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Um salto para fora do armário

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A relação de Maurício Jiacomin com sua drag queen, Maya Papillons

Por Carolina Freire e Jean Prado
Depois de comprar seis pares de sapatos em um shopping durante seu intercâmbio na cidade de Coimbra, em Portugal, Maurício não sabia o que fazer com eles. Longe dos pais, ele quis ter o salto alto que sempre admirou, mas usá-los em público com bermuda e camiseta não era uma opção em uma cidade de costumes conservadores. Montar-se como drag queen surgiu como alternativa para personificar uma figura feminina que tinha mais liberdade de explorar as vontades reprimidas de Maurício.
Papillons era seu nome de batismo na Universidade de Coimbra. Em francês, significa borboleta, inseto que passa por uma metamorfose e se torna uma criatura totalmente diferente, com cores vívidas e chamativas. Maya foi um nome que a sua “mãe drag” (aquele(a) que orienta a quem quer se iniciar na arte drag). Era pequeno, fácil de lembrar e também começava com “Ma”, de Maurício. E assim Maya Papillons saiu do casulo.
De volta à casa dos pais no Brasil, Maurício guarda hoje em seu pequeno quarto tudo o que trouxe de Portugal para fazer a Maya acontecer. Caixas organizadoras ficam em cima do armário com os 47 sapatos que ele trouxe da viagem, separados por tamanho do salto, cor, tipo e estampa. Ele se monta em frente a uma escrivaninha reformada que dá suporte a um espelho envolto por um pisca-pisca de Natal, dezenas de pincéis de maquiagem e uma colorida paleta de sombras. Também há um outro espelho menor que fica na frente de outro pisca-pisca para retoques mais precisos.
Enquanto ele passa maquiagem no rosto, o cabelo preto à altura do pescoço é domado por uma tiara à frente e preso com quatro grampos atrás. Maurício tem sobrancelhas precisamente definidas, barba bem preenchida e, durante a conversa, seus olhos claros alternam entre um espelho e outro, conforme a parte do rosto que está maquiando. Por vezes, me olha diretamente pelo espelho quando o tom da entrevista fica mais sério.
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Seu celular está carregando na cama ao lado da escrivaninha e vibra diversas vezes no começo da entrevista. Várias mensagens chegam no grupo de WhatsApp do Soul Drag, grupo de dez drag queens de Bauru do qual Maya faz parte. Elas compartilham entre si as fotos de sua apresentação no Encontro da Diversidade de 2018, que havia acontecido há uma semana no Parque Vitória Régia, em Bauru. “Olha aqui! Destruíram com a nossa imagem, tamo fudida (sic)… É uma pior que a outra”, brinca Maya, mostrando as fotos do evento e comentando cada uma. “Achou ruim essa? Vamos para a próxima”, disse a cada foto, por cinco fotos.
No dia do Encontro da Diversidade seu visual era uma mistura de contrastes que, juntos, funcionavam muito bem. O cabelo preto fixado para trás com gel terminava em um aplique loiro, formando um penteado de rabo de cavalo. Assim como Maurício, Maya exibia uma barba preenchida e sobrancelhas bem desenhadas, mas com maior definição. As estrelinhas coladas por toda a testa combinavam com as unhas e olhos decorados nas cores do arco-íris.
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Uma linha branca acima do lábio superior separava a barba masculina de lábios salientes, preenchidos com batom vermelho e finalizados com uma linha na cor vinho para definir a boca. Por baixo de um maiô colorido, enchimento e meia-calça ajudavam a moldar as curvas atraentes de Maya. Sem abrir mão da praticidade, um cinto tipo choker mascarava o cordão vermelho de uma bolsinha para guardar o celular e as chaves do carro, e galochas pretas envolviam as meias para não sujá-las de terra.
Além de subir ao palco montado no gramado do Parque Vitória Régia, Maya também participou da organização da Semana da Diversidade e ministrou a primeira Oficina de Automaquiagem Drag de Bauru, no Senac da cidade, como parte da programação da semana. Há quatro meses ela entrou “no susto” no Conselho de Atenção à Diversidade Sexual (CADS). Maya não conhecia o órgão e trabalhou com os novos membros para deixar a programação mais dinâmica.
“Tá sendo uma loucura. A gente não dorme mais, não se alimenta. A gente vive à base de calmante. Meu cronograma de hoje é ficar louca, sair correndo pelada e mergulhar nesse laguinho atrás da gente porque estou enlouquecendo”, brinca Maya, rindo, na sombra da escadaria do Parque Vitória Régia, enquanto narra a organização da semana. Ela esteve presente em todas as palestras da semana, ajudou na burocracia de outros eventos e resolveu cada detalhe da oficina que ministrou no Senac. Foi uma proposta dela, um antigo sonho de ajudar diretamente pessoas que queriam se montar de drag queen.
O ativismo LGBTI+ veio de Portugal. Em Coimbra, Maurício descobriu outro estudante de seu mesmo programa de intercâmbio que se montava, então ele o procurou e pediu ajuda para começar. Ayaly Fox, sua mãe drag, ajudou a tirar Maya do casulo, convidando-a para se montar em conjunto e participar de festas na cidade. “Eu tomei muito gosto pela brincadeira, né? E chegou uma hora que eu me montava e montava a minha mãe drag”, comentou, narrando sua trajetória durante o intercâmbio.
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Seis meses depois de conhecer Ayaly Fox, Maya já havia se juntado à Plataforma Anti-Transfobia e Homofobia (PATH) de Coimbra e ajudava a organizar as festas para juntar dinheiro para a Marcha Contra a Homofobia e Transfobia. Ela acontece em 17 de maio, o Dia Internacional contra a Homofobia, em comemoração à exclusão da homossexualidade da lista de transtornos mentais feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1990.
Depois de se montar, os sapatos de salto de Maya saíram do armário para as ruas de Portugal. Ela chegou a sair montada com os amigos em um shopping de Coimbra. Apesar da cidade ter costumes tradicionais, a segurança e a restrição ao corpo do outro deixaram Maya mais confortável para quebrar tabus. Alguns se assustaram, outros pediram para tirar foto, mas no geral a reação foi respeitosa. Além de se afirmar, Maya queria experimentar blusas e vestidos nas lojas usando seu corpo mais volumoso graças ao enchimento.
Fora os 47 sapatos e o ativismo, Maya trouxe muita roupa e maquiagem do intercâmbio para o Brasil, junto com uma vontade de desenvolver o lado artístico. Ela não queria mais fazer a barba para se montar e quando teve a oportunidade se fantasiou de Tempestade, personagem do filme X-Men. Seus pêlos faciais estavam pintados de branco combinavam com a peruca da mesma cor e um corset preto com cinto prata e detalhes em vermelho definiam sua cintura. Um tecido preto preso no pescoço e nos dois pulsos formava uma espécie de capa e junto com um detalhe na cabeça revelava uma heroína imponente.
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“Já voltei chocando a sociedade”, conta, enquanto segura delicadamente um pincel macio com as cerdas curtas e o desliza pelo côncavo do olho em movimentos circulares, olhando para o espelho menor. Naquele momento a pálpebra móvel já está preenchida com glitter azul e o côncavo carrega um roxo esfumado com rosa. Na festa em que se vestiu de Tempestade conheceu parte dos integrantes do Soul Drag, grupo que viria a se formar com a união de dez drag queens.
O Soul Drag ficou conhecido em Bauru e região por fazer um “rolezinho” (passear no shopping) com todas as drags montadas. O evento aconteceu no Shopping Boulevard em 2016 e foi Maya quem convenceu as amigas, inspirada nas suas experiências em Portugal. “Eu cheguei aqui no Brasil e tinha um grupo de 10 viado (sic), e falei: gente, vamo, pelo amor de deus, a gente precisa fazer algo assim. Foram com o cu na mão, né? Todos cagando nas calças com medo de ir e eu a única loucona super ‘uhul’”, brinca, lembrando que no começo as outras integrantes do grupo relutaram ao passeio.
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Apesar das preocupações, o resultado saiu como esperado. “Menino, elas se apaixonaram, porque foi muito legal, as pessoas tiveram uma recepção que ninguém esperava, foi muito bom”, explica Maya. Depois desse encontro o grupo se consolidou e começou a se apresentar em festas e casas noturnas de Bauru. Outros dois rolezinhos também aconteceram no Shopping Boulevard; um deles foi aberto ao público.
Apesar do Brasil não ser tão seguro quanto Portugal, principalmente para o público LGBTI+, não é incomum que Maya ocupe espaços públicos montada de drag queen. É uma energia positiva que ela aprendeu a cultivar. “Quando a gente começa a sair de casa com um olhar de que a gente não vai encontrar preconceito, a gente não encontra. Eu falo por experiência própria”, enfatiza, olhando-me no olho através do espelho. Dessa vez, pausa o processo de maquiagem para falar.
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“Todas as vezes que eu saí sem medo, feliz, sem procurar gente me olhando torto, mas sim procurando gente sorrindo para mim, acabo encontrando gente sorrindo para mim. Sempre tem gente olhando torto, mas eu não vejo, porque não é algo que eu procuro. O agressor que chegaria para você e falaria ‘vou te jogar no trilho [do metrô]’ não tem abertura para fazer isso. Quando você está lá de cabeça baixa já está numa posição de fragilidade, e ele se sente mais propenso a te fazer mal”, aconselha Maya.
Além do rolezinho com o Soul Drag ela ministrou a oficina no Senac montada e foi à pré-estreia do documentário Como Somos, do qual participou, também montada. Maya usava um longo vestido vermelho com pequenas pedrinhas brilhantes que a mãe lhe emprestou, quase da mesma cor do batom, igualmente vermelho. As unhas feitas pela mãe estavam mais escuras do que na Parada, cor de vinho, e um bracelete cumprido e bege no braço esquerdo fazia o contraste. O olho preto esfumado completava o visual elegante.
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Diante do meu elogio à sua aparência requintada, ela brinca: “achei que vim para o Oscar, uma premiação”. Logo depois da exibição do documentário, Maya também fez graça: “achei que ia entrar e ver Vingadores”. Todos ao seu lado riam. Nas diversas vezes em que conversamos, ela sempre brincava antes de responder alguma pergunta ou contar alguma situação. Esse senso de humor vem do gosto pelo contato com o público. Ela passou dois anos como anfitriã dos clientes da casa noturna Jack Music Pub. No dia do documentário, muitos chegavam para abraçá-la, fazer selfie e conversar com ela no salão do Alameda Quality Center.
Essa atenção com interessados na arte drag, segundo Maya, vem de uma veia humorística. “Sempre gostei de fazer palhaçada, ver os outros darem risada. Eu adoro isso desde pequeno. Costumo falar que sou o colecionador de risadas. Eu guardo as risadas mais marcantes das pessoas na minha memória, é uma coisa que eu amo de paixão”, confessa, em um tom íntimo. Para ela, a consolidação de sua personalidade como drag queen permitiu mais liberdade para brincar, e muitos hoje retribuem a descontração.
Como nem sempre há um retorno positivo, ela prefere focar em reações gratificantes. “Se alguém me olhou torto no dia do documentário, eu não vi. Eu fiquei procurando as pessoas que estavam sorrindo. Óbvio que eu não ia sair andando assim pela [Avenida] Nações [Unidas], porque há o limite do bom senso, mas é engraçado porque muda toda a situação em sua volta”, diz, quase como um conselho.
Conversamos melhor durante todo o processo de montação em um sábado, no quarto de Maya. Ela estava se arrumando para ir para um aniversário na cidade de Pongaí, a mais de 100 quilômetros de Bauru, em que foi contratada para fazer parte da festa, e depois voltaria para cá para tocar no bar gay L’Open. Ela admite que quando não se sente segura para estar em algum lugar chama um amigo que também faz parte do Soul Drag para ir junto.
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A segurança de Maya, não apenas do Maurício, também é uma preocupação de sua mãe. “Minha mãe só falta arrancar os cabelos da cabeça. Sempre ela pergunta se é seguro, dependendo do lugar. E tem lugar que a gente sabe que não é tão seguro assim, mas se eu falar pra ela que não é, nossa senhora”, confessa. A mãe só foi conhecer Maya quando visitou o filho em Portugal, logo no final do intercâmbio.
Antes de encontrá-lo, Maurício decidiu revelar sua sexualidade por Skype. “Minha mãe já chegou falar na minha frente que a maior decepção de uma mãe no mundo era ter um filho gay. E aí pronto, eu era gay, então era a maior decepção da vida dela, só isso. Então pensei, estou no intercâmbio, vou falar que sou viado (sic) porque estou aqui, se eu for expulso de casa tenho mais um ano de intercâmbio que posso me virar e voltar para Bauru já preparado, né? E isso passou pela minha cabeça mesmo”, conta, novamente me olhando pelo reflexo no espelho de seu quarto. Além do relato, também era possível escutar a mãe varrendo o chão da sala, ainda que a porta estivesse fechada.
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Foi só depois de “sair do armário” que Maurício contou que tinha se montado; de prontidão, a mãe achou que era brincadeira, até aterrissar em Coimbra. “Teve uma vez que eu fui no shopping montado com ela. Foi assim que ela percebeu que a Maya não era um fogo no rabo (sic), aí ela entendeu que eu ia voltar para o Brasil com isso, e a gente acabou brigando no shopping”, relata. Uma outra briga decisiva para a aceitação de Maya foi quando Maurício já estava no Brasil e ele começou a se montar mais frequentemente.
Na ocasião, Maurício se montava no banheiro do quintal de casa para não causar confusão, mas um dia foi inevitável. “Não sei porque você faz essas coisas, não tem consideração comigo, com seu pai, com a sua irmã”, disse a mãe. Ele, que confessou não estar bem naquele dia, respondeu de prontidão: “Estou me montando no quintal só por causa de vocês, tô (sic) deixando de fazer o que eu gosto por causa de vocês e eu não tenho consideração? Você é que não tem consideração comigo”. Depois do acontecido, ele passou a se montar na sala de casa, então a família entendeu que seu trabalho era realmente sério e estava se consolidando como sua profissão.
Apesar de desavenças no passado, hoje a relação entre Maya, Maurício e a mãe é muito boa e cooperativa. “Minha mãe me ajuda, vai comprar roupa comigo, ela que faz minha unha, empresta roupa para mim, eu também empresto roupa para ela. Hoje o vínculo é muito surreal, não foi do dia pra noite, foi uma coisa que teve seu momento de tempestades e precisou ser trabalhado”, conta, lamentando que muitos jovens não conseguem alcançar algo parecido com a família.
Antes de trabalhar com a própria Maya, quando voltou do intercâmbio, Maurício quis se profissionalizar como maquiador, o que via como uma receita mais garantida; ele fez um curso no Senac e passou a atender a domicílio como maquiador autônomo. A situação hoje se inverteu. “Na situação atual, ela complementa e às vezes salva o meu orçamento porque eu não tenho outro emprego fixo”, diz em um fim de semana com duas oportunidades para Maya e nenhum cliente marcado como maquiador.
Por mais que seja um trabalho sem tanto retorno, ele costuma dizer que Maya o tornou um ser humano decente. “Quando você começa a se montar, começa a estar exposto a situações quando gay não está exposto. E a drag normalmente é muito taxada como travesti. Não vejo como algo pejorativo, mas as pessoas tentam usar isso para depreciar você enquanto drag. E eu sempre brinco, falo que não sou drag, sou travesti, porque pra mim é uma honra, um orgulho ser chamada de travesti, é sinônimo de resistência, e existência também, né?”, critica.

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Redação

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