A história de uma menina latino-americana, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes, mas com muita coisa a ensinar
O olhar atento vasculha o ambiente calmo da livraria. O clima frio provavelmente é responsável por tirar o ânimo dos poucos presentes que observam desinteressadamente os livros, papéis, cadernos e agendas ali dispostos. Aqui e ali, os olhos e ouvidos de Vitória Martins, de 24 anos, dividem a atenção entre as perguntas sobre sua vida e os clientes que podiam, a qualquer instante, precisar atendimento ou tirar uma dúvida.
Suas roupas revelam um estilo casual e despreocupado: o jeans escuro, a camiseta e os tênis contrastam com o tom bege e formal do avental, a única peça do uniforme da livraria que a havia concedido uma vaga na área de vendas recentemente. Seu local de trabalho é primeiro lugar escolhido para a entrevista que nós realizamos.
Para um primeiro encontro, Vitória se revelou muito gentil e descontraída, conversando tranquilamente sobre questões triviais. Mas, quem a vê assim, não imagina que, mesmo antes dos 30, ela precisou amadurecer mais rápido do que as outras garotas de sua idade para poder passar pelas barreiras da vida.
Enquanto conversa, a jovem revela sua história com um sotaque que em nada se assemelha ao dos habitantes do interior paulista. A culpa dessa diferença é herança do tempo em que morou em Santa Catarina, estado que foi seu lar desde a infância até os 18 anos. Bauruense de nascença, retornou ao oeste paulista há aproximadamente dois anos, após assumir sua homossexualidade e o relacionamento com outra mulher.
Desde então, vive com os avós paternos, Ana e Laércio, moradores de Bauru, uma vez que a convivência com os pais não foi das mais amigáveis. Por serem religiosos, eles costumavam repreendê-la — mas isso não significa que o contato familiar tenha sido rompido. “Aos 12 anos, eu jogava futebol no colégio, e minha avó dizia que eu era ‘machão’ ou que calçava 44. Eu nem entendia direito, mas é algo que eu sempre escutei da família.” Mesmo que hoje não se falem com tanta frequência, Vitória diz que a mãe ainda se preocupa com ela, principalmente em relação aos riscos que corre em função de seu visual.
As memórias que Vitória guarda da infância são como as de qualquer outra pessoa de uma vida normal: brincadeiras na casa da avó no chão de terra vermelha, principalmente nos dias de chuva. A amiga que a acompanhava pelas aventuras infantis está presente na vida de Vitória até hoje. Mas agora a história é de mais cumplicidade do que a época de criança: que namora a Camila, a amiga ajuda e as acolhe em casa, já que os parentes não lidam bem com o relacionamento de Vitória.
“Eu tento acordar o mais cedo possível para ajudar a minha avó, que fez uma cirurgia no pé. Almoço, saio para o trabalho e fico lá até as 22:00. Quando chego em casa, só quero jantar e dormir. Sei que deveria entrar no portal da faculdade e estudar, mas não consigo fazer isso sempre”, comenta. Vitória faz um curso semipresencial de Gestão de Recursos Humanos e, uma vez por semana precisa ir à faculdade.
Como a maior parte das pessoas de sua idade, ela gosta de assistir a séries de tevê para se distrair e poder descansar da rotina exaustiva que leva. A animação Desencantado é a série que acompanha atualmente, mas no topo de sua lista de favoritos está o seriado norte-americano How I Met Your Mother, ao qual ela já assistiu cinco vezes: “Fico triste que ela tenha saído da Netflix”, brinca, ao comentar que gostaria de rever a série novamente. Também gosta de filmes dos mais variados gêneros (mas, se precisar escolher, prefere os de drama aos de comédia).
Em relação à música Vitória é rápida na resposta: “Tudo menos sertanejo. Escuto Calypso, pagode, funk… mas sertanejo dói (risos)”. Suas artistas favoritas são Shakira e Pitty. “Fui num único show da Pitty, eu tinha 13 anos. Eu não podia entrar sem acompanhante, então minha mãe foi comigo. Como demorou a começar, minha mãe reclamou muito. E, quando acabou, fiz ela esperar para tentar ver a banda ir embora. Deu certo, o baterista e a própria Pitty apertaram minha mão, aí eu disse que não lavaria as mãos nunca mais (risos). Depois encontrei a banda de novo na rodoviária. Eles falaram comigo, mas fiquei tão feliz que não conseguia dizer nada”, relembra a jovem, com muito humor.
Seu primeiro relacionamento heterossexual durou três anos. A mãe, que não aceitava a relação, a expulsou de casa. Vitória, então, passou a morar com uma tia, tentativa que também não deu certo. Assim, ela se viu obrigada a morar com o rapaz, e assim ficou por dois anos. “Foi horrível. Foi uma fase ruim, eu não era feliz, mas eu tive que aguentar pelas minhas condições”. Ao perceber que o relacionamento estava fadado ao fim, deu um ponto final. Até então, ela não havia se descoberto lésbica.
Anteriormente, Vitória tinha os cabelos longos, que chegavam mais ou menos até sua cintura. Contudo, como ela os mantinha presos por muito tempo, os fios começaram a cair. Assim, ela optou por cortar para tentar devolver a saúde aos fios. Primeiro, cortou na altura dos ombros, e gostou do resultado. Depois, cortou mais, até chegar no famoso estilo “joãozinho”. Agora, ela comenta que fica incomodada ao menor sinal de crescimento dos fios e corre para cortar e manter o cabelo curto.
Mesmo com o visual que muitos julgam como masculino apenas pelo comprimento dos cabelos e a falta de maquiagens, Vitória, assim como quase todas as mulheres brasileiras, já sofreu assédio sexual. Com ela, aconteceu enquanto voltava do trabalho com um colega, que havia lhe dado carona. Ao chegar em casa, o rapaz a agarrou mas, por sorte, aceitou a rejeição de Vitória. Ela acredita que, ao aceitar a carona do colega de trabalho, ele tenha a interpretado como um interesse romântico.
Em alguns momentos, enquanto conversa, ela afasta os cabelos castanhos que, mesmo curtos, insistem em cair sobre seus olhos, enquanto relembra os episódios desagradáveis que já sofreu por conta de sua forma de se vestir e do corte de cabelo que adotou. Vitória revela que é comum que clientes a confundam com um homem, demonstrando as reações mais variadas que vêm logo na sequência: há quem peça desculpas e quem nem mesmo tenha esta preocupação, chamando-a repetidamente de “moço”, mesmo que ela diga seu nome em alto e bom som ou que aponte para o botton pregado no avental mostrando seu nome.
Antes de fazer parte do time de vendedores de livros, a estudante passou por uma empresa de cobrança famosa na cidade. No fim da experiência, não foi efetivada por “não ter o perfil”. “Não gosto de cobrar ninguém. Eles ensinavam a gente a falar pra pessoa pedir dinheiro emprestado e pagar o que deve, mas eu não gosto disso. Eu não pediria a ninguém se estivesse devendo. Então, no fim das contas, acabou sendo um alívio sair de lá”, recorda.
Como é de se imaginar, não é apenas no trabalho em que Vitória sofre episódios de preconceito: em banheiros de shoppings, por exemplo, as funcionárias responsáveis pela limpeza costumam abordá-la para alertar que o local é reservado ao público feminino. Inclusive, já foi necessário que se dirigisse a uma mulher que a olhava de forma insistente e dissesse “Eu sou mulher, pode ficar tranquila”, para que a desconhecida parasse de encará-la como um intruso.
Os provadores de lojas de roupas também podem representar grande desconforto para ela. Ao levar uma peça de roupa para experimentar, as atendentes costumam indicar a direção das cabines masculinas, além de produtos voltados para homens. O mesmo acontece com artigos de papelaria: alguns vendedores costumam indicar cadernos com capas neutras ou dirigidas ao público masculino. “Caderno não tem gênero, e eu não vou fazer nada com ele além de estudar”, diz ela enquanto ri da situação.
Após o término do infeliz namoro, Vitória ficou solteira por um ano, até que conheceu uma garota e passou a namorá-la. Nesse momento, a jovem decidiu assumir sua orientação sexual para a família: “Não queria que ela fosse tratada como uma amiga pela minha família, e sim como minha namorada. Ao mesmo tempo, seria bom pra mim que minha família soubesse quem eu sou”. Há cerca de seis meses, Vitória iniciou um namoro com Camila, uma moça de 22 anos, moradora de Promissão. “Conheci a Camila num aplicativo. Nós conversamos e marcamos de tomar uma cerveja. De repente, virou namoro (risos). A gente se dá muito bem”. Os 128km que as separam não permitem que as duas se vejam com a frequência que gostariam, mas Vitória diz que dá para se virar. Se o amanhã a reserva boas surpresas, ninguém sabe. Mas os planos dela é morar com Camila num futuro próximo.
Sobre o preconceito, a jovem diz receber conselhos da namorada contra possíveis assédios ou agressões verbais: “Ela sempre diz ‘segue e não dá bola pra ninguém’. É isso o que a gente faz. Ela é mais durona do que eu”. Por sorte, o casal nunca passou por apuros por parte de estranhos. Mas, em entrevistas de emprego, “o entrevistador me chamou e, quando me viu, me mediu de cima abaixo e fez cara feia. Outros enfatizam muito bem que querem contratar uma menina”, revela.
A estudante não segue nenhuma religião, apesar de acreditar na possível existência de algum ser superior. “Nunca senti que precisasse da religião. Quando bate o desespero eu até faço uma oração, mas é difícil”, conta Vitória, que costuma seguir as palavras do avô: “Eu gosto do que ele diz: ‘Nós não temos que orar para pedir alguma coisa, e sim para agradecer’. Se existe realmente algum Deus, ele sabe do que eu preciso. Quando eu consegui um emprego, eu chorei, agradeci. Mas não ajoelhei, só mentalizei meu sentimento. Não sou igual à minha avó, que vê os pastores na TV e coloca um copo d’água perto pra eles benzerem”. A estudante ainda lembra que, quando disse à mãe que não queria mais ir à igreja, “ela ficou brava e colocou uma santa no meu quarto pra ver se ela iluminava minha alma. E a minha avó de Santa Catarina disse que minha alma precisava de salvação”. Hoje, Vitória leva o assunto com mais humor: “Minha avó sempre fala que Deus está preparando alguma coisa pra mim. Eu tô precisando de dinheiro. Espero que ele entenda que eu preciso muito de dinheiro agora (risos). Se ele está preparando algo pra mim, deve ser algo muito bom, pelo tempo que está demorando. Quem sabe eu não vire dona de uma empresa? (risos)”.
“Tudo menos Bolsonaro”. Vitória é categórica na afirmação. Quando questionada o motivo de uma opinião tão forte contra o candidato à presidência do Brasil, a jovem dispara: “Ele é uma pessoa completamente fora da casinha. Não tem como apoiar um machista, misógino, homofóbico, racista. Eu não posso ser contra eu mesma, contra as pessoas da comunidade da qual eu faço parte. Não posso aceitar um candidato desse”. Porém, nem todos pensam como ela. “Minha família apoia o Bolsonaro. Meu pai, meu sogro. O mesmo tio que me chamava de sapatão é o que vai votar no Bolsonaro”.
Um arco com cinco flechas é o desenho marcado na pele da estudante, mais precisamente no braço esquerdo. “Dizem que significa proteção e força. Mas nem pensei muito na hora de fazer”. Intencional ou não, a simbologia tem muito a ver com a história da moça, que quer tatuar um novo desenho, dessa vez com um significado escolhido de forma mais consciente: “Não sei direito onde fazer, talvez no pulso. Mas quero um triângulo preto invertido, símbolo da resistência lésbica. Durante o nazismo, eles marcavam as lésbicas com esse triângulo. Hoje virou símbolo de resistência”. Apesar da vontade, Vitória não se considera militante do movimento LGBT.
Um episódio de preconceito vivido por ela e a namorada fez com que a história fosse parar na internet. “A Camila postou num grupo do Facebook sobre um tio dela que fez comentários homofóbicos em uma foto comigo”. A publicação? Uma foto lado a lado, sem beijos, grandes aproximações ou qualquer coisa considerada ofensiva para a maior parte das pessoas. O resultado foram 9 mil curtidas no post e inúmeros comentários dos membros do “LDRV”, o grupo em questão.
Para ela, a parte boa do grupo é que eles sabem se unir em prol de alguém que precisa de ajuda. “Vi a história de um menino gay que tinha um copo separado do resto da família, porque tinham nojo dele. Ele pediu um emprego para poder morar com o namorado e conseguiu por causa dos membros de lá”, conta. Por outro lado, algumas pessoas fazem piadas e comentários de mau gosto, além de mostrarem preconceito contra a própria comunidade. “Uma amiga da minha ex-namorada apanhou de uma drag depois de esbarrar nela sem querer em uma festa LGBT. Isso é uma coisa que precisa mudar, afinal todo mundo é parte de um mesmo grupo”.
Vitória acredita que mesmo a comunidade LGBT sofre muito com o machismo. Ela conta que alguns homens, por serem gays, se sentem na liberdade de apalpar as garotas ou vê-las nuas, por exemplo. “E a parada gay, ou da diversidade, como tem em Bauru, é muito mais voltada ao público masculino. Agosto é o mês da visibilidade lésbica e quase não se fala sobre isso. Mas sobre os homens, sim. Morre muita trans no Brasil, mas isso ainda não é falado. Homens vestidos de mulher são engraçados ou tidos como “fantásticos”, mas mulheres de visual masculinizado são xingadas. A Maria Gadu é um exemplo disso”.
Vitória lembra que, na parada da diversidade do ano passado, uma amiga teve que fingir que era sua namorada, pois os homens, mesmo gays, não paravam de assediá-la. “Os homens me veem como outro homem e comentam coisas comigo sobre mulheres que me deixam desconfortável. Eu não sou um cara, não trato as mulheres da mesma forma como eles tratam”. Ou então veem a lésbica como um objeto de fetiche. Vitória conta que os convites para ménages são comuns para sua namorada. “Se uma lésbica tem o visual feminino, o comportamento dos homens é diferente. Sempre aparece um casal perguntando se ela topa passar uma noite com eles ou algo do tipo”.
Há também casos de homens que estupram casais lésbicos “para mostrar como se faz” ou “porque uma mulher só é lésbica porque não transou com um homem de verdade”. Pelo relato da estudante, percebemos que a sociedade em geral ainda acredita que o prazer sexual precisa ter, necessariamente, um pênis (ou algo que se assemelhe) envolvido. “Quando me assumi pra minha mãe, ela perguntou quem iria ser o homem da relação. Mas a intenção é justamente não ter um homem (risos). Outros perguntam ‘mas não falta alguma coisa?’ E meus primos perguntaram se usamos algum tipo de ‘brinquedinho’. Mas não, não precisamos disso. Estamos bem assim”.
“Quando as pessoas veem alguém com qualquer comportamento diferente, já dizem ‘olha, aquela ali é sapatão’ ou ‘ih, esse é viado’. Mas, se por acaso essa mesma pessoa se assume, ninguém aceita. Todo mundo aponta o dedo, mas na hora de acolher, ninguém está lá. Perguntam se não é uma fase, ou algum relacionamento mal resolvido”.
Camila sofreu mais do que Vitória dentro de casa por ser lésbica. “A mãe dela a levava na igreja para tentar exorcizá-la. Já é difícil se assumir tendo uma família que te apoia. Quando não encontramos um porto seguro nem dentro de casa, as coisas ficam muito mais difíceis. Não existe autoestima e força pra gente conseguir sair de casa e enfrentar o mundo. Quando um pai chama um filho gay de nojento, ou chama de aberração, é mais difícil ter uma defesa para o preconceito que vem de fora. Falta mais apoio familiar e diálogo. As pessoas tentam fingir que tá tudo bem, assim como acontece com o racismo. Mas o preconceito só acaba quando todo mundo puder falar sobre isso.”
As novelas deveriam ajudar as famílias a dialogar sobre o assunto, mas acabam atrapalhando. Na trama de Segundo Sol, por exemplo, uma lésbica se apaixona por seu colega de trabalho. “Isso faz com que as pessoas pensem que as lésbicas podem, sim, gostar de um homem. É como uma ‘cura gay’, ou algo do tipo. Basta ela conhecer o homem certo e tudo vai ficar bem”. Outro problema é a ideia de promiscuidade que esse tipo de representação pode reforçar ao público, opinião já existente entre o público mais conservador. “Me perguntaram se eu vi o filme Azul é a Cor Mais Quente. Não vi e nem quero ver. Não acredito que ele conte uma boa história, nem que represente as mulheres lésbicas”.
O filme retrata uma história semelhante à novela: uma adolescente conhece uma garota de cabelo azul, com quem começa uma intensa relação e uma viagem de descobertas e prazer. Porém, a jovem conhece um garoto e se sente dividida emocionalmente. Vitória também menciona a trama de Suzy (Ellen Rocche), Samuel (Eriberto Leão) e Cido (Rafael Zulu), que viveram uma espécie de triângulo amoroso onde os dois homens viviam uma relação homossexual, mas Samuel se sentia fortemente atraído por Suzy. No fim da trama, os três aceitaram viver um relacionamento, mostrando que um gay pode se apaixonar e querer ficar com uma mulher.
Ao encerrar a entrevista, ela se dirige à livraria para começar mais um dia de expediente, caminhando com passos apressados. Após breve instantes, Vitória está junto de seus colegas conversando e sorrindo, enquanto ajeitava o nó que prendia o avental do uniforme às costas. A fala é baixa, calma, mas descontraída: traços que lhe pertencem e que ela mostra ao mundo, muito antes de qualquer “pré-conceito” criado por outros que simplesmente não se interessam em descobrir o que a jovem dos cabelos curtos tem para dizer.