A reentrada da ex-presidenta na política pode fortalecer oposição no Senado e ameaçar Macri em 2019
No dia 20 de junho, terça-feira, milhares de argentinos compareceram a um estádio em Avellaneda, Província de Buenos Aires. Apesar do frio de 9ºC registrado naquele dia, o discurso proferido pela mulher de 64 anos vestida de azul e que já presidiu o país por oito anos teve efeito acalentador entre o público portenho. O evento, um ato para anunciar a reentrada de Cristina Férnandes de Kirchner ao cenário político argentino com uma nova aliança partidária, a Unidade Cidadã.
A candidatura de Cristina Kirchner a um assento no Senado pela Província de Buenos Aires ocorre um ano e meio depois de sua força política e tradicional ser afastada do poder por um partido novo no sistema. Em 2015, a força política “Cambiemos” (“mudemos” em espanhol) de Maurício Macri derrotou o candidato governista Daniel Scioli, pondo fim a um período de 12 anos de kirchnerismo no país.
As eleições legislativas de outubro põem frente a frente os protagonistas das eleições gerais de 2015. Agora, no entanto, é o partido pequeno que se verá desafiado pelo gigante marcado pelas dissidências. Se o PRO (Proposta Republicana), partido de centro direita do atual governo, vencer as eleições de outubro, colocará em dúvida se o peronismo, ou qualquer uma de suas expressões, poderá voltar a governar o país. Por outro lado, se o peronismo de Cristina Kirchner (Unidade Cidadã), Florencio Randazzo (Partido Justicialista) e do ex-candidato à presidência Sergio Massa (Frente Renovadora) levar vantagem no pleito, o sentimento de que as políticas tradicionais são a melhor opção para governar o país poderá ganhar força entre os argentinos.
Se obtiver bom resultado nas eleições, Cristina Kirchner assumirá a liderança da oposição no Senado e terá como desafio catalisar o peronismo, hoje dividido. Com boa aprovação diante do eleitorado argentino – apesar dos escândalos de corrupção e dos vários processos judiciais que atingiram a ela e sua família – Cristina ameaça voltar a Casa Rosada. Para o professor de Relações Internacionais da USP, Amâncio Jorge Oliveira, o efeito direto de uma vitória de Kirchner será a presença de uma oposicionista ao presidente Macri, mas com impactos limitados enquanto equilíbrio de forças no Senado. “O efeito maior é pela potencialização da candidatura dela como presidente”, completa.
O professor titular da USP acredita que uma eventual vitória de Cristina Kirchner nas eleições gerais de 2019 poderia alterar a conjuntura política sul-americana, pois a ex-presidente representaria uma espécie de retorno de pêndulo para coalizações mais a centro-esquerda, em contraposição ao movimento mais para centro direita de vários países da região.
A derrota do kirchnerismo em 2015 marcou o início do fim da década dourada da esquerda latino-americana. Na Venezuela, o chavismo perdeu as eleições legislativas. Na Bolívia, Evo Morales foi derrotado em referendo popular que tentava a reeleição. No Peru, o candidato de centro-direita Pedro Pablo Kuczynski foi eleito. E no Brasil, a presidenta Dilma Rousseff sofreu um impeachment.
Para Matheus Oliveira Pereira, doutorando e integrante do programa de pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, uma parceria entre UNESP, UNICAMP e PUC-SP, a guinada da conjuntura política na América Latina se deve a diversos fatores. “O fracasso das políticas neoliberais – do qual a Argentina é o exemplo mais eloquente- mudanças nas estratégias das esquerdas, o fortalecimento de polos de poder alternativo no sistema internacional, a ampla liquidez do sistema financeiro internacional, aumentos dos preços das commodities, entre outros. Então, a ascensão de líderes historicamente vinculados ao campo da centro-esquerda é mais um dos pontos de um processo que propriamente o fator indutor. Assim, uma eventual vitória de Cristina Kirchner em 2019, ainda que tenha algum peso, dificilmente seria o catalisador ou indutor de um processo regional mais amplo”, explica.
Uma das questões que paira sobre as eleições legislativas na Argentina é se predominarão os votos por razões políticas ou por razões econômicas. Se predominar a questão econômica, o Governo Macri deve sofrer nas urnas, pois o país vive crise econômica, marcada pela queda na geração de empregos – apesar do tímido crescimento econômico de 1% registrado no primeiro trimestre. Apesar disso, o presidente mantém um apoio de quase 50% da população, um dos maiores índices da América Latina. Se predominar a questão política, os argentinos irão decidir entre o novo modelo de política proposto por Macri ou a tradicional política do peronismo, cujos governos recentes marcaram a história do país pós ditadura militar (1976-83).
No campo político, Cristina Kirchner leva vantagem por ter como celeiro eleitoral Buenos Aires. A província concentra 40% dos eleitores do país. O peso de Cristina Kirchner, avaliado em 25% das pretensões de votos segundo projeções do instituto de pesquisa Poliarquía, um dos mais importantes do país, se deve a sua aprovação em Buenos Aires, onde ocupou pela segunda vez uma cadeira no Senado, em 2005, dois anos antes de se tornar a primeira mulher eleita presidenta no país.
Questionado sobre os efeitos da reentrada de Cristina Kirchner na política com as relações diplomáticas entre Brasil e Argentina, Matheus Oliveira diz acreditar que o retorno de Kirchner a espaços de política institucional não tende a produzir muito impacto nas relações bilaterais, porque, na Argentina, a condução da política externa é muito concentrada no Executivo. “Se eventualmente ela chegar à presidência em 2019, os efeitos sobre as relações bilaterais ainda dependem muito do governo brasileiro e da conjuntura que envolve o núcleo das relações entre os dois países. De todo modo, Brasil e Argentina são importantes demais um para outro, política e economicamente, para que as conveniências partidárias se sobreponham à dinâmica própria do relacionamento bilateral”, comenta.
Já o professor da USP, Amâncio Jorge, afirma que a relação entre os dois países dependerá dos desdobramentos da política brasileira. “[A volta de Cristina Kirchner ao poder] teria uma forte tendência ao desalinhamento político-partidário se o Brasil mantiver forças de centro-direita, como as atuais. Não se sabe, contudo, se esta tendência irá permanecer no Brasil. A candidatura ou não do ex-presidente Lula irá nos dizer. Uma vitória de Kirchner, na Argentina, e de Lula, no Brasil, seria um realinhamento de centro-esquerda com potencial impacto no Mercosul e, em grande medida, na América do Sul”.
As eleições legislativas na Argentina servirão como um importante termômetro das eleições gerais de 2019 e definirão como serão os próximos anos do governo Macri. Ao anunciar sua candidatura para um público de 25.000 pessoas, Cristina Kirchner, no entanto, amenizou suas pretensões eleitorais: “Não me interessa ganhar as eleições, mas que os argentinos voltem a poder planejar suas vidas”, disse, ovacionada por uma multidão emocionada.