Em 2016, um terço das brasileiras grávidas não fizeram pré-natal adequado e outros grupos de mulheres encontram dificuldades no acesso a medicina ginecológica
Carolina Freire e Jean Prado
Míriam* tem 19 anos e está grávida de seu primeiro filho. A gravidez não planejada só foi descoberta no quarto mês de gestação, quando a estudante do curso de Administração levou um susto ao saber da novidade. Passado o choque inicial, Miriam e o pai do bebê, Vinícius, se dirigiram ao posto de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) da cidade em que residem, quando descobriram que só haveria vaga para consulta com um médico ginecologista e obstetra em três meses. Ou seja: a gravidez já estaria chegando no sétimo mês e o acompanhamento necessário durante o pré-natal não seria feito.
Olívia tem 18 anos, menstruou pela primeira vez aos 15 anos e, desde então, não conseguiu se adaptar a nenhum médico ginecologista. Isso porque nos quatro primeiros em que a garota se consultou desrespeitaram sua vontade de não tomar pílulas anticoncepcionais e receitaram o medicamento, mesmo com as ressalvas da paciente. Ela, recentemente, iniciou suas atividades sexuais e ainda não conseguiu sanar todas as suas dúvidas e entender o que pode fazer para prevenir uma gravidez não-planejada.
Claúdia tem 48 anos, é mãe de três meninas adolescentes e não vai a nenhuma consulta ginecológica desde que sua caçula, Gabriela, nasceu em 2001. Isso porque durante o parto de Gabi o médico ginecologista realizou uma episiotomia — um corte no períneo, região que fica entre o ânus e a vagina — para ajudar na saída da bebê, porém, “perdeu a mão” e acabou dilacerando a região genital de Claúdia, que se traumatizou totalmente com os profissionais da área e decidiu nunca mais pisar em nenhum consultório ginecológico.
Histórias como as de Miriam, Olívia e Claúdia são mais comuns do que se pode imaginar no Brasil. Muitas mulheres não conseguem ter acesso à medicina ginecológica de qualidade, seja pela falta de vagas no SUS, pela falta de profissionais especialistas em ginecologia e obstetrícia, ou por conta de experiências traumatizantes que as distanciaram do desejo de cuidar da própria saúde. Segundo levantamento da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), um terço dos bebês nascidos em 2016 não tiveram pré-natal adequado, cujas mães fizeram no mínimo sete consultas durante a gestação. Esse dado reflete em como a saúde da mulher está fragilizada quando se trata de conseguir acompanhamento médico e mostra que o Brasil ainda precisa melhorar suas iniciativas públicas e privadas para reverter esse cenário.
O SUS oferece atendimento gratuito em todas as especialidades médicas, entretanto, em algumas cidades, a fila de espera para conseguir uma consulta acaba sendo problemática. Em virtude dessa alta demanda, grande parte das mulheres que buscam por médicos ginecologistas são atendidas por clínicos gerais, especialmente as que estão grávidas e precisam realizar o atendimento pré-natal.
De acordo com a médica Lucila Nagata, chefe da unidade de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB) e membro da Associação de Ginecologia e Obstetrícia do Distrito Federal (SGOB), essa medida é complexa: “No Distrito Federal a média de consultas no pré-natal é de quatro atendimentos, mas mesmo assim temos dificuldade de que as pacientes tenham consultas com médicos especialistas, pois a grande maioria delas são realizadas ou por médicos da família ou por enfermeiros(as), devido à nova política de saúde da inserção do médico de família em comunidades”, detalha a médica. “Isso em parte foi bom, mas tem sua parcela ruim, pois a maioria das pacientes não têm acesso a um especialista no pré-natal, fazendo com que nem sempre sejam identificados fatores de risco que podem interferir no resultado final da gestação”, completa. Por isso, o ideal é sempre se consultar com um especialista.
A advogada Bruna Camargo, especialista em direito da mulher, explica que em alguns casos é possível conseguir acesso à saúde ginecológica por meio de ações judiciais: “É importante que a mulher saiba que é seu direito conseguir cuidar da sua própria saúde. É necessário insistir, buscar formas de conseguir o tratamento de forma mais rápida, como, por exemplo, marcar consultas em hospitais mais distantes em relação à sua residência, mas nunca desistir de conseguir. Quem não puder pagar por um advogado deve procurar a defensoria pública e entrar com ação judicial, para garantir seu acesso à saúde”, explica.
Nem sempre a fila do SUS é o único problema na hora de conseguir uma consulta médica ginecológica de qualidade. Em um levantamento para essa reportagem foi realizada uma pesquisa no grupo do Facebook “Share You PPK”, grupo de mulheres de todas as faixas etárias e classes econômicas, feito para dividir dúvidas, experiências e até mesmo compartilhar vivências. Perguntamos no grupo, que conta com mais de 46 mil integrantes, qual a maior dificuldade das mulheres em ter acesso à medicina ginecológica.
O resultado foi impressionante: mais de 5 mil comentários, com muitos relatos emocionantes. A maioria das mulheres comentou dificuldades de ter suas vontades respeitadas dentro de um consultório médico. “O primeiro ginecologista que passei na vida era um homem e ele sempre duvidava das minhas dores. Quando mudei de médico descobri que tenho um cisto que me causa as dores”, relata Liliane Stallieri. Já Caroline Bezerra teve outra dificuldade: “Na época em que tinha meu ciclo mega desregulado, perguntei pro ginecologista o que eu poderia fazer pro meu período regular e ele simplesmente me respondeu que ou eu tomava anticoncepcional ou ficava desregulada”, diz.
Casos como esses são desanimadores, mas é importante ter consciência de que essas posturas profissionais não são permitidas. “A vontade da paciente deve ser respeitada e precisamos lutar por uma medicina ginecológica mais humana. Se você for vítima de alguma situação irresponsável é importante denunciar para órgãos superiores, como a administração dos hospitais, e até mesmo para os conselhos de classe médicas, para que outras mulheres não passem por situações como essas”, conclui a advogada Bruna Camargo.
Iniciativas como coletivos de médicos ginecologistas discutem a boa conduta médica dentro de um consultório, a fim de evitar a postura negligenciável de profissionais. No Facebook, por exemplo, existe a página “Ginecologista Sincera”, onde um grupo de médicas ginecologistas e obstetras, que têm em comum o feminismo e a vontade de ajudar mais mulheres através do meio digital, dedicam parte de seus dias a sanar dúvidas, esclarecer alguns pontos sobre como o atendimento médico precisa ser feito e também alertar mulheres a respeito de sintomas de doenças e formas de preveni-las. A página já conta com mais de 250 mil curtidas.
De acordo com médica Lucila Nagata, chefe da unidade de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB), a paciente sempre precisa ser respeitada e ter seus direitos assegurados. É comum ouvirmos casos de gestantes vítimas de violência obstétrica e muitos lugares já possuem seu próprio protocolo para evitar casos como esse: “Aqui no Distrito Federal já temos bem definido: não fazer episiotomia, não fazer lavagem intestinal, não realizar tricotomia e, além disso, a paciente pode se alimentar durante o trabalho de parto, deambular [andar à toa] durante o trabalho de parto e tem direito a um acompanhante de livre escolha da parturiente. Também são assegurados o direito de contato pele a pele assim que o bebê nasce, a laqueadura tardia de cordão, a amamentação na primeira hora do pós-parto e outras coisas preconizadas. Isso tudo colabora com a não-violência obstétrica, principalmente a parte do acompanhante, que dá suporte à gestante e, ao mesmo tempo, observa se esses direitos estão sendo assegurados”, detalha.
Apesar das muitas dificuldades relatadas nessa reportagem, é importante que todas as mulheres não desistam da própria saúde. Muitas doenças podem ser evitadas se diagnosticadas no tempo correto. Além disso, uma gestação acompanhada é necessária para a mãe e para o bebê, caso contrário os dois podem correr riscos graves. Nagata detalha o que pode acontecer caso a mulher não tenha um acompanhamento adequado: “É muito arriscado não realizar o pré-natal. O risco está na falta de exames que podem constatar uma doença simples, como a anemia, a doenças mais graves, como a sífilis, infecção HIV, toxoplasmose ou outras infecções comuns em gestantes, que podem causar aborto, parto prematuro, rotura prematura de membranas e até prematuridade e malformações, no caso de infecções congênitas. A falta de se identificar uma hipertensão, diabetes ou outras doenças pode corroborar com alta morbidade/mortalidade materna e neonatal”, finaliza a médica especialista.
*Os nomes foram substituídos para preservar a identidade das fontes