”
Juliana Soares, mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pela UFSCar, afirma que apesar da economia solidária ter sido concebida por pessoas na situação de carência de recursos econômicos, esse modelo prevê uma alternativa à economia tradicional que pode ser adotada por qualquer grupo social. “Sua base não é falta de recursos econômicos, mas a tentativa de sair da lógica do modelo econômico capitalista”.
Como visto anteriormente, na economia solidária todas as pessoas envolvidas são proprietárias do empreendimento e cuidam da gestão de forma horizontal. O lucro é dividido igualmente e o foco é o ser humano, suas relações e a solidariedade. Já na economia capitalista há uma divisão hierárquica. “O dono dos meios de produção compra a mão de obra do trabalhador pelo preço que lhe convém, sendo que o valor pago nunca é o que de fato o trabalho vale, resultando num processo de exploração. O objetivo é o lucro, a capitalização, independente de quais efeitos estes produzem no ser humano”, afirma Juliana.
Existem muitos tipos de economia solidária, na cidade e no campo, seja em forma de cultura ou alimento, seja um investimento ou um gasto. A agricultura familiar é um forte exemplo, mas há também trabalho no artesanato, em bancos, com prestação de serviços, na reciclagem e as hortas comunitárias. É claro que igualmente existem dificuldades pois a economia solidária está inclusa em meio ao mercado capitalista e acaba tendo que se submeter às suas regras. A própria autogestão é um ideal a ser alcançado, assim como afirma Juliana Souza, “o empreendimento econômico solidário precisa equilibrar as relações autogestionárias com o bom resultado econômico, sob pena de não conseguir sobreviver quando enfrenta a concorrência das empresas capitalistas”.
Apesar das considerações sobre seu bom funcionamento, existem muitos benefícios em se trabalhar no ramo. Rafael Lima, da Secretaria Municipal de Agricultura e Abastecimento (SAGRA) de Bauru, ressalta quais são: “desenvolvimento social, fortalecimento do cooperativismo, incentivo à novos empreendedores, fixação do produtor e o jovem produtor no campo, alternativa de rendas para as mulheres, geração de emprego e de rendas”. Algumas famílias que, às vezes, não teriam condições de se inserir no mercado formal pela baixa qualificação têm a chance de se organizar de maneira coletiva, usufruindo de bens e mecanismos legais.
Os próprios participantes das cooperativas dizem que seu bem estar e felicidade são beneficiados, mas a economia solidária vai além. “Temos a melhor distribuição da renda, a valorização do ser humano e o fim da exploração, a valorização do trabalhador pelo advento da autonomia, o desenvolvimento sustentável”, aponta Juliana.
Um projeto de economia solidária pode surgir desde trabalhadores recuperando fábricas em falência até um grupo de donas de casa que fazem bolos e salgados para festas. O estado de São Paulo possui a maioria de suas cooperativas e afins no ambiente urbano, e desde a criação da SENAES, as prefeituras têm procurado desenvolver secretarias e diretorias para incentivar políticas públicas específicas que apoiem e fomentem os empreendimentos nessa área. Em Osasco, por exemplo, a prefeitura organiza mulheres beneficiadas pelo Bolsa Família e com conhecimento em corte e costura para fabricar uniformes escolares em cooperativas. As vestimentas são compradas pelo próprio município para seus alunos.
Um estudo realizado por Viviane Anze, Chefe da Seção de Economia Solidária da Superintendência Regional do Trabalho (SRTE) no estado de São Paulo, revela que o investimento em políticas públicas do governo federal no estado foi de 15 milhões de reais, no período 2011 a 2016. Segundo a pesquisa, “o estado de São Paulo representou, em termos comparativos, mais de 30% do volume total de recursos aportados em políticas de fomento à economia solidária, considerando-se tanto os gastos diretos do governo federal quanto às transferências de recursos, que, juntos, totalizaram aproximadamente R$ 260 milhões”.
O Estado pode incentivar esse tipo de empreendimento de diversas maneiras, seja cedendo espaços físicos, fornecendo assessoria técnica e capacitação, disponibilizando equipamentos, dando suporte jurídico e institucional, propiciando linhas de crédito ou desenvolvendo programas de incubação. O único requisito é que as empresas estejam formalizadas. É dever do Estado dar apoio à esses empreendimentos, pois como explica Sandro Pereira Silva, técnico de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), “as políticas públicas para a economia solidária são importantes para estimular a criação e o desenvolvimento de práticas associativas de geração de trabalho e renda no Brasil”.
Deveria ser função do Estado propiciar condições favoráveis e adequadas aos empreendimentos, seja organizacional, estrutural ou juridicamente. Portanto, uma prefeitura que sistematize feira livres, forneça cursos de comunicação e marketing aos sócios das cooperativas ou compre produtos locais para a merenda de suas escolas é de suma importância. Como aponta o estudo de Viviane Anzi, São Paulo foi o estado que mais recebeu recursos no últimos anos. Por outro lado, Sandro Pereira Silva lembra que “a queda brusca no orçamento para as políticas de economia solidária no governo federal brasileiro a partir do ano passado lança uma séria dúvida quanto à continuidade dos programas já existentes”.
Num contexto de altas taxas de desemprego, a atuação do poder público é fundamental, afinal, a economia solidária possui intensa mão de obra, “mas também é preciso focar na elaboração de marcos normativos mais justos, que não equipare o nível de exigências e de tributação entre grandes empresas, inclusive multinacionais, e pequenas empresas e cooperativas locais. Grupos econômicos de porte diferente precisam receber estímulos diferentes”, afirma Sandro.
Dentro dessa perspectiva solidária é possível também criar um banco comunitário, como é o caso do Banco Palmas. Joaquim Melo, um de seus fundadores, conta as vantagens e dificuldades vividas ao longo dos 20 anos de banco, que é montado a partir de uma iniciativa da população de um pequeno bairro de Fortaleza.
Em 2005, o Banco Palmas obteve o reconhecimento da Secretaria Nacional de Economia Solidária como uma experiência importante para a superação da pobreza, convidando-os a expandir para outros bairros. Atualmente, são 113 bancos comunitários no Brasil.
As incubadoras são órgãos de apoio e fomento aos empreendimentos econômicos solidários. “Trabalham para fortalecer esses projetos oferecendo assistência técnica para a criação, organização, gestão, produção, comercialização e articulação política, buscando sempre lhes tornar capazes de serem autônomos, de forma a não depender do poder público e de outras interferências externas. Uma incubação precisa ter começo, meio e fim. Termina quando o empreendimento se torna apto a se organizar sem assistência externa”, afirma Juliana Soares.
A Incop é a incubadora de cooperativas populares da Unesp Bauru. O projeto incuba há 3 anos uma cooperativa de agricultores e, por isso, carrega estereótipo de ser voltado somente à agricultura, sendo que na verdade trabalha com todos os tipos de economia solidária. Atualmente eles incubam o projeto COOP Mulher, localizado no assentamento Aimorés, que antes era conhecido como Projeto Semeando Vidas – Grupo Mulher. Em 2015, a Incop inscreveu o projeto num edital da Cáritas brasileira e foram contemplados, mas o recurso financeiro só chegou no ano de 2018.
A incubadora conta com o apoio da Secretaria Municipal de Agricultura e Abastecimento (SAGRA), que fornece o transporte para os membros da COOP Mulher irem até a Unesp e também para os membros da Incop irem até o assentamento. Além disso, geralmente um representante da secretaria acompanha as visitas com a Incop. No momento, eles estão se preparando para o processo de desincubação da COOP Mulher que acontecerá no segundo semestre deste ano. Dessa forma, planejam incubar outros dois projetos de economia solidária e, para isso, estão em busca de uma parceria com a Secretaria do Bem Estar Social de Bauru (SEBES).
A Enactus é uma organização não governamental que existe em diversos países. No Brasil, está presente em muitas universidades, como a Unesp, com o objetivo de inspirar estudantes a melhorar o mundo através do empreendedorismo social. A ONG cria projetos de desenvolvimento comunitário que tenham fins lucrativos para a comunidade. Pedro Azevedo, diretor de comunicação da Enactus Bauru explica que eles são calcados em 3 pilares: social, ambiental e econômico.
Em 2013, Greice dos Santos começou a produzir tiaras semelhantes as que a cantora Anitta usava na época. Bastou uma publicação no facebook que várias pessoas começaram a compartilhar e encomendar. Foi assim que o ateliê Charloo deu seus primeiros passos. A idealizadora explica que cada peça é única e carrega uma identidade. Ela mesma é quem busca personalizá-las.
Apesar de amar o que faz, Greice conta que lida com o preconceito. “Quando falamos de artesãos, as pessoas acham que você não trabalha ou que não gosta de trabalhar. E não é. Você está na sua casa, produzindo, ou seja, trabalhando. Mas você só vai ganhar dinheiro se conseguir vender a sua peça. Essa é a diferença.”
Na cidade de Bauru existem aproximadamente 44 feiras livres e cerca de 300 produtores que trabalham com agricultura familiar. Rafael Lima, da SAGRA, conta que eles estão divididos em cooperativas e associações e produzem hortifruti, mel, leite e derivados. Rafael acrescenta que a SAGRA incentiva a economia solidária dando apoio e auxílio na organização e desenvolvimento, além de estabelecer parcerias com a UNESP, FIB, Instituto SOMA e Sistema S, para que possam beneficiar os empreendimentos solidários existentes no município.
A Secretaria Municipal do Bem Estar Social não está realizando trabalho específico relacionado à economia solidária no momento. Eles ressaltam que estão planejando e articulando ações para o ano de 2019, até mesmo em parceria com projetos da Unesp, mas que ainda não há nada concreto.
Chico Maia, ex secretário da Cultura do município, conta que grande parte das políticas públicas foram desmontadas por falta de recursos. Como exemplo, ele cita que “dentro da agricultura familiar havia um programa voltado a aquisição dos produtos dessas cooperativas. O governo cortou o orçamento em torno de 85%. Não tem mais dinheiro para comprar dessas famílias. Se não compra, não paga. Se não paga, não tem renda. Não tendo renda, muitas dessas famílias que estavam planejando um investimento em máquinas, equipamentos e animais, deixam de investir.”
Para Sandro Pereira da Silva, técnico de planejamento e pesquisa do IPEA, “falta uma maior divulgação sobre a importância de se valorizar práticas coletivas de trabalho e produção, bem como valorizar produtos locais, no intuito de ampliar as possibilidades de organização produtiva e comercialização dos empreendimentos.”