Até quando a “democratização da moda” vai ajudar a apagar a cultura de outras etnias?
Por Isabela Giordan e Heloísa Kennerly
Ana nunca foi muito fã de seus fios crespos, afinal, não era por causa deles que recebia apelidos nada legais na escola? Quando atingiu idade suficiente para tomar as suas decisões, escolheu por jogar química em seu cabelo e ter os tão sonhados fios “lisos”. Ana passou anos com os cabelos ajeitados, endireitados na chapinha e no secador, mas, pelo menos, “domados”. Entretanto, uma coisa não mudou, os apelidos e brincadeiras continuaram. “Ué, mas não eram os meus cabelos crespos o problema?”, pensava a garota. Ana descobriu que não, o tal “problema” estava mais embaixo, estava na cor de sua pele, estava em suas origens e, quando se deu conta da realidade, resolveu lutar contra o racismo que a sondava.
Ana percebeu que o problema não era ela , mas sim os outros e resolveu lutar contra esse racismo (Gif: Reprodução)
Mas, por onde começar? Olhou no espelho e percebeu que, para se libertar, era necessário libertar os seus fios crespos, ou seriam cachos? Após tantos anos de química, Ana não sabia mais como eram os seus cabelos naturais. Para não sofrer muito neste período de transição, sua avó lhe mostrou um grande aliado, o turbante. Segundo a avó de Ana, o turbante faz parte de sua história, foi um símbolo de luta e resistência para a sua tataravó durante o período de escravidão. A partir daquele dia, o turbante transformou-se em o melhor amigo de Ana. Além de ser uma ajuda para a sua autoestima e seu empoderamento como mulher negra, também significava a militância.
Entretanto, Ana percebeu que o seu turbante, aquele símbolo da resistência da sua raça, começou a aparecer em capas de revista utilizado por mulheres brancas, em desfiles na cabeça de modelos brancas, transformou-se em moda pelas suas colegas brancas de faculdade, essas suas colegas foram elogiadas por ficarem lindas com esse acessório “exótico”. Aquilo que fez parte da história da sua família transformou-se em tendência, em hit, em cifras, em dinheiro. Apropriaram-se de sua cultura e reduziram a uma moda sem significado e a “preço de banana”, como dizia a campanha de uma famosa loja de varejo.
Quais dessas mulheres não representam traços da sua cultura? (Foto: Reprodução)
Mas como isso foi acontecer?
Desde os registros mais antigos sobre a história do mundo, é possível apontar várias vezes em que populações dominaram e subjugaram outros povos, que, por sua vez, eram classificadas como inferiores. Por exemplo, os romanos escravizaram durante séculos os gregos, celtas, hebreus e outros povos, que, por serem considerados um populações fracas, foram mantidos como uma raças inferiores ao poder romano. Aproximando mais à realidade, no Brasil, os negros foram escravizados durante séculos, assim como os índios, antes de serem dizimados.
Entretanto, a escravidão não foi o único mal causado pela dominância, em sua maioria, da raça branca. Além de tirarem a liberdade de um povo e jogá-los à marginalidade, ainda lhes foi usurpado várias características culturais. As crenças e tradições desses povos foram descontextualizadas e embranquecidas, ou seja, tiraram os significados daqueles traços culturais e transformaram em um “produto” de consumo para essas raças dominantes. Um exemplo disso é Iemanjá, um orixá africano, simbolizado por uma mulher negra, mas que, para se tornar algo atrativo para consumo, é comumente representado por uma mulher branca e de longos cabelos lisos. “A apropriação cultural é um processo bem problemático que precisa ser mais bem compreendido, pois dá uma margem enorme para que elementos de uma cultura sejam banalizados, trivializados e estereotipados. Um grande problema de sequestrar elementos de culturas não dominantes e adotá-los de maneira descontextualizada, é que as pessoas que fazem a apropriação se beneficiam dos aspectos que julgam ‘interessantes’ de uma cultura, ignorando os significados reais desses elementos, enquanto os membros dessa cultura tem que lidar com opressão diariamente”, explica a militante do movimento negro
Bárbara Paes para a revista digital Ovelha.
Quais dessas mulheres estão utilizando traços de sua cultura? (Foto: Reprodução)
E onde é que entra a moda?
A apropriação cultural não se resume apenas à algumas vertentes no mercado capitalista, mas sim a todas. Nos últimos anos, essa apropriação ocorre de forma frequente no comércio da moda. Desde os seus primórdios, a alta-costura, feita e consumida majoritariamente pela elite branca, só beneficiou aqueles que podiam pagar por ela, ou seja, automaticamente etnias consideradas inferiores eram excluídas de qualquer relação com a alta-costura. Foi criado um costume, no qual a moda absorve de outras culturas apenas aquilo que lhe é benéfico e deixa de lado aqueles na qual essas tradições representam.
Um dos casos brasileiros de apropriação cultural na moda mais comentados na mídia ocorreu em outubro de 2013, durante a São Paulo Fashion Week, no desfile de Outono/Inverno 2014 da marca
Tufi Duek, na qual o estilista Eduardo Pombal inspirou-se no continente africano para a sua coleção. Entretanto, não houve mulheres negras na passarela. O único local ao qual elas pertenceram foi no backstage em fotos da campanha. Nessa ocasião, os traços culturais foram comercializados, mas nem ao menos modelos dessa etnia foram representadas.
Imagem do backstage do desfile da marca Tufi Duek Outono/Inverno 2014 (Foto: Reprodução)
Apesar de ter agora um foco maior da mídia, não é a primeira vez que a alta-costura aproveita de etnias ou movimentos sociais para gerar lucro. O movimento punk, iniciado no final dos anos 70, que tinha como principal viés lutar contra o capitalismo, ainda tem a sua ideia principal esvaziada e transformada em produtos capitalizados nas principais capitais da moda.
Entretanto, o ciclo da apropriação cultural não termina nas passarelas. Após serem comercializadas para a elite, essas tendências chegam ao público de classe C e D pelas lojas de fast fashion. Em artigo para a revista “IARA, revista de moda, cultura e arte”, Joana Contino, mestranda em Design, diz que: “as empresas de fast fashion são aquelas que se baseiam no alto giro de mercadorias: conseguem comprimir o tempo de elaboração e produção das coleções, aumentando a quantidade de lançamentos anuais – algumas têm até vinte por estação –, mas reduzem o tamanho e os estoques das coleções, para que as peças não cheguem à liquidação. Através da aceleração do consumo, há o aumento da velocidade de escoamento das mercadorias”, ou seja, apesar de trazer para o público tendências que não estariam ao seu alcance econômico, em sua maioria, as fast fashion estão ali apenas para lucrar em cima de um público, retirando ainda mais o significado de seus produtos.
Infográfico: Isabela Giordan
Foi em uma dessas lojas de fast fashion que Ana encontrou em uma arara vários panos que, mais tarde, se transformariam em acessório de moda sem significado na cabeça de mulheres brancas. E ela? Até quando será vista como “exótica”? E até quando a sua cultura usurpada para o lucro? Essa história pode ser da Ana ou de tantas outras mulheres que veem sua cultura se transformar em produtos de entretenimento para outras raças.Talvez, a resposta para essas perguntas seja a informação, para essas raças dominantes descubram que está na hora de rever as suas atitudes e devolver a essas etnias tudo aquil
o que lhes foi roubado.