Relação entre Casa do Hip Hop e poder público se desgasta à medida em que antiga estação ferroviária recupera importância
Texto: Michel F. Amâncio e Victória Linard
Com sete anos desde a sua fundação e localizada na antiga Estação Ferroviária de Bauru, a Casa do Hip Hop vem enfrentando alguns problemas desde no ínicio de 2018. A instituição, que é reconhecida por ser um local de produção cultural, promoção de eventos com rappers e MC’s, palestras e oficinas, tudo aberto ao público, tem manifestado ser alvo de perseguição por parte de órgãos como o Conselho Tutelar. Segundo pronunciamento da Casa do Hip Hop em seu perfil no Facebook, a atuação do Conselho teria sido responsável pelo encerramento do projeto “Batalha de Panelinha”.
A batalha era realizada há dois anos pela casa e consistia na disputa de rimas, onde o melhor era premiado. Em outubro de 2017, o projeto “Batalha de Panelinha” foi cancelado por tempo indeterminado. O motivo: indisciplina.
Localizada na Casa do Hip Hop, dentro da antiga Estação Ferroviária de Bauru, a Batalha de Panelinha acontecia toda quarta-feira. De outubro do ano passado até o presente momento, o cenário de competição de rimas e danças mudou: as batalhas foram interrompidas sem muito alarde, passando até mesmo despercebidas, especialmente por parte da população que não é assídua na casa, já que suas atividades sequer costumam ser divulgadas na mídia tradicional de Bauru.
Em nota oficial, a Casa do Hip Hop em suas redes sociais fez um ato de protesto contra o cancelamento. “Durante 2 anos, mantivemos o projeto e todas as quartas-feiras tínhamos um espaço de lazer, cultura, entretenimento e difusão de um dos elementos da Cultura Hip Hop, o MC. Durante todo esse tempo, pedimos que não fosse consumido nenhum tipo de álcool ou drogas ilícitas dentro de nosso evento […]. Com o passar dos anos, tentamos um processo de conscientização, alertando para os prejuízos do uso de álcool e drogas, coibindo esse consumo dentro do nosso espaço e sempre pedindo a compreensão dos participantes. Porém esse processo falhou, e mesmo pedindo incessantemente para que isso não ocorresse no evento, uma minoria insiste em frequentar a batalha só pra fumar e beber”. A batalha começou com cerca de 15 a 20 pessoas, mas logo cresceu, chegando a mais de 300 pessoas. Com o crescimento, logo vieram as denúncias e as visitas do Conselho Tutelar.
Conhecido como Mc Estrofe, o jovem Wesley Santos Lima, de 19 anos, era frequentador e participante assíduo da Batalha. Segundo Estrofe, a interrupção da Panelinha evidencia uma censura por parte das autoridades que, de acordo com ele, temem as manifestações artísticas e culturais que questionam o sistema vigente e seus órgãos de poder, como a Polícia Militar, a qual possui uma base vizinha à Casa. De acordo com Estrofe, houve censura por parte da Polícia, a que aconteceu de maneira bastante direta: “antes da batalha começar, pediram pra não falar mal de polícia nas rimas, senão eles iam entrar aqui e parar com tudo”.
Oposição de lideranças evangélicas
A Casa do Hip Hop ainda se manifestou na mesma nota sobre as ligações entre Conselho e uma igreja evangélica, relembrando a polêmica eleição para conselheiros em fevereiro de 2016. Na ocasião, um pastor, candidato ao Conselho Tutelar, pagou ônibus para que fiéis de sua igreja fossem até o local de votação. O objetivo era, nas palavras da Casa, que “seus fiéis fossem até o local e escolhessem suas ovelhas para tentar reprimir a juventude através do Conselho. ” A reportagem tentou conversar com representantes da igreja em questão, mas não obtivemos resposta.
À época da eleição para o Conselho, surgiram denúncias de boca de urna e fraude eleitoral. As alegações foram encaminhadas para o Ministério Público, mas a votação ocorreu normalmente. Procuramos o Conselho Tutelar e conseguimos conversar, por telefone, com Kelly Silvana Andrade Correia, que se auto intitulou vice-presidente do Conselho.
Sobre a alegação da participação da igreja evangélica no aparelhamento do Conselho, Kelly assegurou que isso já é um assunto passado e que a atual gestão do Conselho não tem relação alguma com a eleição ocorrida no início de 2016. De fato, Kelly foi eleita para o Conselho em votação de dezembro de 2015. Entretanto, não conseguimos encontrar o resultado das eleições denunciadas de 2016 e nem se os membros eleitos não assumiram os respectivos cargos.
Kelly também sustenta que a ação do Conselho Tutelar em relação à Casa do Hip Hop sempre foi profissional e de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “Nossa ação se dá através de denúncias. Houve denúncias de uso de drogas lícitas e ilícitas por menores de idade na Casa, o Conselho foi averiguar e encaminhou relatório para o Ministério Público.” Foi tentado contato com a Secretaria de Cultura: o funcionário Paulinho Pereira, que preferiu não se pronunciar sobre o caso mencionado por Kelly e pela Casa do Hip Hop por seguir em segredo de justiça e em andamento com a promotoria.
Além das acusações de aparelhamento do conselho pela igreja e repressão da juventude, a Casa do Hip Hop responsabilizou o órgão público pelo cancelamento da “Batalha da Panelinha”. Ainda assim, Estrofe afirma que a Casa do Hip Hop decidiu encerrar a Batalha por conta própria, em grande parte por medo de perder o espaço cedido: “Tem um monte de atividade na Casa do Hip Hop (…) mas às vezes a Batalha é um atrativo pra quem não conhece a cultura do hip-hop, alguém que quer conhecer melhor o grafitti, o streat dance, o b-boy, o DJ, que vê uma batalha no YouTube e fala “Nossa, tem na minha cidade. Vou colar lá pra conhecer” e às vezes se interessa por uma outra coisa, conhece o cursinho, começa a estudar. Então, a batalha é sim uma porta de entrada para a cultura”.
A disputa além do espaço da arte: futuro ameaçado
Assim como outros eventos e atividades culturais da Casa, o funcionamento do Cursinho Comunitário da Casa do Hip Hop também se vê comprometido. O Cursinho, que não recebe ajuda da Prefeitura de Bauru ou outro órgão público, sobrevive e resiste, no precário endereço cedido. E mesmo isso vem sendo ameaçado. De acordo com Estrofe, o Cursinho recebeu um ultimato ano passado para deveria deixar o espaço emprestado dentro da Estação Ferroviária, pois o mesmo seria revitalizado; entretanto, desde então, os poucos reparos feitos no local se restringiram à implementação de alguns bancos de madeira e mudas de árvores, os quais estão situados em frente ao banheiro em condições impróprias para uso.
Com esforço, o cenário mudou e o Cursinho permaneceu, mas após as proibições e censuras feitas diretamente à Casa e o cancelamento da Batalha da Panelinha, a situação se mostrou incerta novamente: “Dá pra ver que a intenção deles é tirar a gente daqui, eles tão tentando de todo jeito. Capaz da gente já ir até achar outro lugar. Na última Batalha da Panelinha que teve, eles até deram a opção pra gente; da gente ir lá no Vitória Régia e fazer a batalha lá. ”